de

fundo

1ª leitura (Is 11,1-10): Um rebento nascerá do tronco de Jessé e um renovo brotará das suas raízes. E o espírito do Senhor repousará sobre ele: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças só por ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e defenderá os direitos dos desprotegidos. A sua palavra será como um chicote para os tiranos e os maus serão aniquilados com o sopro dos seus lábios. A justiça será o cinto dos seus rins e a integridade circundará os seus flancos. Então o lobo viverá em paz com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; e o novilho e o leão pastarão juntos guiados por um menino. A vaca e a ursa pastarão juntas e as suas crias repousarão em paz. O leão alimentar-se-á de palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino acabado de desmamar meterá a mão na toca da serpente. Não haverá nem dano nem destruição em todo o meu santo monte. A terra estará cheia da sabedoria do Senhor, como o mar está cheio da vastidão das águas. Nesse dia, a raiz de Jessé será posta como estandarte para todos os povos, que procuração com ânsia a cidade real como morada gloriosa.

 

* A terra estará cheia da sabedoria do Senhor.

 

Este trecho de Isaías é, sem dúvida, um dos poemas messiânicos mais conhecidos, embora não seja fácil situá-lo de maneira historicamente exata. Daí a dificuldade em conciliar a ingenuidade das imagens com a implacável realildade de todos os tempos. Seja como for, no que ao texto se refere, é evidente que a dinastia do povo de Deus está num momento de crise, oscilando entre os apelos das duas grandes potências de então: o Egipto e a Assíria. Israel, como país pequeno e de somenos importância no plano político, sente-se indeciso sobre qual desses dois colossos é mais «promissor». Por pouco que se queira dizer sobre o assunto, é certo que, mesmo no que a um pequeno país diz respeito, há sempre o interesse em garantir a própria subsistência política. O profeta (Isaías) aproveita então o momento de desnorteamento para propor ao povo uma outra solução. Esta não assenta no poder das armas e nas alianças políticas humanas, mas num «regime» guiado pela sabedoria do Senhor. A profusão de imagens que utiliza tem por finalidade descrever as qualidades de paz e harmonia que caracterizarão o novo rei, o Messias de origem davídica. O autêntico «governo», que garanta realmente um clima de harmonia e entendimento, estará dependente da adesão dos homens ao Senhor. Isso porque qualquer mudança que valha tem que começar sempre na mente e no coração.

 

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2ª leitura (Rm 15,4-9):  Tudo o que foi escrito no passado foi-o para nossa instrução, de modo a mantermos viva a esperança, pelo ânimo e pela consolação que nos dão as Escrituras. Que Deus, fonte da paciência e da consolação, vos conceda toda a união nos mesmos sentimentos, uns com os outros, a exemplo de Jesus Cristo, para que, numa só voz, glorifiqueis a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Acolhei-vos, pois, uns aos outros, para glória de Deus, como também Cristo vos acolheu a vós. Digo-vos que a vida de serviço de Cristo a Deus foi a favor dos circuncisos (judeus), para assim confirmar as promessas feitas aos patriarcas, mas também para possibilitar aos gentios louvar a Deus pela sua bondade, como está escrito: «Por isso te louvarei entre as nações e cantarei em honra do teu nome».

 

* Deus é fonte de paciência e consolação.

 

A reconciliação entre aqueles que são apelidados de «fortes» e «fracos» é um conceito muito importante e actual no pensamento de S. Paulo, que ao assunto dedica dois capítulos da sua Carta aos Romanos. Já nas primitivas comunidades cristãs se tinham formado dois grupos «rivais»: por um lado, os escrupulosos na observância das normas da Lei (a quem Paulo chama fracos) e, por outro, os que as consideravam secundárias (e a quem Paulo chama fortes). Hoje, o apóstolo Paulo possivelmente não teria problemas em usar os termos «conservador» e «progressista». Mas a conclusão seria a mesma: esta distinção e intolerância mútua tornavam impossível a celebração da própria Eucaristia em comum. Daí a insistência do Apóstolo ao apontar o olhar para Cristo, que a todos acolheu, tanto judeus como gentios; eu diria, tanto conservadores como progressistas. Por isso, a conclusão é simples: que os cristãos - sejam de que proveniência forem - façam todo o possível para ter a mesma união de sentimentos. Cristo, com a sua vida e acuação, anulou toda a distinção que divida as pessoas entre si.

