Temas de fundo |
XVI DOMINGO COMUM
1ª leitura (Sb 12,13.16-19): Para além de ti, não há mais nenhum Deus que tome conta de tudo. Não tens que demonstrar a ninguém que os teus juízos são justos. O teu poder é o princípio da justiça. Tu podes ser indulgente para com todos, porque de todos és o Senhor. Mostras a tua força mesmo a quem não crê no teu poder e punes todos os que, embora reconhecendo o teu poder, se atrevem a ignorá-lo. Mas, apesar de teres um poder absoluto, julgas com bondade e governas-nos com grande indulgência, pois podes fazer uso do teu poder como quiseres. Foi com esta forma de atuar que Tu ensinaste ao teu povo que o justo deve ser amigo dos homens; e, além disso, deixaste aos teus filhos a reconfortante esperança de que podem arrepender-se após o pecado.
Os comentadores costumam dizer que este livro da Sabedoria - que terá aparecido já perto do dealbar do NT (por volta do ano 50?) da autoria dum escritor judeu natural da cidade egípcia de Alexandria - é como que o espelho do diálogo entre o judaísmo e a cultura grega. E, de facto, a linguagem utilizada - e não precisamos de ser entendidos para o descobrir - torna a sua leitura relativamente atual, embora, no entanto, nem sempre seja fácil, porque parece haver por parte do autor a tentativa de adequar as suas reflexões à chamada filosofia grega. E isso só é já um obstáculo a uma compreensão simples. Seja como for, o que a leitura em questão nos sugere não tem nada a ver com essas especulações. Ou seja, neste caso, o que mais interessa é a lição prática. Sendo assim, a ideia que ressalta com evidência é que, para além do seu poder e perfeição, o Deus justo mostra-se indulgente e tolerante com as suas criaturas. Aliás, eu diria mais: a ideia que transparece desta leitura é como que o anseio de Deus em estabelecer intimidade e amizade com o homem, mesmo quando haja a constatar, por parte do homem, a imperfeição e o pecado que barram o caminho. Mas, mesmo nessas circunstâncias, não é preciso sequer recorrer ao NT para demonstrar que, no caso em que as pessoas se arrependem do pecado, é possível estabelecer entre Deus e as pessoas um clima de amizade e intimidade. Deus mostra-se totalmente tolerante com a sua criatura, não obstante esta se apresente na vertente da sua debilidade e do seu pecado.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Este trecho do apóstolo Paulo aos Romanos é muito curto, mas isso não impede que contenha coisas muito importantes. O contexto histórico e social em que Paulo se apoia é o facto de os cristãos em geral, e os da Igreja de Roma em particular, estarem a passar por uma situação de perseguição e sofrimento e, por conseguinte, sentirem o anseio de se verem livres dessa mesma situação. Se pensássemos que, através da vitória de Cristo sobre a morte, nós já gozamos da glória dos filhos de Deus, então talvez o desânimo não fizesse parte do nosso vocabulário, pois, como se dizia no trecho aos Romanos do domingo passado, «os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que se há-de revelar em nós» (Rm 8,18). Mas o certo é que a dúvida nos assalta com frequência. Ora, mesmo nestas circunstâncias, não deveríamos deixar-nos abater pelo desânimo; como diz o trecho em exame, até o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza. É o Espírito que realiza em nós aquilo de que nós não somos capazes; é o Espírito que inspira a forma como devemos rezar. Mais: é o próprio Espírito que intercede por nós com inefáveis gemidos, elevando o nosso coração até Deus. A única coisa que nos falta por vezes é assumirmos com clareza e seriedade que realmente o Espírito de Deus trabalha em nós e como de tudo é capaz de tirar proveito.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
PACIÊNCIA DE DEUS E IMPACIÊNCIA DOS HOMENS.
