CAPÍTULO II
DIES CHRISTI
O dia do Senhor ressuscitado e do dom do Espírito
A Páscoa semanal
- « Nós celebramos o domingo, devido à venerável ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, não só na Páscoa, mas inclusive em cada ciclo semanal »: assim escrevia o Papa Inocêncio I, nos começos do século V, (15) testemunhando um costume já consolidado, que se tinha vindo a desenvolver logo desde os primeiros anos após a ressurreição do Senhor. S. Basílio fala do « santo domingo, honrado pela ressurreição do Senhor, primícia de todos os outros dias ».(16) S. Agostinho chama o domingo « sacramento da Páscoa ».(17)
Esta ligação íntima do domingo com a ressurreição do Senhor é fortemente sublinhada por todas as Igrejas, tanto do Ocidente como do Oriente. De modo particular na tradição das Igrejas Orientais, cada domingo é a anastàsimos hemèra, o dia da ressurreição,(18) e precisamente por esta sua característica, é o centro de todo o culto.
à luz desta tradição ininterrupta e universal, vê-se com toda a clareza que, embora o « dia do Senhor » tenha as suas raízes, como se disse, na mesma obra da criação, e mais diretamente no mistério do « repouso » bíblico de Deus, contudo é preciso fazer referência especificamente à ressurreição de Cristo para se alcançar o pleno sentido daquele. É o que faz o domingo cristão, ao repropor cada semana à consideração e à vida dos crentes o evento pascal, donde mana a salvação do mundo.
- Segundo o unânime testemunho evangélico, a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos aconteceu no « primeiro dia depois do sábado » (Mc 16,2.9; Lc 24,1; Jo 20,1). Naquele mesmo dia, o Ressuscitado manifestou-Se aos dois discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) e apareceu aos onze Apóstolos que estavam reunidos (cf. Lc 24,36; Jo 20,19). Passados oito dias — como testemunha o Evangelho de S. João (cf. 20,26) — os discípulos estavam novamente juntos, quando Jesus lhes apareceu e fez-Se reconhecer por Tomé, mostrando os sinais da sua paixão. Era domingo, o dia de Pentecostes, primeiro dia da oitava semana após a páscoa judaica (cf. Act 2,1), quando, com a efusão do Espírito Santo, se cumpriu a promessa feita por Jesus aos Apóstolos depois da ressurreição (cf. Lc 24,49; Act 1,4-5). Aquele foi o dia do primeiro anúncio e dos primeiros batismos: Pedro proclamou à multidão reunida que Cristo tinha ressuscitado, e « os que aceitaram a sua palavra receberam o batismo » (Act 2,41). Foi a epifania da Igreja, manifestada como povo que congrega na unidade, independentemente de toda a variedade, os filhos de Deus dispersos.
O primeiro dia da semana
- É nesta base que, desde os tempos apostólicos, « o primeiro dia depois do sábado », primeiro da semana, começou a caracterizar o próprio ritmo da vida dos discípulos de Cristo (cf. 1 Cor 16,2). « Primeiro dia depois do sábado » era também aquele em que os fiéis de Tróade estavam reunidos « para partir o pão », quando S. Paulo lhes dirigiu o discurso de despedida e realizou um milagre para devolver a vida ao jovem Eutico (cf. Act 20,7-12). O livro do Apocalipse testemunha o costume de dar a este primeiro dia da semana o nome de « dia do Senhor » (1,10). Doravante isto será uma das características que distinguirão os cristãos do mundo circunstante. Já o apontava, ao início do segundo século, o governador da Bitínia, Plínio o Jovem, constatando o hábito dos cristãos « se reunirem num dia fixo, antes da aurora, e entoarem juntos um hino a Cristo, como a um deus ».(19) De facto, quando os cristãos diziam « dia do Senhor », faziam-no atribuindo ao termo a plenitude de sentido que lhe vem da mensagem pascal: « Jesus Cristo é o Senhor » (Fil 2,11; cf. Act 2,36; 1 Cor 12,3). Reconhecia-se, deste modo, Cristo com o mesmo título usado pelos Setenta para traduzirem, na revelação do Antigo Testamento, o nome próprio de Deus, JHWH, que não era lícito pronunciar.
- Nestes primeiros tempos da Igreja, o ritmo semanal dos dias não era geralmente conhecido nas regiões onde o Evangelho se difundia, e os dias festivos dos calendários grego e romano não coincidiam com o domingo cristão. Isto comportava para os cristãos uma notável dificuldade para observar o dia do Senhor, com o seu carácter fixo semanal. Assim se explica porque os fiéis eram obrigados a reunirem-se antes do nascer do sol. (20) Todavia, a fidelidade ao ritmo semanal mantinha-se porque estava fundada no Novo Testamento e ligada à revelação do Antigo Testamento. Os Apologistas e os Padres da Igreja sublinham-no de bom grado nos seus escritos e na sua pregação. O mistério pascal era ilustrado através daqueles textos da Escritura que, conforme o testemunho de S. Lucas (cf. 24,27.44-47), o próprio Cristo ressuscitado devia ter explicado aos discípulos. Baseada nesses textos, a celebração do dia da ressurreição adquiria um valor doutrinal e simbólico, capaz de exprimir toda a novidade do mistério cristão.