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Evangelho (Mt 3,1-12):  Naquele tempo, apareceu João Baptista a pregar no deserto da Judeia: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu». João era o homem de quem o profeta Isaías falava, quando disse: «Uma voz clama no deserto: preparai os caminhos do Senhor e endireitai as suas veredas»... Ia ter com ele gente de Jerusalém, de toda a Judeia e da região do Jordão. Confessavam os seus pecados e eram baptizados por ele no Jordão. Vendo, porém, que vinham ao seu baptismo muitos fariseus e saduceus, disse-lhes: «Raça de víboras, quem vos disse que podíeis fugir da cólera que está para vir?»... (E dizia): «Eu baptizo-vos em água, para vos mover à conversão. Mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu e eu não sou digno de lhe desatar as sandálias. Ele há-de baptizar-vos no Espírito Santo e no fogo...».

 

* Está próximo o Reino do Céu.

 

A apresentação que Mateus faz do Baptista pretende fazer-nos chegar à conclusão que João está a preparar o caminho de Alguém que é mais forte do que ele; de Alguém que infinitamente maior, porque Filho de Deus. E Mateus não se exime de usar linguagem que nos dê uma ideia igual à de tantos profetas, os quais, se isso for necessário, recorrem a gestos espectaculares e inauditos, a fim de que a sua mensagem passe e se traduza em frutos de penitência e conversão. Eu acho que seria algo especulativo dizer o que se terá passado naqueles dias nas margens do Jordão, mas o facto é que o que mais interessa é a preocupação de João Baptista em levar as pessoas a mudar de vida. Uma outra preocupação do Baptisa é tornar claro que não deve ultrapassar o seu papel de intermediário ou de preparador do caminho do Messias. Ele, também nesse sentido, é verdadeiro profeta, na medida em que é aquele que fala em nome de Deus; no caso concreto, é o profeta que fala em nome daquele de quem ele não é digno de desatar as correias das sandálias. E, no fundo, é isso que importa, porque só aquele que ele anuncia, Jesus, é o único capaz de provocar a verdadeira conversão e salvação através dum batismo no Espírito Santo e no fogo.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Brotará um rebento do tronco de Jessé.

 

*Cristo acolheu-nos para a glória de Deus.

 

*Preparai o caminho do Senhor e endireitai as suas veredas.  

ELE VOS TRARÁ UM BAPTISMO DE ESPÍRITO E DE FOGO.
 
  • O idílio da paz messiânica

    O trecho de Isaías (do capítulo 11) escolhido para hoje é, literariamente, das mais belos e dos mais citados pelos estudiosos. A mim sempre me faz pensar muito a profusão de imagens poéticas, que, no caso presente - devo acrescentar - são originalmente arrojadas e, em parte, «provocatórias». Ora, esse simples facto deixa logo intuir que há uma ideia que o autor do texto quer propor como séria. Ou seja, não é preciso ter muita capacidade para concluir que a ideia do «profeta-trovador» não é prognosticar, para um futuro mais ou menos próximo ou longínquo, qualquer espécie de paraíso idílico, onde todas as regras que marcam as relações da natureza sejam totalmente viradas do avesso; e também que, afinal, os mais pequenos - no caso, Israel - acabarão por mandar sobre os poderosos.

 

    Deduzir, por exemplo, das palavras e das imagens de Isaías que há-de chegar um tempo em que, efectivamente, o «lobo habitará com o cordeiro» e «o leão comerá palha com o boi» seria, por um lado, não ter sensibilidade alguma para compreender o génio da linguagem simbólica e poética e, por outro lado, amesquinhar e distorcer por completo o sentido da mensagem do profeta. Já agora, seja-me permitido acrescentar que, de resto, mesmo que, por mera hipótese, fosse possível verificar-se essa coexistência entre os animais, que interesse salvífico teria esse facto em si para a humanidade? Concluir também, por exemplo, que o autor está a falar do tema ecológico - o que não quer dizer que o exclua, seria uma forçatura e fazer extrapolar do texto algo que não está lá. De resto, mesmo nessa hipótese, não seria essa a ideia mais importante.

 

    Bem, a este propósito, fique claro que, para lermos corretamente um determinado texto (incluindo obviamente um texto bíblico), não podemos ater-nos apenas ao sentido literal das palavras ou das frases; e muito menos podemos ater-nos apenas a cada palavra ou frase consideradas isoladamente. O que realmente importa é descobrir a ideia geral que as palavras pretendem veicular (mesmo quando as palavras se demonstrem sempre insuficientes para traduzir as ideias, como é quase sempre o caso).

