INTRODUZINDO O SENTIDO DA QUARESMA

(A SEGUIR VÊM AS LEITURAS E COMENTÁRIOS PRÓPRIOS DO I DOMINGO DA QUARESMA - ANO A)
 
1. Origem da Palavra
   "Quaresma" provém do latim "Quadragesima" e significa "quarenta dias" ou, talvez mais apropriadamente, o "quadragésimo dia". Outras línguas de origem latina expressam essa idéia, como "Carême" em francês, "Quaresima" em italiano, e "Cuaresma" em espanhol. O termo latino, por sua vez, é a tradução do termo grego "Tessarakoste" (=quadragésimo), com certa ligação ao termo "Pentekoste" (Pentecostes = quinquagésimo), cuja celebração se dá no 50º dia após a Páscoa. Já os países anglo-saxões, usam o termo "Lent", de origem teutônica.
2. Conceito de Quaresma
   A Quaresma é o período de preparação para a Páscoa do Senhor, cuja duração é de 40 dias. Tal período, portanto, inicia-se na Quarta-Feira de Cinzas e se estende até o Domingo de Ramos, uma semana antes da Páscoa. O período é, assim, marcado pela penitência, pela realização constante de jejuns, pela conversão e pela preparação dos catecúmenos para o batismo.
   No início da Quaresma, na Quarta-Feira de Cinzas, os fiéis têm suas frontes marcadas com cinzas, como os primitivos penitentes públicos, excluídos temporariamente da assembléia (lembrando Adão expulso do Paraíso, de onde vem a fórmula litúrgica: "Lembra-te de que és pó..."). Nos dias que se seguem, redescobrem o significado do batismo e se esforçam para tomar a cruz e seguir fielmente a Cristo. Aprofundam, então, o ódio que sentem pelo pecado e são ajudados em seus esforços pelas orações em comum.
   Esse tempo de penitência é bem recordado pela liturgia: as vestes e os paramentos usados são da cor roxa (no quarto    domingo da Quaresma, pode-se usar o rosa, representando a alegria pela proximidade do término da tristeza, pela Páscoa); o Hino de Louvor não é recitado; a aclamação do "Aleluia" também não é feita; não se enfeitam os templos com flores; o uso de instrumentos musicais torna-se moderado, apenas sustentando o canto, etc.
   Portanto, o tempo da Quaresma é um momento forte para a prática penitencial da Igreja, "particularmente apropriados aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às peregrinações em sinal de penitência, às privações voluntárias como o jejum e a esmola, a partilha fraterna (obras de caridade e missionárias)" (Catec.Igr.Cat. nº 1438). O mesmo pode-se aplicar a todas sextas-feiras do ano, tidas como dias penitenciais, cf. cân. 1250 do Código de Direito Canônico.
3. Origem do Costume
   Ainda que alguns Padres da Igreja, como São Jerônimo (+420), Sócrates historiador(+433) e São Leão Magno (+461) creditem aos Apóstolos a instituição dos quarenta dias de jejum antes da Páscoa, o fato é que o jejum pré-pascal era observado somente em alguns dias, pois nenhum Padre do período pré-Nicéia (325) parece ter conhecimento de tal tradição. Em outras palavras, ainda que o jejum pré-pascal fosse praticado desde os primórdios do Cristianismo, o que denota a existência de uma tradição apostólica sobre o assunto, não existe segurança para afirmar que tal jejum durasse realmente quarenta dias, como dá a entender a quaresma. Prova disso temos em Tertuliano que, ao trocar o Catolicismo pela heresia Montanista, passou a achar deficitário o jejum dos católicos, uma vez que os montanistas jejuavam por 15 dias (de Jejunio II e XIV; de Orat. XVIII); também Santo Ireneu, em uma carta dirigida ao papa São Vítor, sobre a controvérsia da data da Páscoa, diz que "alguns acham que devem jejuar por um dia, outros por dois dias, outros por vários dias, e ainda há outros que calculam 40 horas do dia e da noite para realizarem o jejum"; a Didascália dos Apóstolos (250) e S. Dionísio de Alexandria também mencionam o jejum pascal de forma difusa. Parece que a primeira menção à Quaresma, como período de jejum de 40 dias, pode ser encontrada nas Cartas Festais de Santo Atanásio (331) e depois, em 339, da pena do mesmo santo, ao se dirigir à comunidade de Alexandria, pedindo para que esta observe o costume dos 40 dias conforme praticado pela Igreja de Roma e grande parte da Europa.
4. Os Quarenta Dias
   Indubitavelmente, o período de tentação de Cristo no deserto, bem como os exemplos de Noé (40 dias na Arca), Moisés (40 anos vagando no deserto) e Elias, exerceram grande influência na determinação do tempo de duração da Quaresma. É ainda possível que o fato de Cristo ter permanecido por volta de 40 horas no sepulcro, tenha também sido levado em conta...
   O historiador Sócrates nos informa, no séc. V, que a Quaresma durava seis semanas em Roma, mas apenas três destas semanas eram dedicadas ao jejum: a primeira, a quarta e a sexta. Tendo, porém, o número de 40 dias se estabelecido solidamente, outra alteração acabou por se introduzir: deixou-se de se fazer alguns jejuns durante o período de 40 dias e passou-se a jejuar durante todo o período de 40 dias...
   Em Peregrinação de Etéria, fala-se de um jejum de oito semanas praticado pela comunidade de Jerusalém, excluídos os sábados e domingos; temos, assim, oito semanas de cinco dias, o que totaliza os 40 dias de jejum.
   Já no tempo de São Gregório Magno (590-604), Roma observa seis semanas de seis dias, totalizando 36 dias, a décima parte de um ano completo (365 dias). Contudo, algum tempo depois, o desejo de manter-se os 40 dias fez com que se esticasse o período até a Quarta-Feira de Cinzas, como ainda hoje é praticado.
5. Natureza do Jejum
   Também não são poucas as posições sobre este tema. Sócrates, ao se referir em sua História Eclesiástica (V,22) sobre a prática do séc. V, nos informa que "alguns se abstêm de todo tipo de criatura que tenha vida, outros comem somente peixe. Alguns comem pássaros e peixes [...]; outros se abstêm dos frutos de casca dura e de ovos. Alguns comem somente pão; outros nem isso. Há também os que se fartam de comida após a hora nona".
   Epifânio, Paládio e o autor de "Vida de São Melânio o Jovem" eram mais rigorosos, defendendo um jejum completo de 24 horas ou mais, especialmente durante a Semana Santa.
   Entretanto, São Gregório, escrevendo para Santo Agostinho da Inglaterra, dita a regra: "nós nos abstemos da carne fresca e   de todas as coisas que vêm da carne fresca, como o leite, o queijo e os ovos". Foi essa decisão que mais tarde passou a figurar no "Corpus Iuris", tornando-se a regra comum da Igreja, ainda que algumas exceções e dispensas, especialmente quanto aos laticínios, fossem permitidas.
   Quanto ao relaxamento dos jejuns, vemos que já desde os tempos do historiador Sócrates (séc. V) havia cristãos que praticavam o jejum até a hora nona, isto é, até às três horas da tarde; já por volta do ano 800, passou-se a praticar até às duas horas da tarde. As regras atuais da Igreja para o jejum, bem como para a Quaresma podem ser encontradas nos cânones 1249 à 1253 do Código de Direito Canônico, conforme transcrito abaixo:

