SANTÍSSIMA TRINDADE - C
Temas de fundo
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1ª leitura (Pr 8,22-31): O Senhor criou-me, como primícias das suas obras, desde o princípio, antes de tudo ter sido feito. Fui gerada no princípio de tudo, antes de o mundo ter começado. Nasci antes dos oceanos, quando ainda não havia fontes de água. Fui criada antes das montanhas, antes de os montes terem sido colocados nos seus lugares, antes de Deus ter criado a terra e os campos ou qualquer elemento do mundo. Eu já lá estava quando Ele colocou o firmamento no seu lugar e quando fixou os horizontes do oceano, quando condensou as nuvens nos céus, quando abriu as fontes do oceano e ordenou às águas do mar para não subirem mais do que Ele determinara. Eu já lá estava ao lado dele como arquiteto quando Ele lançou as bases do universo. Eu era a fonte diária do seu encanto, sempre alegre na sua presença – alegre com o mundo e contente com o género humano.
* A Sabedoria existe antes de todas as coisas. O livro dos Provérbios situa-se e enquadra-se no contexto da literatura sapiencial do Médio Oriente. Tem como pano de fundo o período pós-exílio (no caso, o da Babilónia), quando os israelitas já não corriam o perigo de cair no politeísmo. É esse o motivo por que não representa qualquer ameaça à verdadeira religião o facto de o autor não temer personificar o conceito e a realidade da Sabedoria. Esta tem um papel fundamental na criação e tem a tarefa, digamos assim, de conduzir os homens a Deus. É difícil não ver nesta «personificação» um artifício literário; quanto mais não seja até porque o autor, ao descrever a Sabedoria, faz uso do S maiúsculo. É certo que, em termos de reflexão simplesmente humana, não é legítima a conclusão de que o autor tem a intenção de apresentar uma pessoa. Claro que não. Todavia, à luz do NT e sobretudo do Evangelho, a figura da Sabedoria pode ser aplicada a Jesus Cristo (cf. Jo cap 1 - ou Prólogo - ; 1Cor 1,16-17.24-30). Este texto, escolhido para primeira leitura do Domingo da Santíssima Trindade, nesse aspeto, fala sobre o Filho como «Palavra viva de Deus», por meio do qual foram feitas todas as coisas.
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2ª leitura (Rm 5,1-5): Uma vez reconciliados com Deus pela fé, gozamos de paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo. Pela fé, fomos introduzidos na sua experiência da graça de Deus, da qual vivemos. E é assim que vivemos na esperança de participar na glória de Deus! E assim até nos gloriamos com as nossas preocupações, pois sabemos que as dificuldades produzem a paciência, e, por sua vez, a paciência atrai a aprovação de Deus e a sua aprovação dá vida à nossa esperança. Mais: esta esperança não nos desaponta porque Deus derramou o seu amor no nosso coração por meio do Espírito Santo, que Ele nos deu como dom.
* Deus derramou o seu amor por meio do Espírito Santo. Este trecho da Carta aos Romanos contém uma espécie de elenco dos bens que Deus concede a quem é justificado pela graça: a paz, o acesso aos favores de Deus, a esperança da glória de Deus, o amor de Deus e o Espírito Santo. Agora, sim, podemos esperar num êxito feliz para a nossa peregrinação, porque o próprio Senhor se interessa pessoalmente por nós. Mais uma vez, temos aqui uma «prova» de que a nossa vida cristã depende infinitamente mais do dom e da graça de Deus do que de nós próprios. É claro que este texto foi escolhido para, de alguma forma, «ilustrar» o tema da Santíssima Trindade, mas, embora não possamos elaborar sobre o tema, sabemos, no entanto, que «os que que se deixam guiar pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus» (cf. Rom 8,14).
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Evangelho (Jo 16,12-15): Ainda tinha muito mais para vos dizer, mas por agora seria exigir demasiado de vós. Todavia, quando vier o Espírito, que revela a verdade sobre Deus, Ele revelar-vos-á toda a verdade. Não falará de Si mesmo, mas falará do que ouvir e falar-vos-á daquilo que há-de vir. Ele glorificar-me-á porque ouvirá o que Eu disser e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o meu Pai tem é meu. Eis por que Eu disse que o Espírito vos comunicará o que Eu lhe disser e vo-lo dará a conhecer.
* O Espírito revela a verdade sobre Deus. Na iminência de deixar os seus discípulos, para regressar à sua forma definitiva, Jesus garante-lhes o dom do Espírito Santo, que lhes dará a conhecer o mistério do Pai e do próprio Jesus Cristo. Os discípulos tinham passado cerca de três anos com Jesus, mas não tinham entendido nem o sentido das suas palavras nem dos seus gestos. O Espírito encarregar-se-á, passe a expressão, de revelar a verdade sobre Deus e assim glorificar Jesus, da mesma forma que Jesus glorifica o Pai, de Quem recebe tudo. Trata-se, pois, duma revelação única: a sua fonte está no Pai, realiza-se no e por meio do Filho, Jesus Cristo, e completa-se nos crentes por meio do Espírito Santo. E a grande revelação é que, apesar da distância que nos separa de Deus, é possível fazer a experiência do amor gratuito de Deus. O Deus de amor, que se foi revelando através das coisas e da história, faz-se dom de amor em Jesus Cristo e este amor é a própria vida de Deus que pode viver em nós através da sua concretização em nós em virtude do Espírito Santo.