 

   Então, como é bom de ver, a intenção primordial de Isaías não é, por isso, falar nem de cordeiros, nem de leões, nem de bois, nem da harmonia ou não existente entre eles; e muito menos falar de questões ecológicas. A ideia-chave de Isaías, nesta passagem, é fazer ver aos seus concidadãos que hão-de vir tempos, aquando da chegada dum «rebento do tronco de Jessé» [o Messias originário da dinastia davídica (Jessé é precisamente o pai de David)], em que se verificará uma obra prodigiosa de «transformação», a mudança dum mundo de ódio e inimizade para um mundo de entendimento e de pacífica harmonia e convivência. Ora, como é óbvio, trata-se de, antes de mais, de relacionamento entre os homens e não entre os animais irracionais.

 

  • Pacificando a criação

    O profeta anuncia, é certo, tempos de renovação e pacificação dos homens entre si e entre os homens e as próprias obras da criação. Mas diga-se, desde já, que o seu é um anúncio que está sujeito a alguns condicionamentos e contingências; ou seja, os condicionamentos e contingências próprios da história humana. Por outras palavras, nada do que Isaías «prevê» acontecerá mecanicamente. E eu atrever-me-ia até a acrescentaria que nem sequer a batuta mágica do Omnipotente se substitui ao curso normal das coisas. Em termos absolutos e teóricos, a quem raciocine em termos de fé não é difícil afirmar que Deus pode transformar tudo num abrir e fechar de olhos (como se costuma dizer). Mas, por mais incompreensível que isso se nos apresente, Deus - que criou o homem inteligente e livre - em princípio não foge, digamos assim, à regras que impôs à natureza. Ou seja, a intervenção sempre miracolosa e contra a natureza não é a sua maneira habituar de resolver os problemas.

 

    Dito de outra maneira, o Senhor, sem dúvida, levará a cabo a sua obra, mas no seu (dele) devido tempo (e para Deus um minuto é igual a mil anos; cf. 2Pe 3,8), ou seja, respeitando as características e os ritmos do processo de crescimento do ser humano, sob o impulso do seu «Ungido» e do «Espírito», que penetra imperceptivelmente, com a sua força de transformação, nos corações humanos. Ou seja, por outras palavras, a acção do Messias prometido e enviado por Deus processa-se, digamos assim, segundo «critérios» que pouco têm a ver com as regras do eficientismo humano.

 

  • Que tipo de messianismo?

    É nesta linha de pensamento que se insere uma das ideias e temas fortes do Advento como período privilegiado de compreensão da realidade e de preparação para o Natal: ou seja, o messianismo. Eu, pessoalmente, querendo, poderia até exibir algum tipo de erudição, citando especialistas na matéria, para descrever o que se deve entender por messianismo. Mas deixo de boa vontade essa pretensão de lado, porque prefiro limitar-me a propor algumas ideias mais simples que nos ajudem a intuir e a compreender, com a nossa interioridade, o que vai pelo coração de Deus.

 

    Talvez esta última pretenção de compreender o que vai no coração de Deus possa parecer uma pretensão ainda mais exagerada que a primeira. De qualquer forma, sinceramente, não é minha intenção deslumbrar ninguém, mas apenas propor uma sugestão. Quando se pensa em messianismo, é possível dar connosco a imaginar e a querer que, de alguma forma, aconteça hoje o que os próprios judeus contemporâneos de Jesus pensavam do Messias: ou seja, a figura dum guerreiro vitorioso em toda a linha que, com a força das armas, faria do pequeno país de Israel o país mais poderoso em toda a terra, predestinado a substituir para sempre os romanos.

 

    Essa ideia de Messias denunciava uma clara tonalidade política, sobretudo tendo em conta que os judeus estavam sob o domínio dos romanos, que pareciam omnipresentes. Era um facto que o mundo de então por eles conhecido estava todo sob a alçada do império romano. Ora bem, com a vinda do Messias prometido, no fundo, o que eles pretendiam era serem os novos «romanos» dominadores do mundo. E a soberania do Messias, na maneira de ver dos judeus, seria tanto mais generalizada e «espectacular» quanto o mesmo Messias fosse o mais forte, porque, para além dos exércitos, teria em si toda a força do próprio Deus. Quem sabe se não se sonha ainda hoje em dia num género de Reino  messiânico em que as novas grandes potências mundiais sejam finalmente desbaratadas e outros povos seja os condutores da história (naturalmente, os nossos próprios países)...