   "Cân.1249 - Todos os fiéis, cada qual a seu modo, estão obrigados por lei divina a fazer penitência; mas, para que todos sejam unidos mediante certa observância comum da penitência, são prescritos dias penitenciais, em que os fiéis se dediquem de modo especial à oração, façam obras de piedade e caridade, renunciem a si mesmos, cumprindo ainda mais fielmente as próprias obrigações e observando principalmente o jejum e a abstinência, de acordo com os cânones seguintes.
   Cân.1250 - Os dias e tempos penitenciais, em toda a Igreja, são todas as sextas-feiras do ano e o tempo da Quaresma.
   Cân.1251 - Observe-se a abstinência de carne ou de outro alimento, segundo as prescrições da Conferência dos Bispos, em todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades; observem-se a abstinência e o jejum na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
   Cân.1252 - Estão obrigados à lei da abstinência aqueles que tiverem completado catorze anos de idade; estão obrigados à lei do jejum todos os maiores de idade até os sessenta anos começados. Todavia, os pastores de almas e os pais cuidem que sejam formados para o genuíno sentido da penitência também os que não estão obrigados à lei do jejum e da abstinência, em razão da pouca idade.
                                                                                                                       fONTE: cLERUS.ORG.
   Cân. 1253 - A Conferência dos Bispos pode determinar mais exatamente a observância do jejum e da abstinência, como também substituí-los total ou parcialmente, por outras formas de penitência, principalmente por obras de caridade e exercícios de piedade".
   Isto colocado, observamos, segundo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o seguinte:
-- A abstinência começa aos catorze anos e vai até o final da vida.
-- jejum se inicia aos dezoito anos e vai até os cinquenta e nove anos completos.
-- Tradicionalmente, o jejum consiste em não se tomar mais que uma refeição completa ao dia ou, então, em ingerir alguma quantidade de alimento até duas vezes ao dia.
-- A CNBB determinou que, exceto na Sexta-Feira Santa, todas as outras sextas-feiras, inclusive as da Quaresma, têm sua abstinência convertida em "outras formas de penitência, principalmente em obras de caridade e exercícios de piedade".
   Para finalizar, existem documentos do Magistério que abordam o assunto, principalmente quanto a abstinência e o jejum, tão ligados à Quaresma, de uma forma mais exaustiva. São eles:
Constituição Apostólica "Paenitemini", de Paulo VI;
Exortação Apostólica "Reconciliatio et Paenitentia", de João Paulo II.
                                                                                                                             Fonte: Clerus.org. Autoria: Bruno Valadão
 
