1. ASSIM TUDO COMEÇOU

   Esta é uma história igual à história de tanta gente. É a história dum emigrante. Era um emigrante que não se distinguia dos outros colegas por nada de especial. Chamava-se Abraão. Mas este também não era um nome único. Naquela terra, havia mais Abraões, se assim é possível a gente exprimir-se.

 

 

   Quanto à profissão que exercia, também não era nada de especial. Havia outros que faziam o mesmo. Ele cuidava do negócio que o seu pai lhe tinha deixado. Era uma loja, onde vendia estátuas. E o artigo que tinha mais saída era a estátua do deus daquela região. As pessoas compravam essa estátua para a colocar em casa. Como em toda a parte, as pessoas julgavam que as estátuas as protegiam e lhes davam sorte. Bem, mas acreditassem ou não, o facto é que as pessoas da terra viviam bem e em paz...

 

   Mas Abraão era um homem com um feitio especial. Fervia em pouca água, como se costuma dizer. Além disso, era um sonhador. Quer dizer, lá vender estátuas, ele vendia-as, mas não acreditava muito no poder delas. Achava que tudo aquilo não tinha muita razão de ser, porque ele vendia também estátuas de outros deuses e as pessoas também punham nelas uma fé muito grande.

 

   Enfim, Abraão começava a achar que aquilo eram deuses a mais. Aliás, parece que até já alguém lhe tinha ouvido dizer que não acreditava nisso. Ora, como é fácil de entender, a gente não gostava de ouvir essas coisas. O que é certo é que, um dia, aparece lá na loja do Sr. Abraão uma senhora com um bolo muito cheiroso, dizendo: «Olhe, que o fiz eu!». «E daí?! – resmungou ele. - «É que queria que mo colocasse ali em frente daquela imagem!» - disse a senhora. Abraão lá fez o frete, mas, quando a senhora saiu da loja, ele não aguentou mais... Aquilo estava a tornar-se insuportável. A mostarda chegou-lhe mesmo ao nariz. Era a última gota de água. Não podia aguentar a superstição daquela gente. Aliás, há muito tempo que andava a magicar numa ideia: não, não ia ficar ali naquela terra para o resto da vida. Se ainda não tinha tomado essa decisão, era por causa da família. E, para ele, a família tinha uma importância fundamental... Mas, vontade não lhe faltava!

 

   Mas a gente acaba por se cansar de tudo. E a visita dessa senhora tinha sido de facto a última gota de água. E Abraão rebentou mesmo. Começou a deitar por terra e a partir todas as estátuas. Aquilo parecia um autêntico chinfrim! Tanto é que acorreram logo os vizinhos para ver o que era. Mas ninguém se atrevia a entrar. Abraão era um bom homem, mas, quando perdia as estribeiras, ninguém o segurava. Quer dizer, era um homem de extremos. Era um radical e, por isso, nem todos se atreviam a enfrentá-lo... De resto, afinal, que tinham eles a ver com isso? Que partisse as estátuas à vontade, que o mal era só para ele e mais ninguém...

 

   Entretanto, foi chamado o seu velho pai. Um tanto apavorado ao ver o filho no meio de tanto caco, ele perguntou: «Mas, que é que foi isto? O que aconteceu?» Ora, se havia alguém a quem Abraão dava ouvidos era o seu velho pai. Tinha-lhe um respeito sagrado. A devoção filial para ele era muito mais sagrada que todas aquelas estátuas. «Sabe, pai» – quase gaguejou Abraão – «apareceu-me aqui uma senhora com um bolo, para eu dar de comer a uma destas estátuas! O que aconteceu? Pois, aconteceu o que tinha que ser! Cada uma das estátuas quis ficar com o bolo só para si e... aí está... partiram-se umas às outras! Só uma ficou inteira. É aquela que está acolá... olhe!».

 

   Bem, diga-se de passagem que nem o pai de Abraão tinha lá muita devoção por tantos deuses. Mas, perante tal desculpa, respondeu ao filho: «Vai gozar outro. Vens-me agora com essa! As estátuas não se mexem e, portanto, não se partiram nada umas às outras!». «Ora, ainda bem, até que enfim que há alguém que diz uma coisa com sentido. Claro que não! Claro que as estátuas não podem fazer nada. Afinal de contas, não sou sozinho a pensar assim. O pai não acredita no poder destas estátuas! Pois olhe, eu também não acredito em nada disso. E já tomei uma decisão: vou deixar este negócio. Não, não quero saber mais disto para nada!».

 

   Chegado a casa, o Sr. Abraão falou com a mulher, que se chamava Sara. E contou-lhe tudo o que tinha acontecido. Agora, já ninguém o podia dissuadir da decisão que tinha tomado. Bem, Sara já tinha desconfiado de qualquer coisa por certas conversas que ele tinha tido. Mas, enfim, nunca tinha pensado que aquilo fosse mesmo a sério. Seja como for, ela já estava pronta psicologicamente para isso. E, desta vez, não havia qualquer margem para dúvidas. «Olha, Sara, vamos arrumar as coisas e vamo-nos embora daqui!»...

 

   E Abraão quase que nem a deixou falar. Ele próprio foi arrumar o que achava mais importante. Dito e feito. Começou logo ali a embalar umas coisas. Não havia nada a fazer! A maneira como ele fazia aquilo era sinal evidente de que tinha decidido a sério mudar de sítio. Não aguentava mais. Tinha que sair dali. E aquele episódio banal de a senhora oferecer um bolo a uma das estátuas tinha-lhe esgotado a paciência! Finalmente, tinha chegado o dia. Ia emigrar… Ia saber de outras terras. Ia conhecer mundo!

 

   A mulher, Sara, é que não gostou nada da brincadeira, mas que é que ela podia fazer!? Tinha que seguir o marido fosse para onde fosse. Era inútil resmungar! Não adiantava nada. Mas, mesmo assim, ainda quis saber o porquê duma decisão tão repentina: «Mas porquê tudo assim de repente? Não podias pensar nisso numa outra ocasião? Não te parece que estás a exagerar?». Resposta pronta de Abraão: «Olha, mulher, isto... ou se resolve assim ou então... nada feito! Em qualquer país, haverá um lugar onde a gente possa viver doutra maneira! E sem ter que prestar contas a tantos deuses ao mesmo tempo»!

 

   A decisão estava tomada. Sara gostava de Abraão e nem sequer duvidou se o havia de seguir ou não. De resto, mesmo que quisesse ficar para trás, não podia. E, aliás, no fundo, ela também não acreditava lá muito naquela multidão de estátuas. Por outro lado, o resto da família não tinha voz em capítulo. A decisão estava tomada e... pronto. Tinha que se partir. E, no dia seguinte, partiram bem cedo, para não darem muito nas vistas.

 

  Ocasionalmente, viu-os passar um sobrinho que se chamava Lot. Ele gostava muito dos tios e também andava com vontade de correr mundo. «Eu também quero ir convosco!»: foi a reacção dele. De resto, não demorava nada. Ia a correr e juntava a sua trouxa em três tempos. Abraão, que gostava do moço, não pôs nenhuma objecção: «Vai, força, vai lá buscar as tuas coisas, mas não demores muito! Mas, não, espera aí! Olha, acho que não vale a pena! O que levamos aqui dá bem para ti também! Deixa lá. Vem mas é daí!»... E, pronto, dito e feito! Lá foram eles ao deus-dará!