Progressiva distinção do sábado
- É precisamente sobre esta novidade que insiste a catequese dos primeiros séculos, procurando distinguir o domingo do sábado hebraico. O sábado, para os judeus, impunha o dever da reunião na sinagoga e exigia a prática do repouso prescrito pela Lei. Os Apóstolos, e de modo particular S. Paulo, continuaram de início a frequentar a sinagoga, para poderem anunciar lá Jesus Cristo, ao comentar « as profecias que são lidas todos os sábados » (Act 13,27). Em algumas comunidades, podia-se registar a coexistência da observância do sábado com a celebração dominical. Bem cedo, porém, se começou a diferenciar os dois dias de forma cada vez mais nítida, sobretudo para fazer frente às insistências daqueles cristãos que, vindos do judaísmo, eram favoráveis à conservação da obrigação da Lei Antiga. S. Inácio de Antioquia escreve: « Se os que viviam no antigo estado de coisas passaram a uma nova esperança, deixando de observar o sábado e vivendo segundo o dia do Senhor, dia em que a nossa vida despontou por meio d'Ele e da sua morte [...], mistério do qual recebemos a fé e no qual perseveramos para sermos reconhecidos discípulos de Cristo, nosso único Mestre, como poderemos viver sem Ele, se inclusive os profetas, que são seus discípulos no Espírito, O aguardavam como mestre? ».(21) E S. Agostinho, por sua vez, observa: « Por isso, o Senhor também imprimiu o seu selo no seu dia, que é o terceiro após a paixão. Porém, no ciclo semanal, aquele é o oitavo depois do sétimo, isto é, depois do sábado, e o primeiro da semana ».(22) A distinção entre o domingo e o sábado hebraico vai-se consolidando sempre mais na consciência eclesial, mas em certos períodos da história, devido à ênfase dada à obrigação do descanso festivo, regista-se uma certa tendência à « sabatização » do dia do Senhor. Não faltaram, inclusive, sectores da cristandade em que o sábado e o domingo foram observados como « dois dias irmãos ».(23)
O dia da nova criação
- A comparação do domingo cristão com a conceção do sábado, própria do Antigo Testamento, suscitou também aprofundamentos teológicos de grande interesse. De modo particular, evidenciou-se a ligação especial que existe entre a ressurreição e a criação. Era, de facto, natural para a reflexão cristã relacionar a ressurreição, acontecida « no primeiro dia da semana », com o primeiro dia daquela semana cósmica (cf. Gn 1,1-2,4) em que o livro do Génesis divide o evento da criação: o dia da criação da luz (cf. 1,3-5). O relacionamento feito convidava a ver a ressurreição como o início de uma nova criação, da qual Cristo glorioso constitui as primícias, sendo Ele « o Primogénito de toda a criação » (Col 1,15), e também « o Primogénito dos que ressuscitam dos mortos » (Col 1,18).
- O domingo, com efeito, é o dia em que, mais do que qualquer outro, o cristão é chamado a lembrar a salvação que lhe foi oferecida no batismo e que o tornou homem novo em Cristo. « Sepultados com Ele no batismo, foi também com Ele que ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que O ressuscitou dos mortos » (Col 2,12; cf. Rom 6,4-6). A liturgia põe em evidência esta dimensão batismal do domingo, quer exortando a celebrar os batismos, para além da Vigília Pascal, também neste dia da semana « em que a Igreja comemora a ressurreição do Senhor », (24) quer sugerindo, como oportuno rito penitencial no início da Missa, a aspersão com a água benta, que evoca precisamente o evento batismal em que nasce toda a existência cristã. (25)
O oitavo dia, imagem da eternidade
- Por outro lado, o facto de o sábado ser o sétimo dia da semana fez considerar o dia do Senhor à luz de um simbolismo complementar, muito apreciado pelos Padres: o domingo, além de ser o primeiro dia, é também « o oitavo dia », ou seja, situado, relativamente à sucessão septenária dos dias, numa posição única e transcendente evocadora, não só do início do tempo, mas também do seu fim no « século futuro ». S. Basílio explica que o domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo actual, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no seu caminho.(26) Nesta perspectiva do dia último, que realiza plenamente o simbolismo prefigurativo do sábado, S. Agostinho conclui as Confissões falando do eschaton como « paz tranquila, paz do sábado, que não entardece ».(27) A celebração do domingo, dia simultaneamente « primeiro » e « oitavo », orienta o cristão para a meta da vida eterna.(28)
O dia de Cristo-luz
- Nesta perspetiva cristocêntrica, compreende-se uma outra valência simbólica que a reflexão crente e a prática pastoral atribuíram ao dia do Senhor. De facto, uma perspicaz intuição pastoral sugeriu à Igreja de cristianizar, aplicando-a ao domingo, a conotação de « dia do sol », expressão esta com que os romanos denominavam este dia e que ainda aparece em algumas línguas contemporâneas, (29) subtraindo os fiéis às seduções de cultos que divinizavam o sol e orientando a celebração deste dia para Cristo, verdadeiro « sol » da humanidade. S. Justino, escrevendo aos pagãos, utiliza a terminologia corrente para dizer que os cristãos faziam a sua reunião « no chamado dia do sol », (30) mas a alusão a esta expressão assume, já então, para os crentes um novo sentido perfeitamente evangélico.(31) Cristo é realmente a luz do mundo (cf. Jo 9,5; veja-se também 1,4-5.9), e o dia comemorativo da sua ressurreição é o reflexo perene, no ritmo semanal do tempo, desta epifania da sua glória. O tema do domingo, como dia iluminado pelo triunfo de Cristo ressuscitado, está presente na Liturgia das Horas, (32) e possui uma ênfase especial na vigília noturna que, nas liturgias orientais, prepara e introduz o domingo. Reunindo-se neste dia, a Igreja, de geração em geração, torna própria a admiração de Zacarias, quando dirige o olhar para Cristo anunciando-O como « o sol nascente para iluminar os que se jazem nas trevas e na sombra da morte » (Lc 1,78-79), e vibra em sintonia com a alegria experimentada por Simeão quando tomou em seus braços o Deus Menino enviado como « luz para iluminar as nações » (Lc 2,32).