 

I DOMINGO DA QUARESMA

Temas

de

fundo

1ª leitura (Dt 26,4-10):  O sacerdote tomará o cesto e colocá-lo-á diante do altar do Senhor, vosso Deus. Depois, na presença do Senhor, recitará as seguintes palavras: «O meu pai era um arameu errante, que levou a sua família para o Egito. Eram um pequeno número de peregrinos quando foram para lá, mas tornaram-se uma nação forte e numerosa. Os egípcios trataram-nos com severidade e obrigaram-nos a trabalhar como escravos. Então gritámos pelo auxílio do Senhor, Deus dos nossos antepassados. Ele ouviu-nos e viu o nosso sofrimento, os nossos trabalhos e a nossa miséria. E, pelo seu grande poder e força, libertou-nos do Egito, com grandes sinais, milagres e prodígios. Trouxe-nos para aqui e deu-nos esta terra, onde corre o leite e o mel. Por isso, agora leva ao Senhor as primícias das colheitas que Ele te concedeu, depondo-as aos seus pés e depois prostrar-te-ás diante do Senhor, teu Deus».

 

* Profissão de fé do povo eleito.

 

   A fé original dos israelitas era duma extrema simplicidade. Ou seja, não constava de tantos princípios e verdades abstratas. O que contava para eles era o que Deus tinha feito - e continuava a fazer - por eles no dia a dia, na sua história. Tudo isso era motivo de agradecimento. Enfim, fazendo uso de termos mais atuais e, de certo modo, mais elaborados, poderemos dizer que a sua fé consistia no «facto pascal», ou seja, na certeza da libertação do jugo do Egíto, complementada, por assim dizer, alguns anos mais tarde, com a posse da Terra Prometida. Então, os israelitas, para mostrar o seu agradecimento, ofereciam a Deus as primícias da terra. Pois bem, nessa linha, talvez hoje em dia seja preciso fazer uma espécie de purificação na nossa fé. É que também o centro da fé cristã, no fundo, mais do que um manual de princípios, consiste num facto histórico: a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. É essa a Pessoa - e não propriamente os princípios - que nos salva. É Ele - Jesus - a nossa Páscoa, ou seja, a libertação de todo o mal. É pela Páscoa que se realiza a doação de todos os bens que nos vêm do Pai. Na Eucaristia (=ação de graças a Deus) torna-se presente esta realidade: tornamo-nos livres do Mal e somos enriquecidos pela própria vida de Deus. É por isso que a Eucaristia é o ato supremo de ação de graças a Deus.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (Rm 10,8-13):  A palavra de Deus está perto de ti, nos teus lábios e no teu coração. É esta a mensagem de fé que eu vos tenho anunciado. Se confessares que Jesus é Senhor e acreditares de coração que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo. Com efeito, é pela nossa fé que somos reconciliados com Deus. É pela nossa confissão que somos salvos. É a Escritura que o diz: «Quem acredita nele não ficará desiludido». Isto inclui a todos, pois não há diferença entre judeus e gentios. Deus é o mesmo Senhor de todos e enche das suas bênçãos todos os que O invocam. Como diz a Escritura, «todos os que invocam o Senhor serão salvos».

