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II DOMINGO COMUM

1ª leitura (Is 49,3.5-6):  O Senhor disse-me: «Israel, tu és o meu servo. Por causa de ti, todos me hão-de glorificar». Antes de nascer, o Senhor escolheu-me, fazendo de mim seu servo, para lhe trazer de volta o seu povo, para lhe congregar Israel. O Senhor honrou-me e é a fonte da minha fortaleza. O Senhor disse-me: «Tenho uma grande missão para ti, meu servo. Não só restituirás a grandeza do povo de Israel que sobreviver, mas farei também de ti uma luz para as nações, de maneira que todo o mundo seja salvo».

 

* Farei de ti uma luz para as nações.

   Há, no Livro do Profeta Isaías [(ou, mais exactamente, no Segundo Isaías (cc. 40-55)], uma figura misteriosa que é conhecida por «Servo de Javé» (ou Servo do Senhor). A descrição dessa figura é composta por quatro poemas (oráculos) ou unidades literárias complementares, a que os especialistas dão o nome de «Cânticos» e que são: Is 42,1-4; 49,1-6; 50,4-11; e 52,13-53,12. A presente leitura faz parte do segundo Cântico. É curioso que seja proposto no II Domingo Comum depois de ter sido proposto o primeiro Cântico na Festa do Baptismo. Ao que parece, é um oráculo dirigido ao povo depois do seu regresso do exílio da Babilónia, numa altura em que as certezas são poucas devido ao facto de as coisas não correrem como os retornados estavam à espera. É, pois, natural que o profeta se dirija a todo o povo (neste caso então, o Servo de Javé identificar-se-ia, como dizem alguns, com o próprio povo) para o animar a não temer, porque, além do mais, terá a missão de ser a luz das nações e o «motivo» de salvação para todo o mundo. É difícil saber qual é o alcance destas palavras, mas é sempre possível fazer uma aplicação não só ao povo de Israel, mas também ao novo Povo de Israel que é a Igreja e que, em muitas circunstâncias, se sente pequena e sem poder para exercer influência no desenrolar dos acontecimentos da humanidade. Pois bem, a Igreja - e o cristão individualmente - não se pode esquecer que «o seu direito está nas mãos do Senhor e no seu Deus a sua recompensa».
 

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2ª leitura (1Cor 1,1-3):  De Paulo, chamado por vontade de Deus a ser apóstolo de Jesus Cristo, e do nosso irmão Sóstenes, à Igreja de Deus, que está em Corinto, a todos os que são chamados a serem o povo santo de Deus e que Lhe pertencem pela sua união a Jesus Cristo, juntamente com todos os que em qualquer parte invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso, a graça e a paz vos sejam dadas por Deus, nosso Pai e pelo Senhor Jesus Cristo.


* Que Deus vos dê a sua graça e a sua paz.

   Logo na saudação da sua primeira Carta aos Coríntios, Paulo dá a entender que essa comunidade (que terá sido fundada entre 50 a 52 da nossa era) era pujante de vida, apesar das suas origens humildes. Pelo que se sabe, os cristãos desta comunidade são pessoas sobretudo provenientes do paganismo e na sua maioria pertencem às classes mais humildes. Pelo corpo da Carta, sabemos que havia vários problemas, nomeadamente devido ao facto de os convertidos terem muita dificuldade em inculturar a mensagem cristã numa matriz helenística profundamente materialista e paganizada até ao miolo. Como é dado a entender também por esta saudação, Paulo irá dar uma importância fundamental à pertença à Igreja graças à inserção das pessoas em Jesus Cristo, daí se podendo concluir que, sem essa condição sine qua non, não há verdadeira comunidade cristã. E, nesse aspecto, acho que também nós devemos ter bem presente que, para que a nossa pertença à Igreja tenha verdadeiramente sentido, é necessário assumirmos a sério que isso não é possível se Jesus Cristo não for a nossa referência fundamental. Ou seja, é necessário chegar a esta conclusão muito simples: sem Jesus Cristo, não nos podemos considerar sequer cristãos.

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Evangelho (Jo 1,29-34):  No dia seguinte, João viu Jesus vir ao seu encontro e disse: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Este é aquele de quem eu estava a falar quando disse: "Depois de mim vem alguém que passou à minha frente, porque existia antes de mim". Eu não sabia quem era, mas foi para Ele se manifestar a Israel que eu vim para aqui baptizar com água». E João dava o seguinte testemunho: «Vi o Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre ele. E eu não o conhecia, mas quem me mandou baptizar com água é que me disse: "Aquele sobre quem vires descer o Espírito a poisar é o que baptiza com o Espírito Santo". Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus».