 

    Pois bem, não é este tipo de messianismo que Deus tem em vista, digamos assim. O Messias, na «óptica» de Deus, não é dominador em termos político-militares. Não, nesse sentido, Deus não é político e muito menos militarista. Aliás, eu diria que não é dominador em sentido nenhum. E, repito, se porventura se tratasse de um messianismo político e nacionalista, por que tipo de nacionalidade, ou melhor, por que nacionalismo, Deus iria optar? Será que ainda não entendemos todos hoje em dia que Deus não é exclusivo de ninguém e, portanto, não está ligado a nenhum nacionalismo mas que quer que todos se salvem? (cf. 1Tm 2,4). O messianismo de Deus tem outras características e, como é de ver, não contempla nem vencidos nem vencedores, não contempla transformações de tipo político e social (a não ser como consequência da transformação dos corações), porque, como diz Isaías, «não haverá nem dano nem destruição no seu santo monte, mas a terra estará cheia do conhecimento do Senhor» (cf. Is 11,9).

 

  • Rei possuído pelo Espírito

    O Messias tipificado por Isaías (e não só!) é alguém totalmente diferente daquilo que possamos imaginar. Nestas coisas (como em quase todas), Deus gosta muito de «pregar partidas» (passe a expressão!), gosta muito de «surpresas». Se fôssemos nós (está bem de ver!), resolveríamos todos os problemas da humanidade em dois tempos (porventura recorrendo não à força da razão mas à razão da força). É por isso que, se calhar, - seja-me permitido repetir mais uma vez a mesma ideia - mesmo sem nos darmos conta disso, a ideia que, por vezes, ainda continuamos a alimentar hoje em dia é a dum Messias capaz de «escaqueirar» tudo de alto a baixo.

 

    Nesse caso e nessa ótica de poder discricionário, na nossa mente, sub-repticiamente, está também implícita a ideia de que o Messias teria que estar como que às nossas ordens, para «escaqueirar»... os outros! Só que, como diz o mesmo livro de Isaías (segunda parte), «os caminhos do Senhor não são os nossos caminhos e os nossos pensamentos não são os pensamentos de Deus» (cf. Is 55,8-9).

 

   Deus planeou, digamos assim, o «domínio» do seu Messias, como creio que planeou, mas não necessariamente segundo as nossas categorias de poder e domínio. O reino messiânico não tem muito a ver com a ideia que nós temos a tendência a fazer dele. E a «surpresa» máxima é a forma como o Messias faz o seu ingresso neste mundo: incarna na figura e na pessoa dum menino indefeso e carente de todos os cuidados. É um Messias que, sob o impulso do Espírito, anuncia a Boa Nova aos pobres, proclama a libertação aos cativos, dá a vista aos cegos e liberta os oprimidos» (cf. Lc 4,18; Is 61,1-2). Não se fala de domínio em sentido político ou de «limpeza» pela violência, porque é igualmente certo que Ele não veio «apagar a chama que fumega» (cf. Mt 12,19-20).

 

  • Senhor dos fortes e dos fracos

    Por outro lado, o «Ungido do Senhor» não é propriedade de nenhuma criatura. Por isso, Ele não está sujeito ao capricho de ninguém; nem sequer quando esse capricho se enfeita de virtude ou se esconde sob a capa de desejo do triunfo claro do bem. Ninguém nega a necessidade que seja o bem a triunfar, mas atenção ao que entendemos por triunfar. Quer dizer, visto assim, em termos de verbalização doutrinal, este parece um asserto evidente, que não sofre contestação. Só que a história concreta demonstra-nos ter sempre havido tentativas de se «apropriar» do messianismo como força de imposição. Tentativas que certamente não deixarão de existir no presente e no futuro. Mas nem por isso Ele é o que eventualmente possamos imaginar ou julgar.

 

    A segunda leitura de hoje (da Carta aos Romanos) faz-se eco de algumas tentativas de apropriação desse género. Para entender o contexto em que o assunto está inserido, talvez convenha ler o capítulo anterior ao texto em análise. Em termos genéricos, Paulo alude a uma dicotomia que causava estragos na comunidade ou «Igreja» de Roma: uma parte dos cristãos, que julgavam ter atingido a maturidade na fé, considerava-se livre em relação a toda uma série de prescrições de origem judaica; ao passo que outra parte, ainda débil na fé, no fundo, identificava a sua vida cristã simplesmente com o cumprimento dessas práticas herdadas da tradição e, por conseguinte, não ligavam, se calhar, muito às novidades trazidas por Cristo. Mais, julgava que quem as não pusesse em prática estava fora da plataforma da salvação.