 

* Se acreditares que Jesus é o Senhor serás salvo.

 

   Segundo a mentalidade comum dos judeus, vigente no tempo de Jesus (aliás, em todos os tempos da história deles), pensava-se que a salvação provinha - de maneira automática - do cumprimento material da Lei (Lei de Moisés). Ora, segundo a ótica de Paulo, Jesus vem dizer que não é a Lei em si que salva, até porque - em termos rigorosos - só Deus é que pode salvar. Sim, é exatamente este facto que Paulo põe em evidência. Mais, Paulo acrescenta que a salvação se «personifica» na figura de Jesus Cristo, pelo que, acreditando (apostando a nossa vida) realmente em Jesus, nos salvamos. Então, nessa linha, visto o assunto em termos globais, pelo facto de rejeitarem Jesus Cristo, os judeus rejeitaram a própria salvação. Segundo a ótica bíblica, a causa da nossa salvação é o acontecimento pascal realizado em Cristo. Este trecho da Carta aos Romanos é, portanto, um convite a não cometermos o mesmo erro, ou seja, a não pensarmos que a salvação depende das próprias obras e não das «obras» de Cristo. Pensando bem e utilizando um certo tipo de linguagem que ainda persiste, por mais obras (méritos) que possamos acumular, a verdade é que elas nunca serão suficientes para «comprar um produto» (o céu) que tem valor infinito. Isso não significa que não tenhamos que fazer nada. Mas, em termos de salvação, sem a «obra» de Cristo, tudo o que fizermos é nada. Por conseguinte, é só acreditando que as obras de Cristo são de alguém que, além de ser perfeitamente homem, também é perfeita e verdadeiramente Deus, é que a salvação faz sentido e «o problema tem solução». Esta é uma confissão de fé absolutamente fundamental para quem se queira chamar cristão.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho Lc 4,1-13):  Jesus voltou do Jordão cheio do Espírito Santo e foi conduzido por ele para o deserto, onde foi tentado pelo demónio durante quarenta dias. Durante todo esse tempo, não comeu nada e, por isso, no fim, começou a sentir fome. O demónio disse-lhe então: «Se és o Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão». Jesus respondeu-lhe: «A Escritura diz que nem só de pão vive o homem». Então o demónio levou-o e mostrou-lhe num instante todos os reinos do mundo. «Dar-te-ei todo este poder e toda esta riqueza», disse-lhe o demónio. «Tudo me foi dado e eu dou-o a quem eu quiser. Pois bem, tudo será teu se, prostrado, me adorares». Jesus respondeu-lhe: «A Escritura diz que se deve adorar e servir só o Senhor, nosso Deus». Depois, o demónio conduziu-o a Jerusalém, ao lugar mais alto do Tempo, e disse-lhe: «Se és o Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois a Escritura diz que Deus dará ordem aos seus anjos para que te guardem»... Mas Jesus respondeu: «A Escritura também diz que não se deve tentar o Senhor nosso Deus». Esgotada toda a espécie de tentações, o demónio deixou-o durante algum tempo.

 

* Só ao Senhor, nosso Deus, adorarás.

 

   No primeiro domingo da Quaresma, à semelhança dos outros dois sinópticos (Mateus e Marcos, que «presidem» aos outros dois ciclos litúrgicos), também o evangelista Lucas apresenta o relato das tentações como uma espécie de paradigma de como Jesus se sujeitou a todas as contingências da vida, para ser fiel até ao fim ao plano de Deus acerca da salvação da humanidade. Mas o evangelista Lucas, neste ponto particular, distingue-se dos outros dois pelo facto de afirmar explicitamente que Jesus, para além de ser tentado durante todos os quarenta dias que passou no deserto, nem por isso deixou de ser tentado. Esta ideia é dedutível deste pormenor: Lucas acrescenta que «o diabo se afastou, para voltar no tempo determinado». É interessante notar também que, ao contrário de Mateus e Marcos, Lucas não coloca as tentações depois do batismo de Jesus, mas a seguir à genealogia que começa em Adão (em Mateus, começa em Abraão). Assim sendo, como homem verdadeiro que é (e Lucas acentua muito a humanidade de Cristo), Jesus, o novo Adão, é tentado como qualquer outro homem. Quase parece querer dizer que a tentação é algo de inerente à própria natureza humana. Mas nem por isso o evangelista deixa de acentuar que Jesus sai vitorioso graças à sua aderência à Palavra de Deus. Ora bem, deverá ser também essa aderência à Palavra a arma de cada um de nós.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