* Eu vi e testemunho que Ele é o Filho de Deus.

   Se, como ficou dito atrás, na constituição duma comunidade que se queira cristã, a referência fundamental é Jesus Cristo, isso é ainda mais evidente no trecho evangélico. O momento solene em que essa confissão é feita é o do batismo de Jesus no Jordão. A expressão «Cordeiro de Deus» utilizada por João Batista remete-nos claramente para um dos Cânticos do Servo de Javé, o quarto (cf. Is 53,7), em que se diz que esse Servo assumiu sobre si todos os nossos crimes como um cordeiro que é levado ao matadouro. E, de facto, assim é. Mas o que pode causar alguma surpresa é o facto de João Batista dizer também de Jesus: «Eu não sabia quem Ele era». Para quem esteja com um pedacinho de atenção, é evidente que esta expressão não se refere ao desconhecimento de João Batista quanto àquele que se apresentava diante de si. João Batista, como sabemos muito bem, era primo de Jesus e, por isso, quando diz que não sabia quem Ele era, isso implica uma ideia muito mais profunda do que o simples conhecer, porque, nesse aspeto, ele conhecia Jesus. A conclusão que é preciso tirar é precisamente a que, de resto, está expressa também no nosso texto e que se refere a um conhecimento profundo. Por outras palavras, aquilo que João Batista ainda não sabia era que Jesus era o FILHO DE DEUS. E é precisamente este aspeto que eu julgo que tem uma aplicação direta à nossa vida. Ou seja, não podemos dizer que conhecemos verdadeiramente a Jesus enquanto não descobrirmos que Ele é Filho de Deus. Só esta certeza nos dá a garantia de que Jesus é o Cordeiro de Deus que tira realmente o pecado do mundo.

 

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*  Farei de ti uma luz para as nações.

 

*  Que Deus vos dê a sua graça e a sua paz.

 

*  Este é o Filho  de Deus.  

ELE É

O FILHO DE DEUS.


* Universalismo da salvação


     A ideia que me impressiona mais na primeira leitura de hoje é a do universalismo da salvação: «Farei de ti uma luz para as nações, de maneira que todo o mundo seja salvo». É certo que a leitura faz referência a um estranho «Servo do Senhor», cuja identificação ainda não foi encontrada nem sequer pelos especialistas na matéria, mas é evidente que o autor (o segundo Isaías) lhe atribui uma missão que, no fundo, ultrapassa as suas próprias capacidades. Tratar-se-á de um indivíduo apenas ou será o símbolo do próprio Povo de Israel, um país minúsculo e de pouca influência na zona em que estava inserido? Não se sabe. Mas, seja quem for, a verdade é que ele é escolhido para levar a luz e para ser motivo de salvação para todos os povos.


     Claramente, a «eficácia» da sua missão depende, mais do que das suas próprias capacidades, do poder de Deus. Parece incrível, pelo menos segundo a lógica dos homens, mas a verdade é que, nesse aspeto, a atitude, o «comportamento» de Deus (passe a palavra) parece incorrigível. É que Ele se serve de instrumentos fracos para levar por diante as suas obras e, mais exatamente, a obra da salvação total. É o que diz também Paulo muito claramente quando escreve aos cristãos de Corinto: «O que há de louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios e o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte. O que o mundo considera vil e desprezível é que Deus escolheu. Escolheu os que nada são para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa» (1Cor 1,27-28).


     Nesta perspetiva, é compreensível que quem conta, quem tem importância, não é propriamente quem semeia ou quem rega (são também estas expressões de Paulo) mas sim quem faz crescer. Assim, independentemente das capacidades, o mais humanamente débil torna-se capaz quando é fortificado por Deus. E, no caso da salvação total, não é solução a esperança que se põe na força e no poder humano, porque a salvação total não depende de vitórias ou de derrotas no campo de batalha. Ou, se quisermos, o campo de batalha é outro. No plano da salvação, não se trata de vencer ou ganhar, mas sim de convencer, de «converter» as pessoas para o plano de Deus a respeito do mundo. E esse plano passa, com toda a certeza, pelo coração, que é o único capaz de compreender os projectos de Deus.