 

  • Adesão só a Cristo

    Obviamente, cada uma dessas «categorias» de cristãos («fortes» e «fracos», segundo nos é dito pela terminologia paulina) julgava e desejava ter razão e queria ver essa pretensão reconhecida e sancionada pela autoridade de Paulo. Mas a resposta de Paulo, para a resumirmos em termos simples, não pode ser senão uma: Jesus Cristo é ao mesmo tempo Senhor dos fortes e dos fracos. Daí se segue que, na prática, mais importante que colocar-se em barricadas antagónicas, o que há a fazer é aderir pessoalmente a Cristo e, através dele, a Deus.

 

    Mais concretamente, a crítica recíproca (afinal, criticar, mesmo até os mais responsáveis na Igreja, é a solução mais fácil) não é, segundo Paulo, o caminho a seguir. A pertença a Cristo Jesus é que deve ser o traço fundamental e constitutivo da vida cristã, independentemente da diversidade de posições que possa haver em questões não absolutamente essenciais. É exatamente neste contexto que se entende com mais clareza o que Paulo diz no capítulo 14 (que precede a leitura de hoje): «Nenhum de nós vive para si mesmo. Se vivemos, é para o Senhor. E, se morremos, é igualmente para o Senhor que morremos. Seja como for, é ao Senhor que pertencemos» (Rm 14,7-8).

 

    Toda a questão deve, pois, ser colocada noutros termos. Ou seja, não é o Senhor que é nosso (e, por isso, quer sejamos «fracos» quer «fortes», não podemos impor a ninguém o nosso figurino de Messias), mas somos nós que somos do Senhor, quer sejamos «fortes» quer sejamos «fracos». E, nesse sentido, a consequência é nós adequarmo-nos às exigências dele, e não o contrário. Assim, seremos tanto mais seus quanto mais nos parecermos com Ele e não ao contrário.

 

  • Reino cimentado na harmonia

    Do que ficou dito atrás, não me parece ilegítimo poder afirmar que, já no tempo de Paulo, havia, não digo conflitos de ortodoxia, mas pelo menos pretensões pouco dissimuladas de hegemonia. Tratava-se de tentativas de ganhar proeminência por parte duma categoria determinada de fiéis dentro da Igreja em relação a outra. Em termos atuais, talvez a contraposição entre «fortes» e «fracos» possa ser traduzida mais clara e exatamente pela distinção (meramente convencional) entre «esquerda» e «direita» ou, a nível de linguagem de Igreja, entre «progressistas» e «conservadores».

 

    Em todo o caso, na opinião de Paulo, o confronto e a contraposição não devem ser o acento a prevalecer. Neste aspecto, o seu pensamento prático pode resumir-se no seguinte: os «fracos» não condenem os «fortes» e os «fortes» não desprezem os «fracos». E, quanto a isso, Paulo não deixa dúvidas de qualquer espécie: «Procure cada um de nós agradar ao próximo no bem, em ordem à construção da comunidade» (Rm 15,2). E a base dessa atitude de reconciliação «no que nos une mais do que no que nos separa» assenta num facto que deve ser incontroverso para qualquer das «correntes»: o Messias de Israel, após a morte e ressurreição, tornou-se Senhor de todos os povos, independentemente da raça (judeus e não judeus, como era o caso dos destinatários da Carta de Paulo), e também independentemente da categoria social e do sexo.

 

    O mundo de hoje não é, de certo, o mundo do tempo de Paulo, pois as circunstâncias e as inovações a todos os níveis são outras. Mas isso não quer dizer que, substancialmente, os sentimentos mais íntimos se tenham modificado muito. Como no tempo de Paulo, também hoje há pessoas mais conscientizadas no que diz respeito aos problemas de fé (e não só) e pessoas menos conscientizadas. Mas, na ótica cristã, para que o relacionamento seja pacífico e eficaz, a solução é sempre a mesma: a certeza e a confissão de que Jesus Cristo é o único Salvador e Senhor de todos. As diferenças de raça, sexo, cultura (e de cultura religiosa também, naturalmente), a diversidade de opinião, e mesmo de ritos e prática religiosa, nunca deverão ser motivos de divisão e muito menos de disputa (como, infelizmente, ainda acontece tantas vezes).