* Gritámos pelo auxílio do Senhor e Ele ouviu o nosso grito. 

*Todos os que invocam o Senhor serão salvos.  

* Nem só de pão vive o homem... Só a Deus adorarás e servirás.

NEM SÓ

DE PÃO

VIVE

HOMEM.

 

  • Um povo consagrado

     A fé das pessoas que faziam parte do povo de Deus, ao início, era uma fé simples que se traduzia em atitudes e comportamentos práticos. Não era sustentada por teorias complicadas ou elaborações «teóricas/teológicas» abstractas. Aquilo a que hoje chamamos «teologia» era algo que ainda não existia. E, por isso, quando procuravam como que «dialogar» com Deus, uma das poucas coisas em que pensavam e celebravam era a forma concreta como Deus chamava e agia em favor do povo nas circunstâncias do dia a dia e também nos acontecimentos mais importantes. Ou seja, o exercício de fé que punham em prática era, substancialmente, narrar o que, no passado, Deus tinha feito a favor deles.

    Assim, de alguma maneira, pode-se afirmar que o primeiro núcleo essencial da fé de Israel está contido na primeira leitura de hoje. Para além do facto de celebrarem o que Deus tinha feito em favor dos Patriarcas - e dum modo particular em favor de Jacob (o arameu errante), - o centro da sua fé era um facto pascal: a libertação do poder dos egípcios, a passagem para a liberdade. E a oferta das primícias da terra (bem como a consagração dos primogénitos, quer dos animais quer dos homens) era também vista como uma forma simples e existencial de tributar a Deus o seu louvor e, no fundo, reconhecer que tudo era um dom, e que era de Deus que tudo lhes provinha. Esta oferta era uma verdadeira profissão de fé no Deus que os tinha criado e que, a cada instante, os mantinha em vida.

  • A pátria esperada

   Na história dos povos, há, todavia, momentos mais solenes, que constituem uma autêntica epopeia. São precisamente os momentos altos e únicos da libertação dos opressores ou da independência. Em boa verdade, trata-se da constituição, do nascimento - ou pelo menos do renascimento - como povo, em que o mesmo toma consciência das razões e dos motivos que justificam o destino a que é chamado. Quando um povo não tem consciência de ter um papel a desempenhar no concerto das nações, o seu destino permanece confinado à normalidade e à superficialidade; talvez corra até o risco de não fazer sentido. 

   Sempre que o Povo de Israel se esquecia desse Deus que os tinha libertado da escravidão - e isso acontecia com frequência - como que perdiam a própria identidade e deixavam de exercer a missão para que tinha sido criado como povo. E, em meu entender, aplicando o caso a nós mesmos, quando, na nossa história, porventura, as chamadas datas nacionais já não dizem nada à maioria da gente, isso significa que a nação está «morta» e não tem sequer capacidade de se regenerar. Daí a importância de que algumas datas sejam revitalizadas, para que as coisas adquiram sentido. Era esse o intuito das celebrações no povo de Israel - no início e ao longo da sua história - e, já agora, deve ser também essa a finalidade das celebrações em todos os outros povos.

    O povo de Israel sentiu a sua libertação como obra prodigiosa de Deus, e não apenas como fruto da capacidade e iniciativa humanas. É certo que exagerar na forma como se vive esta experiência pode levar a algum fanatismos e até mesmo a formas de fundamentalismo cujos efeitos todos nós bem conhecemos. Mas, por outro lado, é um facto que, sem estes ideais, os povos parecem morrer inanimados nas praias da mediania e da falta de motivação. Os cidadãos como que andam por aí por ver andar os outros. Para que coisas importantes aconteçam, é preciso que, diante dos olhos, se possa vislumbrar uma outra pátria para a qual se caminha.