Depois da Parábola do Semeador, o evangelista Mateus propõe-nos uma outra que também fala de semente, é certo, mas cuja finalidade é destacar a paciência de Deus. Mais, no plano de Deus, a salvação não está «determinada» logo desde início. Os judeus - e por vezes também nós hoje - estavam convencidos de que só os «puros» podiam fazer parte dos escolhidos e amados por Deus. Muito possivelmente, nas primeiras comunidades cristãs, pôs-se o problema de quem devia ser admitido e de quem devia continuar a ser considerado como membro de todo o mérito e de quem, ao contrário, devia ser posto na rua «por indecente e má figura». A resposta é a paciência de Deus: Ele aguarda pela colheita para fazer a separação do trigo e do joio. Nessa linha se coloca Jesus que, ao comer com publicanos e pecadores, mostrava que não exigia separação entre as pessoas. Daí se deve concluir que, à semelhança da paciência de Deus, também devemos ser tolerantes. De resto, a intransigência e o zelo fanático não têm qualquer resultado. E é bom recordar também que o trigo e o joio - o bem e o mal - coabitam, há que o dizer, em todos nós. Por outras palavras, não cometamos o erro de pensar que nós é que somos o trigo e os outros o joio. A verdade é que ninguém é tão bom e tão perfeito que não tenha nada de joio. Por isso, o melhor comentário a este trecho é uma outra frase do mesmo evangelista: «Não julgueis, para não serdes julgados, pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis também vós julgados» (Mt 7,1).
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Encheste os teus filhos de reconfortante esperança.
* O Espírito Santo intercede por nós com gemidos inefáveis.
* Deixai que o trigo e o joio cresçam juntos. |
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PACIÊNCIA DE DEUS E IMPACIÊNCIA DOS HOMENS. |
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Os bons e os maus
Quem são os bons e quem são os maus? Bem, é uma tendência como que espontânea de praticamente toda a gente dividir a humanidade em duas grandes famílias ou categorias perfeitamente distintas: os bons dum lado (nós, naturalmente!) e do outro lado os maus (que são sempre os outros, claro!). Há que acrescentar, porém, que, essa tendência não é exclusiva dum determinado tipo de pessoas.
É verdade: todos temos essa mania de «julgar» os outros. Mas isso não traduz toda a realidade. É que, assim como, enquanto para uns, os bons serão eles próprios e os maus os outros, para estes outros - que são classificados de maus - será exactamente o contrário. Ou seja, se é certo que eu me considero bom, não é menos certo que os outros não terão a mesma opinião a meu respeito. O que, ao fim e ao cabo, quer dizer que, sob a perspetiva pessoal, somos todos bons e que. sob ponto de vista dos outros, se calhar, somos todos maus. Não será melhor deixar-nos deste tipo de coisas, deste tipo de juízos de valor? É essa a opinião do evangelista Mateus (cf. Mr 7,1).
Ora bem, esta é uma tendência que existe também (não seria correto ocultá-lo) no plano religioso; ou, se calhar, no plano religioso ainda mais. Assim, invocamos bênçãos para nós próprios, para a própria família, para a própria nação, enquanto cominamos maldições para os outros, para os «inimigos», para aqueles que se nos opõem. Por outras palavras, há a tendência a julgar os outros, quando, afinal, o julgamento pertence a Deus. Por muito que nos custe e por mais que protestemos, o julgamento pertence a Deus e a mais ninguém... E, já agora, esse julgamento não é exatamente como nós pensamos. Porquê a mania de impor a Deus como é que o julgamento deve ser feito?!
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O Senhor é um Deus paciente
O que nos deve preocupar não é o julgamento que Deus vai aplicar... aos outros, mas sim o esforço que devemos ser para produzir trigo e não joio. No comentário tecido acerca da liturgia da palavra do domingo passado (em especial no que diz respeito à Parábola do Semeador), o problema já ficou um pouco levantado, na medida em que Deus espera que nós sejamos a boa terra que produz trinta, sessenta ou cem por um. Na parábola de hoje, somos como que convidados a enfrentar a questão explicitamente. Assim, a primeira leitura e o trecho evangélico, sobretudo a parte que se relaciona com a parábola do joio, convergem ambos no tema da paciência de Deus - que espera sempre que sejamos bom trigo a produzir frutos de boas obras - e do seu juízo sobre os homens.
Às vezes, duma leitura superficial da Bíblia (nomeadamente no que se refere a alguns textos aparentemente mais «violentos»), poderá ficar-nos a impressão de um Deus que é impaciente, na medida em que os apelos à «vingança» são frequentes. Mas o que acontece é que nem nos preocupamos sequer em procurar saber se esses apelos se devem atribuir aos homens (que os escreveram) em vez de os atribuir a Deus (o que está nesses textos - e nomeadamente nos Salmos - não é por força a «opinião» de Deus, mas é tantas vezes a queixa e o protesto dos homens). A verdade é que, como exteriorização dos sentimentos dos homens, essa maneira de descrever é exato, mas isso não quer dizer que os sentimentos dos homens sejam louvados, porque, tantas vezes, não o são. O que está na Bíblia pode estar lá também como uma crítica a algo que está mal feito...