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Não temais: Estou convosco! |
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DEUS DERRAMOU O SEU AMOR NO NOSSO CORAÇÃO! |
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Um Deus que se revela
Quando ouvimos falar de alguém, pode acontecer que sintamos o desejo secreto de o conhecer. Também um dia nos aconteceu isso em relação a Deus. Ouvimos falar dele e o gosto de O conhecer ficou-nos cá dentro. Só que a Deus nunca ninguém O viu, a não ser Aquele que Ele enviou ao mundo (cf. Jo 1,18; 6,46). Mas, por razões misteriosas que só Ele conhece, quis manifestar-se, quis revelar-se também ao homem. Numa tentativa de explicação, os teólogos usam dizer que foi o amor que O levou a revelar-se ao homem. Mas nós, em termos vivenciais, digamos assim, ficamos na mesma sem perceber, porque, em termos rigorosos, não compreendemos como é que Deus decidiu amar alguém como o homem.
A Solenidade da Santíssima Trindade é um convite a pensar nesse grande mistério da revelação de Deus aos homens. É Ele que dá sempre o primeiro passo. E isso até é compreensível, se atendermos ao facto de que um ser limitado não tem capacidade para «aceder» Àquele que é ilimitado. Agora que – utilizando a terminologia clássica – se revele como um único Deus, mas em três Pessoas, isso é que ultrapassa toda a nossa capacidade de conhecer. É uma realidade que está para além de todos os parâmetros de compreensão humana. E então, segundo a expressão do teólogo Karl Rahner, não podemos senão constatar que Ele é o «Totalmente Outro».
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Sabedoria de Deus – amar o homem
A Sabedoria de que fala a 1ª leitura, segundo a interpretação teológica mais comum, é como que a personificação do próprio Deus em Jesus Cristo. Por outras palavras, é a «Palavra viva de Deus», é o «Verbo» de Deus, por meio do qual todas as coisas foram feitas (cf. prólogo do Evangelho de João).
É também um facto que, segundo a visão bíblica, tudo foi feito em ordem ao homem. Isso é uma demonstração de como Deus, desde sempre, tenha «prediligido» o homem. Dá até a impressão de que Ele como que se multiplica, como que se reparte, para poder convencer o homem do amor que lhe tem.
Mas Deus não se limita, digamos assim, a criar tudo em atenção ao homem. Para lhe demonstrar que realmente o ama, faz-se Ele próprio homem em Jesus Cristo e morre por ele, porque não há maior amor do que o daquele que dá a vida pelos seus amigos (cf. Jo 15,13). Mais, para que o homem não tenha dificuldade em O encontrar, Deus continua a depositar nele o Espírito que lhe faz dizer «Pai» como um sinal de reconhecimento e um convite a deixar-se amar sem preconceitos.
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A Trindade é...
Não tenho qualquer pretensão de, com estas considerações, afirmar o que se deve entender por Trindade, porque a Trindade é... e mais nada; pura e simplesmente. Aquilo de que, porém, estou convencido é que tudo tem um significado segundo o projeto de Deus. Confesso a total impossibilidade de penetrar nessa dimensão. Por isso me limito a citar – para reflexão – algumas palavras do Concílio: «Tudo foi criado em Cristo, por meio de Cristo, em vista de Cristo. Por isso, cada aspeto ou parte de verdade, de beleza, de bondade, de dinamismo, que se encontram nas coisas e em todo o universo, nas instituições humanas, nas ciências, nas artes, em todas as realidades terrenas e em particular no homem e na história: tudo isso é sinal e via para anunciar o mistério de Cristo» (cf. documento Gaudium et Spes, 57).
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O Espírito vos revelará tudo
Os apóstolos, perante todos os acontecimentos que antecederam os últimos dias da vida terrena de Jesus, deixaram-se visivelmente possuir por sentimentos de tristeza, angústia e desespero. Tudo isso os impressionou mais do que as coisas maravilhosas que tinham testemunhado durante a sua vida com Ele. Mas o que agora lhes é revelado durante a Última Ceia ultrapassa toda a sua capacidade de compreensão.
Seja como for, talvez não seja a «vertente intelectual» o que os preocupa mais. Nessa altura, estão bem mais preocupados com o facto de Jesus os deixar do que com o porquê e o sentido que pode revestir essa ausência, que Jesus diz ser momentânea. Jesus explica o sentido profundo da sua partida, mas eles estão com os olhos tapados. No que a essa ausência diz respeito, trata-se mais da passagem a uma outra dimensão do que duma separação, mais duma outra maneira de se manifestar do que da necessidade de se esconder. Mas eles continuam cegos. No entanto, antes de os deixar, Jesus assegura-lhes o dom do Espírito Santo, o qual, sendo espírito de verdade, os conduzirá à possessão da verdade total. Jesus que «parte» é o Jesus que «manda» do Pai o Espírito Santo (cf. Jo 14, 16-15. 26; 15,26. 7-8. 12-14).