  • História como história de salvação

   As tendências ditas modernas dizem-nos que há que haver separação entre o sagrado e o profano e isso, confesso, pelo menos em teoria, aceito-o como uma condição para evitar o fanatismo e o fundamentalismo de que falei acima. Mas, no que à chamada civilização ocidental diz respeito, se calhar, passou-se do oito ao oitenta. Ou seja, como está acontecendo em muitas partes, a tendência é tirar a Deus do altar para lá colocar o homem. Foi sempre essa a grande tentação, o grande pecado original. E continua a ser essa a realidade. Mas a verdade é que as pessoas não se sentem muito confortáveis, porque não é possível, digamos assim, seccionar a alma entre necessidades e exigências sagradas e mundanas. Se é possível alguma distinção - e é - ela é muito mais teórica do que prática.

    Não me parece razoável (ou, pelo menos, não deve ser) esperar - porque não é possível - que a pessoa construa compartimentos estanques na sua consciência e na sua vida, como se fosse possível restringir, por exemplo, o espiritual e sagrado ao nível exclusivo da consciência e da vida privada.

   Parece-me que um dos erros em que se cai frequentemente nos dias de hoje - como sempre foi - é pretender que a realidade de Deus desapareça por completo da visão do mundo e das coisas. E é essa a realidade - não só hoje, mas sempre - nos chamados regimes totalitários. E é também essa a razão por que todos os totalitarismos, tanto de direita como de esquerda, pretendem ter sob controlo tudo o que tem a ver com a fé e a religião. Ora, é claro que, na ótica cristã, isso não é possível (seria uma contradição), sob pena de a vida perder sentido e perspetiva de esperança. Por outras palavras, deste ponto de vista, a realidade de Deus é algo que deve acompanhar sempre a existência das pessoas. E então, nesse sentido, a história dos homens e das comunidades ou nações terá tanto mais sentido quanto mais estiver relacionada com o papel de Deus nessa mesma história. Por isso, pode-se dizer que o que melhor resume e realiza a história das pessoas é que ela se torne também história da salvação.

  • Jesus, protagonista da história

    Destas considerações, pode deduzir-se que a libertação e a salvação que mais contam são a libertação e a salvação interiores; a libertação e a salvação que durem para sempre. E, de facto, enquanto a pessoa não estiver convencida que é indispensável ser livre interiormente (mas ser livre não significa não depender de ninguém, mas significa também aceitar a ligação com Deus, pois não se excluem, antes pelo contrário. Só essa ligação nos porá em condições de se libertar de forma completa no que diz respeito às outras propostas de libertação. É esse o exemplo de liberdade que Jesus dá nas tentações. O homem não pode ser realmente livre enquanto não superar o egoísmo, a procura ansiosa e a sujeição aos bens materiais, a sede insaciável de possessão e de poder sobre os outros, a ilusão do sucesso imediato.

   Nesse sentido, ao fazer uma proposta radical quanto ao modo de entender a sociedade e a real libertação, Jesus torna-se protagonista da história, tanto que, efetivamente, ela fica dividida em duas: antes e depois de Cristo. Não obstante todos os pecados e todas as falhas durante a sua história, desde que siga as pegadas de Cristo, a Igreja tem a missão indeclinável de libertar a humanidade sobretudo das forças do mal: da miséria, da ignorância, do ódio, da violência, do hedonismo, do relativismo, do frenesim doentio do consumo e da idolatria do materialismo e da superficialidade. 

   Nem sempre o consegue? Infelizmente, isso é verdade. Mas, a Igreja, por mais que tentem fazer com que esteja acantonada ao espaço reduzido da sacristia, não pode renunciar ao dever que tem de continuar a anunciar que o caminho para a verdadeira liberdade ainda não está totalmente feito. Continuamos a viver a dimensão da caminhada em direcção à Terra Prometida e não se pode deixar passar aos outros a impressão e a convicção de que a terra da peregrinação é a terra definitiva.