O dia do dom do Espírito
- Dia de luz, o domingo poderia chamar-se também, com referência ao Espírito Santo, dia do « fogo ». A luz de Cristo, de facto, liga-se intimamente con o « fogo » do Espírito, e ambas as imagens indicam o sentido do domingo cristão.(33) Mostrando-Se aos Apóstolos no entardecer do dia de Páscoa, Jesus soprou sobre eles e disse: « Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhe-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos » (Jo 20,22-23). A efusão do Espírito foi o grande dom do Ressuscitado aos seus discípulos no domingo de Páscoa. Era também domingo, quando, cinquenta dias após a ressurreição, o Espírito desceu com força, como « vento impetuoso » e « fogo » (Act 2,2-3) sobre os Apóstolos reunidos com Maria. O Pentecostes não é só um acontecimento das origens, mas um mistério que anima perenemente a Igreja.(34) Se tal acontecimento tem o seu tempo litúrgico forte na celebração anual com que se encerra o « grande domingo », (35) ele permanece também inscrito, precisamente pela sua íntima ligação com o mistério pascal, no sentido profundo de cada domingo. A « Páscoa da semana » torna-se assim, de certa forma, « Pentecostes da semana », no qual os cristãos revivem a experiência feliz do encontro dos Apóstolos com o Ressuscitado, deixando-se vivificar pelo sopro do seu Espírito.
O dia da fé
- Por todas estas dimensões que o caracterizam, o domingo revela-se como o dia da fé por excelência. Nele, o Espírito Santo, « memória » viva da Igreja (cf. Jo 14,26), faz da primeira manifestação do Ressuscitado um evento que se renova no « hoje » de cada um dos discípulos de Cristo. Encontrando-O na assembleia dominical, os crentes sentem-se interpelados como o apóstolo Tomé: « Chega aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente » (Jo 20,27). Sim, o domingo é o dia da fé. Salienta-o o facto de a liturgia dominical, como de resto a das solenidades litúrgicas, prever a profissão de fé. O « Credo », recitado ou cantado, põe em relevo o carácter batismal e pascal do domingo, fazendo deste o dia em que, por título especial, o batizado renova a própria adesão a Cristo e ao seu Evangelho, numa consciência mais viva das promessas batismais. Acolhendo a Palavra e recebendo o Corpo do Senhor, ele contempla Jesus ressuscitado, presente nos « sinais sagrados », e confessa com o apóstolo Tomé: « Meu Senhor e meu Deus! » (Jo 20,28).
Um dia irrenunciável!
- Compreende-se assim, porque mesmo no contexto das dificuldades do nosso tempo, a identidade deste dia deva ser salvaguardada e, sobretudo, vivida profundamente. Um autor oriental, do início do século III, conta que em toda a região os crentes, já então, santificavam regularmente o domingo.(36) A prática espontânea tornou-se depois, norma sancionada juridicamente: o dia do Senhor ritmou a história bimilenária da Igreja. Como se poderia pensar que ele deixe de marcar o seu futuro? Os problemas que, no nosso tempo, podem tornar mais difícil a prática do dever dominical, não deixam de sensibilizar a Igreja permanecendo maternalmente atenta às condições de cada um dos seus filhos. De modo particular, ela sente-se chamada a um novo esforço catequético e pastoral, para que nenhum deles, nas condições normais de vida, fique privado do abundante fluxo de graças que a celebração do dia do Senhor traz consigo. Dentro do mesmo espírito, tomando posição acerca de hipóteses de reforma do calendário eclesial em concomitância com variações dos sistemas do calendário civil, o Concílio Ecuménico Vaticano II declarou que a Igreja « só não se opõe àqueles que conservem a semana de sete dias, e com o respetivo domingo ». (37) No limiar do terceiro Milénio, a celebração do domingo cristão, pelos significados que evoca e as dimensões que implica, relativamente aos fundamentos mesmos da fé, permanece um elemento qualificante da identidade cristã.