A partir de então, o Espírito será a perene e definitiva manifestação de Jesus, do Filho de Deus feito homem para salvar os homens. O Espírito testemunha com a sua luz e com a força do seu amor que Jesus está sempre presente e operante, que Jesus é a revelação do amor do Pai feito pessoa. A Trindade é, pois, este fluxo de amor que perpassa entre o Pai, o Filho e o Espírito e que se derrama nos nossos corações, para que, amando-nos como Jesus nos amou, amemos todos a Deus, entrando assim na intimidade com a Comunidade de Amor.
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SOLENIDADE DA SS. TRINDADE
O amor não se «raciocina», vive-se
A comunidade trinitária é um mistério, uma realidade indizivelmente maior que toda a capacidade (limitada) de compreensão do homem... Que Deus, no seu projeto de criação, tenha «decidido» amar o homem, é já um mistério. Mais: que Deus Se tenha feito um de nós em Jesus para salvar o homem, é ainda maior mistério. Que esse Ele tenha dado a vida, de maneira cruenta, pelo homem é o cúmulo do mistério.
Nesse espírito de contemplação e acatamento, gostaria de propor - sem comentários - alguns textos do evangelista João que «demonstram», por assim dizer, a identidade das três Pessoas que constituem a essência da Trindade; que nos falam, enfim, de três pessoas distintas que, porém, são um único Deus: «Quem me vê a mim, vê Aquele que me enviou» (Jo 12,45). «Se me conhecêsseis, também conheceríeis o meu Pai» (Jo 14,7). «Acreditai que Eu estou no Pai e o Pai está em mim» (Jo 14,11). «Se me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu rogarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador (trata-se do Espírito), para estar convosco para sempre» (Jo 14,15).
«O que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai... Se alguém me ama, guardará a minha palavra e o meu Pai amá-lo-á e viremos a ele e faremos nele a nossa morada» (Jo 14,21.23). «Quando vier o Consolador, que vos hei-de enviar da parte do meu Pai, o Espírito da Verdade que procede do Pai, Ele testemunhará acerca de mim» (Jo 15,26).
«Todo aquele que nega o Filho, também não reconhece o Pai e aquele que confessa o Filho reconhece o Pai» (Jo 2,23). «O mandamento (do Pai) é este: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros como Ele nos amou. Aquele que observa os seus mandamentos, permanece em Deus e Deus nele. E conhecemos que Ele permanece em nós pelo Espírito que nos deu» (1Jo 3,23-24).
Seja como for, é próprio do mistério reservar surpresas. Deus nunca cessa de maravilhar o homem, porque a sua maneira de proceder não é a maneira de proceder do homem. Demos um exemplo. Abraão sabe, sabendo dos confins das suas limitações e da precariedade das suas seguranças e acredita que os seus planos não são necessariamente os melhores.
Esse deixar fazer a Deus certamente significou uma mudança radical na sua vida, mas foi a condição indispensável para encontrar o sentido para ela. Por outras palavras, também Abraão, à sua maneira e segundo as suas circunstâncias, terá pesado os «prós» e os contras. À sua capacidade de raciocínio lógico terá parecido uma temeridade tomar a iniciativa de largar tudo para seguir o apelo de Deus. Mas ele soube intuir que as decisões essenciais da vida passam ao largo da racionalidade e da razoabilidade humanas.
Um só Deus em três Pessoas
«Um só Deus em três pessoas». Esta foi sempre - e sempre será - uma preposição que, a nível puramente intelectual, só levanta problemas. Nesse aspeto, seria muito mais fácil não ter que lidar com este tema. Mas é inútil tentar passar ao lado e esconder essa dificuldade. Por outro lado, talvez tenhamos que abandonar, pelo menos um pouco, a mania de resolver todas as questões da existência em termos de racionalidade no sentido humano do termo. Talvez haja racionalidade de outra espécie. Além do mais, talvez não nos faça mal admitir que e o padrão da racionalidade como tal não é necessariamente o intelecto humano; e então porquê o nosso?
Ora bem, segundo a visão bíblica, o termo de referência da razoabilidade das coisas não é o homem, mas sim Deus. Daí se segue que uma determinada realidade é razoável ou deixa de o ser, não por se adequar à razão humana, mas sim por se adequar ou não às «razões» de Deus. Pretender, pois, compreender a natureza do próprio Deus com a razão humana, além de ser estupidamente pretensioso, seria tentar moldar o próprio Deus às formas (limitadas) da mesma razão humana. O que, para mim, seria de alguma forma ainda mais absurdo do que aceitar o mistério de um só Deus em três pessoas.
É claro que nós gostaríamos de poder controlar a realidade «Deus»! Sim, gostaríamos tanto de poder dizer: «Deus está aqui!» ou «Deus é assim!». Mas não é possível. No fundo, de alguma forma, é essa a base e a essência do pecado original. O máximo que podemos dizer é o que Ele não é. Ou seja, mais concretamente, Deus não cabe nos nossos esquemas e nas nossas categorias, não cabe nas imagens ou representações que dele teimamos fazer.