  • A essência da tentação

   As tentações de Jesus - em qualquer um dos sinópticos - são um paradigma de toda a vida de Jesus e também de todo o cristão. Independentemente do número simbólico dos 40 dias - que, em termos simbólicos, representam um longo período de tempo e sobretudo o período de peregrinação que temos que viver - as tentações são uma tentativa, por parte do Demónio e, por conseguinte, por parte das forças do Mal, de desviar Jesus da sua missão neste mundo; e, particularmente, de O desviar da sua forma de se relacionar com Deus Pai. No fundo, bem vistas as coisas, o objetivo das propostas do Demónio era desviar a Jesus da sua identidade com os planos do Pai.

    É também esta a essência de toda a tentação humana: a de convencer as pessoas que, para viver a vida, não é necessária a dependência de Deus; não é necessário estar sujeito, digamos assim, à Palavra de Deus. Adão, que está sujeito à mesma tentação, cai; e isso significa para ele a perda de sentido. Como no Livro do Génesis, também no episódio das tentações de Jesus, o Demónio não tem escrúpulo de qualquer espécie em recorrer à mentira para atingir os seus fins e faz propostas que sabe que não pode cumprir, até porque não tem poder para isso.

   Também no caso das tentações humanas, o Demónio não faz cerimónia quanto às promessas com que tenta induzir as pessoas. O que lhe interessa é que estas se convençam que, para chegar à libertação, não precisam de Deus para nada. Pois bem, a resposta das pessoas - e do cristão em particular - não pode ser senão a do próprio Jesus: «Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto» (Lc 4,8).

 

 

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA A QUARESMA DE 201
9

«A criação encontra-se em expetativa ansiosa,
aguardando a revelação dos filhos de Deus»
(Rm 8, 19)

 

Queridos irmãos e irmãs!

   Todos os anos, por meio da Mãe Igreja, Deus «concede aos seus fiéis a graça de se prepararem, na alegria do coração purificado, para celebrar as festas pascais, a fim de que (…), participando nos mistérios da renovação cristã, alcancem a plenitude da filiação divina» (Prefácio I da Quaresma). Assim, de Páscoa em Páscoa, podemos caminhar para a realização da salvação que já recebemos, graças ao mistério pascal de Cristo: «De facto, foi na esperança que fomos salvos» (Rm 8, 24). Este mistério de salvação, já operante em nós durante a vida terrena, é um processo dinâmico que abrange também a história e toda a criação. São Paulo chega a dizer: «Até a criação se encontra em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Nesta perspetiva, gostaria de oferecer algumas propostas de reflexão, que acompanhem o nosso caminho de conversão na próxima Quaresma.

1. A redenção da criação

   A celebração do Tríduo Pascal da paixão, morte e ressurreição de Cristo, ponto culminante do Ano Litúrgico, sempre nos chama a viver um itinerário de preparação, cientes de que tornar-nos semelhantes a Cristo (cf. Rm 8, 29) é um dom inestimável da misericórdia de Deus.

   Se o homem vive como filho de Deus, se vive como pessoa redimida, que se deixa guiar pelo Espírito Santo (cf. Rm 8, 14), e sabe reconhecer e praticar a lei de Deus, a começar pela lei gravada no seu coração e na natureza, beneficia também a criação, cooperando para a sua redenção. Por isso, a criação – diz São Paulo – deseja de modo intensíssimo que se manifestem os filhos de Deus, isto é, que a vida daqueles que gozam da graça do mistério pascal de Jesus se cubra plenamente dos seus frutos, destinados a alcançar o seu completo amadurecimento na redenção do próprio corpo humano. Quando a caridade de Cristo transfigura a vida dos santos – espírito, alma e corpo –, estes rendem louvor a Deus e, com a oração, a contemplação e a arte, envolvem nisto também as criaturas, como demonstra admiravelmente o «Cântico do irmão sol», de São Francisco de Assis (cf. Encíclica Laudato si’, 87). Neste mundo, porém, a harmonia gerada pela redenção continua ainda – e sempre estará – ameaçada pela força negativa do pecado e da morte.

2. A força destruidora do pecado

   Com efeito, quando não vivemos como filhos de Deus, muitas vezes adotamos comportamentos destruidores do próximo e das outras criaturas – mas também de nós próprios –, considerando, de forma mais ou menos consciente, que podemos usá-los como bem nos apraz. Então sobrepõe-se a intemperança, levando a um estilo de vida que viola os limites que a nossa condição humana e a natureza nos pedem para respeitar, seguindo aqueles desejos incontrolados que, no livro da Sabedoria, se atribuem aos ímpios, ou seja, a quantos não têm Deus como ponto de referência das suas ações, nem uma esperança para o futuro (cf. 2, 1-11). Se não estivermos voltados continuamente para a Páscoa, para o horizonte da Ressurreição, é claro que acaba por se impor a lógica do tudo e imediatamente, do possuir cada vez mais.