 

  • Preparar sempre o Reino

    Em todo o caso, o ideal de harmonia e entendimento proposto e preconizado por Paulo de como esse ideal deve assentar no facto de só Jesus ser o Senhor de todos, está muito longe de ser uma realidade. Por isso, é urgente insistir na necessidade da mudança radical de atitudes, na «conversão» contínua de mentalidades e de coração. É esta também a grande «batalha» travada por João Batista (leitura evangélica) para preparar os caminhos para a vinda do Messias prometido. E é sintomático que a pregação do próprio Jesus comece com palavras praticamente idênticas às utilizadas por João: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu» (Mt 5,17). Não será isso um sinal de o Reino de Deus ou dos Céus é uma obra dele e que aqui reside a própria essência da mensagem evangélica?

 

    É certo que a «conversão» não deixava de ser um tema também entre os fariseus e os saduceus do tempo de Jesus. Mas qual é a diferença entre a conversão pregada por João e a conversão proposta pelos fariseus e saduceus? A diferença está no entendimento que dela tinham um e outros. A conversão «farisaica» também implicava, é certo, uma certa «mudança de mentalidade», mas tratava-se de uma simples adequação «mecânica» das atitudes de vida a um conjunto de regras. Ou seja, bastava seguir essas normas na letra para se poder continuar a usufruir do privilégio de ser filho de Abraão. Com efeito, tanto os fariseus como os saduceus sabiam perfeitamente que havia, até entre os judeus, muitos que não mereciam o «nome de filhos de Abraão», se não «mudassem de mentalidade» (ou seja, se não cumprissem os dispositivos da Lei)...

 

    João Batista é que não parece muito disposto a aceitar essa ideia de conversão ritual, restritiva e limitativa. Para ele, que fazia a ligação entre o antigo e novo, a conversão tinha que ser muito mais do que mera «operação de cosmética», mais do que um mero cumprimento ritual de certas leis. Senão, como é que João poderia sair-se com uma «tirada» tão contundente em relação aos fariseus e saduceus, suponto que, afinal, o que tinham era a preocupação de pôr em prática mais um gesto ritual? Certamente por saber que eles não estavam dispostos a mudar o coração é que João lhes diz na cara : «Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir?... Deus pode suscitar, destas pedras, filhos de Abraão» (Mt 3,7b.9b).

 

  • Importante é voltar para Deus

    Utilizando agora categorias verbais a nós mais familiares, não podemos deixar de dizer que, para ser cristão, não basta ter o nome inscrito nos assentos de baptismo. E, por conseguinte, se é assim, então, na génese duma autêntica conversão no sentido evangélico, está uma opção que deve ser decisiva: a de orientar a própria vida segundo os parâmetros do Reino do Céu, um reino construído a partir desta terra na base da justiça, do diálogo, do encontro, da reconciliação e do amor mútuo.

 

    Em suma, e já na senda João Batista, a conversão que conta deverá basear-se, prioritariamente, não em tradições humanas, por mais venerandas e respeitáveis que elas possam ser, mas sim na aceitação daquele cujas sandálias ele não é digno de desatar. Dito doutra maneira, a mudança radical consiste em acreditar (com a mente e com as obras) que o Reino do Céu se realiza na pessoa de Jesus. Enfim, o homem deve aprender a «voltar-se» para Deus, porque Deus foi o primeiro a tomar a iniciativa de se voltar para os homens em Jesus Cristo.

 

    «Voltar-se» para Deus, através de Jesus Cristo, é algo que tem acontecido na história de gerações e gerações e é algo que continua e continuará a acontecer, sempre que Cristo for descoberto a sério por alguém. E é por isso que se continua a proclamar sempre que o Reino de Deus está próximo. É um Reino que continua a vir, mas ainda não está completo; e a plenitude é algo que implica não apenas algumas, mas o maior número possível de pessoas. Por isso, enquanto os homens não souberem e aceitarem, «com uma só alma e um só espírito», que «Jesus é o Senhor», Ele continua a vir. É Ele que marca os tempos, não somos nós. Por mais que nos sintamos no direito de opinar sobre o tema, a data e o tempo do Reino de Deus, o Reino de Deus será sempre, fundamentalmente, iniciativa de Deus. E, por isso, dizer que este está aqui ou ali e agora não é senão conjetura.