Seja como for, estou a dizer isso para realçar um outro aspeto. Os passos mais notáveis da Bíblia desmentem esta primeira impressão de que Deus é impaciente e vingativo. Não, no fundo, a Bíblia é o livro da paciência dum Deus que, no que Lhe diz respeito, sempre procrastina o castigo do seu povo. A título exemplificativo, atente-se a esta passagem do profeta Oseias: «Eu ensinava Efraim (Israel ou Povo de Deus) a andar, trazia-o nos meus braços... Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como a espuma que acariciava as suas faces... O meu coração dá voltas dentro de Mim, comove-se a minha compaixão... Não destruirei Efraim, porque sou Deus e não um homem» (cf. Os 11,3-4; 8-9; cf. também 1Re 19,9-13; Lc 9,51-55; Mt 26,51; Ex 32,7-14).
É impossível dizer o mesmo com palavras mais bonitas. É certo que os profetas, de alguma forma, também falam da «cólera» de Deus, mas a cólera de Deus não é certamente como a nossa cólera e sobretudo não é nunca o último momento da manifestação divina. Ou seja, mesmo admitindo - o que não estou a fazer - que Deus se deixe levar pela cólera, mesmo assim o perdão acaba sempre por prevalecer.
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Paciência não é fraqueza
A paciência de Deus é, digamos assim, uma consequência da sua misericórdia e do seu amor para com os homens. Nesta linha, a instauração do Reino de Deus não se faz pela violência e pela força. Jesus inaugura o Reino dos «últimos tempos» não, em primeiro lugar, como juiz que separa os bons dos maus (isso só acontecerá mesmo no fim dos tempos), mas, sim, como pastor universal, vindo, como se sabe, não para os justos, mas para os pecadores (cf. Lc 5,32). A sua atuação nesse aspecto até é motivo de escândalo para muita gente, porque Ele lida e até come com pecadores públicos.
Seja-me permitido acrescentar mais um pormenor. Quem será tão presunçoso que se julgue já entre o número dos bons? Mas então isso não será motivo de desânimo? Bem, acho que também não se deve alimentar nenhum sentimento de desespero, porque todos podem chegar a fazer parte do número dos bons. Com efeito, Ele não exclui ninguém do Reino: todos são convocados, todos têm a possibilidade de entrar. Nenhum pecado (a não ser o pecado da recusa, da auto-suficiência e do desespero) pode deitar abaixo as pontes que ligam as pessoas ao poder da misericórdia de Deus.
No campo e na ordem da graça, pode acontecer um milagre que não acontece na ordem da natureza. E o milagre é este: no «campo» da misericórdia e do amor de Deus, por incrível que pareça, o joio também se pode transfornar em trigo.
Em todo o caso, aqui na terra (e também no Reino inaugurado com Cristo), juntamente com o bom grão, há sempre o joio. Segundo a parábola evangélica, há trigo e joio no mesmo campo. De resto, isso é uma constatação relativamente fácil de fazer. No entanto, a linha de demarcação entre os bons e os maus já não é assim tão fácil. E essa linha não passa necessariamente pelas páginas dos registos paroquiais ou pelos confins das nações, mas apenas pelo coração e pela consciência de cada um. Não compete ao homem, de resto, traçar essa linha de demarcação, pois a separação entre bons e maus não se fará senão depois da morte e isso claramente não cabe aos homens fazê-lo (cf., a este respeito, a maior parte do capítulo 25 de S. Mateus).
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... Paciência é misericórdia
A razão da paciência de Deus encontramo-la sintetizada na resposta que o patrão da seara (leitura evangélica de hoje) dá àqueles que queriam arrancar imediatamente o joio que o inimigo tinha semeado no campo: «Não, para que não suceda que, ao arrancar o joio, com ele acabeis por arrancar também o trigo», é a resposta peremptória.
No contexto da parábola, um agricultor (e mesmo quem o não seja) não terá porventura muita dificuldade em perceber e aceitar que aquele dono até tinha razão. Mas, na aplicação à realidade da salvação, que é simbolizada pela parábola, já não parece tão fácil aceitar esta maneira de agir. Nem os próprios apóstolos Tiago e João conseguiam compreender isso. Eles invocavam a pena de morte (o fogo vindo do céu) para os samaritanos que se tinham recusado a acolher Jesus (cf. Lc 9,54). Tinham realmente uma imagem sobre Deus que não abonava nada nem em seu favor nem em favor de Deus.