   Como sabemos, a causa de todo o mal é o pecado, que, desde a sua aparição no meio dos homens, interrompeu a comunhão com Deus, com os outros e com a criação, à qual nos encontramos ligados antes de mais nada através do nosso corpo. Rompendo-se a comunhão com Deus, acabou por falir também a relação harmoniosa dos seres humanos com o meio ambiente, onde estão chamados a viver, a ponto de o jardim se transformar num deserto (cf. Gn 3, 17-18). Trata-se daquele pecado que leva o homem a considerar-se como deus da criação, a sentir-se o seu senhor absoluto e a usá-la, não para o fim querido pelo Criador, mas para interesse próprio em detrimento das criaturas e dos outros.

   Quando se abandona a lei de Deus, a lei do amor, acaba por se afirmar a lei do mais forte sobre o mais fraco. O pecado – que habita no coração do homem (cf. Mc 7, 20-23), manifestando-se como avidez, ambição desmedida de bem-estar, desinteresse pelo bem dos outros e muitas vezes também do próprio – leva à exploração da criação (pessoas e meio ambiente), movidos por aquela ganância insaciável que considera todo o desejo um direito e que, mais cedo ou mais tarde, acabará por destruir inclusive quem está dominado por ela.

3. A força sanadora do arrependimento e do perdão

   Por isso, a criação tem impelente necessidade que se revelem os filhos de Deus, aqueles que se tornaram «nova criação»: «Se alguém está em Cristo, é uma nova criação. O que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas» (2 Cor 5, 17). Com efeito, com a sua manifestação, a própria criação pode também «fazer páscoa»: abrir-se para o novo céu e a nova terra (cf. Ap 21, 1). E o caminho rumo à Páscoa chama-nos precisamente a restaurar a nossa fisionomia e o nosso coração de cristãos, através do arrependimento, a conversão e o perdão, para podermos viver toda a riqueza da graça do mistério pascal.

   Esta «impaciência», esta expetativa da criação ver-se-á satisfeita quando se manifestarem os filhos de Deus, isto é, quando os cristãos e todos os homens entrarem decididamente neste «parto» que é a conversão. Juntamente connosco, toda a criação é chamada a sair «da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus» (Rm 8, 21). A Quaresma é sinal sacramental desta conversão. Ela chama os cristãos a encarnarem, de forma mais intensa e concreta, o mistério pascal na sua vida pessoal, familiar e social, particularmente através do jejum, da oração e da esmola.

   Jejuar, isto é, aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração. Orar, para saber renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos necessitados do Senhor e da sua misericórdia. Dar esmola, para sair da insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de assegurarmos um futuro que não nos pertence. E, assim, reencontrar a alegria do projeto que Deus colocou na criação e no nosso coração: o projeto de amá-Lo a Ele, aos nossos irmãos e ao mundo inteiro, encontrando neste amor a verdadeira felicidade.

   Queridos irmãos e irmãs, a «quaresma» do Filho de Deus consistiu em entrar no deserto da criação para fazê-la voltar a ser aquele jardim da comunhão com Deus que era antes do pecado das origens (cf. Mc 1,12-13; Is 51,3). Que a nossa Quaresma seja percorrer o mesmo caminho, para levar a esperança de Cristo também à criação, que «será libertada da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus» (Rm 8, 21). Não deixemos que passe em vão este tempo favorável! Peçamos a Deus que nos ajude a realizar um caminho de verdadeira conversão. Abandonemos o egoísmo, o olhar fixo em nós mesmos, e voltemo-nos para a Páscoa de Jesus; façamo-nos próximo dos irmãos e irmãs em dificuldade, partilhando com eles os nossos bens espirituais e materiais. Assim, acolhendo na nossa vida concreta a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, atrairemos também sobre a criação a sua força transformadora.

Vaticano, Festa de São Francisco de Assis, 4 de outubro de 2018.

Franciscus