* O «Servo de Javé»


    
A primeira leitura de hoje situa-se historicamente num momento crítico para o povo de Deus. Segundo a interpretação de alguns estudiosos, este texto, que pertence ao chamado segundo Isaías (capítulos 40-55), tem por tarefa dar ânimo aos exilados da Babilónia na altura em que se preparam para regressar à sua pátria ou mesmo quando, já na sua pátria, reparam que, afinal de contas, as coisas não estão a «funcionar» tão bem como eles julgavam. Com a figura do «Servo de Javé», parece-me que o autor quer pôr em evidência que o plano de Deus não depende necessariamente nem em primeiro lugar das capacidades puramente humanas, embora o contributo humano seja requerido. Deus é que é a força desse «Servo», cuja missão não se limita ao próprio povo mas se estende a todas as nações, a fim de levar a salvação até às extremidades da terra.


     Como se depreende facilmente, a missão do Servo de Javé, seja qual for a sua identidade, não tem qualquer sentido senão como uma missão de que é investido pelo Senhor. E, nesse aspeto, o seu sucesso não se mede por critérios simplesmente humanos. E a lição a retirar é que, por mais fracos que pareçam os instrumentos de que Deus se serve, o facto é que Ele, que tudo pode, é capaz de, por intermédio deles, realizar coisas extraordinárias (como fez através de Maria).

* A salvação total hoje

 

     Hoje, como em todas as épocas da história (naturalmente salvas as devidas proporções), o homem parece querer arrogar-se o direito de poder ser patrão do seu próprio destino. Mas a verdade é que, apesar dos progressos e da convicção de dominar cada vez mais as forças da natureza, o homem continua subjugado a um mundo em que a salvação total parece um sonho impossível de realizar. Com efeito, dá a impressão que quanto mais dono se proclama do mundo e do ambiente em que vive, o homem parece cada vez menos capaz de controlar o que sucede à sua volta.


     As conquistas de que se pode orgulhar subiram-lhe à cabeça e não é raro ele pensar que é o centro do universo, quando esse é um princípio falso. Com efeito, até na esteira de muito boa gente, mesmo dos entre os que são insuspeitos nestas coisas, há a convicção de que o homem não é senão um pequeno ponto na imensidão do universo.


     Supor, portanto, que a solução dos problemas, a salvação da humanidade, se possa resumir aos estreitos limites da dimensão terrena, é partir dum princípio que é necessário provar. Será que as fronteiras terrenas e temporais serão suficientes para explicar a complexidade da alma humana? Será que a dimensão temporal será suficiente para dar resposta às ansiedades de libertação e salvação total que o homem alimenta em si mesmo?

* Enviado por Deus


    
A liturgia da palavra de hoje - parece-me - propõe-nos um outro tipo de libertação e salvação. Traduzindo isso por outras palavras, o que nos é proposto é a salvação total. O Servo de Javé, que a reflexão teológica cristã identificou com o próprio Cristo, é executor duma vontade soberana sobre toda a humanidade com meios que não se identificam com os meios humanos. S. João Batista dá testemunho dele apresentando-o como «aquele que tira o pecado do mundo» (cf. texto evangélico). E é também interessante que a Liturgia nos faça esta proposta continuamente, para que não nos esqueçamos de que é preciso olhar para além daquilo que é o mero sucesso em termos humanos e temporais.


     Quando, na ótica cristã, se fala em salvação, supõe-se que se trata de uma salvação que implica não só uma salvação humana, mas a salvação total segundo o desígnio de Deus. E a salvação total implica o reatamento, digamos assim, do projeto original, segundo o qual (de acordo com o relato das primeiras páginas bíblicas) o homem é ou deve ser «semelhante a Deus». O fosso de separação criado pelo pecado (o pecado no sentido pleno) passa pelo esmagamento da cabeça da serpente (utilizando sempre a imagem bíblica), que é uma «tarefa» daquele que resume em si a perfeição da união entre a humanidade e a divindade, que é o verdadeiro «Servo de Javé», o «Cordeiro de Deus» (é interessante que a palavra aramaica «talya» signifique ao mesmo tempo servo e cordeiro) que tira o pecado do mundo.


     Jesus é o ungido pelo Espírito Santo (cf. texto evangélico) para cumprir precisamente essa missão de «re-aproximar» o homem decaído daquele projeto original que foi pensado desde o início. É Ele o único Homem que pode transmitir à humanidade a vida divina que Ele próprio possui em plenitude.

* Jesus – o único mediador