Em compensação, a primeira leitura (e sobretudo o texto evangélico) transmite ideias bastante esclarecedoras sobre o conceito e a imagem de Deus. Deus aceita o escândalo do homem limitado e mesmo mau e tudo faz para o tornar bom. E Jesus até parece provocar essa nova maneira de tratar o homem, convivendo livremente com bons e maus, com justos e pecadores. Ele não se preocupa em anunciar uma comunidade de puros e santos. Pelo contrário, é paciente com todos e deixa aos pecadores o tempo de amadurecer a própria conversão.
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Hoje também é necessária a paciência
É um dado comummente aceite que não existe a maldade ou a bondade em estado puro, digamos assim. Há é, no máximo, pessoas boas ou pessoas más. Mas nem isso é correto, porque não deixa de ser também um facto (deveria ser incontroverso) que a bondade e a maldade não existem separadas no homem. Por outras palavras, não há homens que sejam inteiramente bons e homens que sejam inteiramente maus. Em cada um de nós sem exceção, há simultaneamente bondade e maldade. Não é só nos outros que há maldade; também há maldade em mim, por mais santo que me considere...
E então, se é assim, mal andaríamos nós se Deus não fosse paciente connosco! Também em nós existe a maldade. Inclusivamente, o escândalo duma Igreja medíocre, pecadora, em certa medida comprometida com o mal, longe do ideal evangélico da santidade e da renúncia mais clara aos bens materiais, é uma realidade que, todavia, não nos deveria derrotar. Sendo composta por homens e vivendo no mundo, embora sem ser do mundo, a Igreja corre o risco contínuo de se contaminar com o mundo e de ver crescer, nas suas fileiras, a planta do joio. Resta é saber se eu (que não apenas os outros) não terei na minha índole muitas características que me assemelham mais ao joio do que ao trigo.
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Nunca recorrer à violência
Há ainda hoje cristãos (demasiados) que gostariam de recorrer a métodos violentos para limpar das ervas daninhas a Igreja de Deus; para defender os direitos de Deus: excomungar os membros menos bons, queimar os hereges, lançar em rosto as exigências evangélicas a cristãos mais fracos e sobretudo aos não cristãos. Mas, como é evidente, apontando sempre o dedo para os outros e colocando-se a si próprios sempre da parte dos bons. Então, diante de Deus, tenhamos a coragem de ser ainda mais concretos e «radicais», fazendo uma pergunta comprometedora: não será que também (pelo menos às vezes) não estou também no número desses cristãos sempre com o dedo em risto contra os outros?
Na base destas atitudes, além da evidente presunção de nos julgarmos entre os eleitos, de nos julgarmos trigo e não joio, há algumas distorções. Primeiro, uma ideia errada acerca de Deus. É que, no fundo, um Deus pronto a arrancar da seara os maus ao mínimo sinal de prevaricação, seria um Deus vingativo, sempre pronto a lançar os seus raios e coriscos contra a humanidade pecadora (contra os outros, que não contra nós, claro!). Aliás, um Deus assim seria, de alguma forma, um Deus mesquinho, não o Pai de misericórdia.
Em segundo lugar, essa atitude, no fundo, denota falta de confiança: em Deus e nos homens. Vendo bem, por um lado, achar-nos-íamos capazes até de fazer melhor do que Deus (que, afinal, em nossa opinião, demora demasiado tempo a premiar os bons e sobretudo a castigar os maus); por outro, classificaríamos todos os outros de incorrigíveis. E, para além do mais, parecendo que não, faríamos acerca de nós uma ideia perigosa, porque, afinal, não nos podemos esquecer de que «os que se exaltam serão humilhados» (cf. Lc 18,14).
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Os ritmos de crescimento e maturação
O Reino de Deus a construir neste mundo «comporta» os «maus e os pecadores», porque se baseia numa indefetível confiança na ação todo-poderosa de Deus e, ao mesmo tempo, sabe esperar pela livre decisão do homem. Não se trata, como me parece óbvio, de uma aceitação passiva dos acontecimentos, mas de uma construtiva atitude de tolerância pela diversidade, de respeito pela maneira de ser e crescer de cada um, de respeito pelos tempos e pelos ritmos de crescimento de cada um. Isso tanto a nível de comunidades ou grupos como a nível de indivíduos.
Há momentos privilegiados de graça (em relação aos que são maus), há sinais dos tempos que esperam pelo momento oportuno para produzir frutos de vida eterna. Em poucas palavras, quem viu a água tornar-se vinho deve também esperar com paciência que o mau (e todos o somos, pelo menos um pouco, não nos esqueçamos disso!), se torne bom.