Temas

de

fundo

1ª leitura (Is 9,2-3.5-7):

O povo que andava nas trevas viu uma grande luz. Senhor, multiplicaste a sua alegria e aumentaste o seu júbilo. Alegram-se, pois, pelo que Tu fizeste, como os que se alegram no tempo da colheita e como se regozijam os que repartem os despojos. Tu quebraste o jugo que o oprimia, a barra que lhe feria o ombro e a vara do seu capataz. Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Ele tem nos ombros a soberania e o seu nome é: «Conselheiro admirável, Deus poderoso, Pai eterno, Príncipe da paz». O seu domínio não terá limites e o seu reino no trono de David gozará de paz para sempre. Ele o estabelecerá e consolidará com o direito e a justiça, desde agora e para sempre. Assim fará o amor ardente do Senhor do universo.

 

* Um filho nos foi dado. 

Este trecho de Isaías foi escolhido para a Festa de Natal porque se trata de um texto que constitui uma espécie de «suma teológica». Ou seja, o profeta, depois de fazer referência à situação de trevas em que o povo se encontrava no exílio (da Babilónia), apresenta a salvação de Deus como uma aurora de luz, de alegria e de libertação. Isto é visível pelos títulos que ele atribui ao grande libertador. Não será preciso ser muito acutilante e perito na matéria para concluir que Isaías não se está a referir só a um libertador humano. Ele sabe - e espera que o povo compreenda - que a libertação puramente humana e política não é completa e não satisfaz os desejos que moram no coração das pessoas. E, depois, basta referir que muito dificilmente se poderá atribuir a um qualquer libertador humano os títulos como de Deus Poderoso e Pai eterno. As pessoas são, pois, convidadas a pensar numa libertação que supere essa visão estrita de libertação política mesma social.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (Tit 2,11-14):

Deus revelou a sua graça para salvação de todos os homens. Essa graça ensina-nos a renunciar à impiedade e aos desejos carnais, a fim de vivermos neste mundo com sobriedade, justiça e piedade, enquanto aguardamos a bem-aventurada e gloriosa manifestação do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo. Ele entregou-se por nós para nos resgatar de toda a iniquidade e para fazer de nós um povo purificado que lhe pertença de maneira exclusiva e seja zeloso na prática do bem.

 

* Ele entregou-se para nos resgatar de toda a iniquidade.

O destinatário desta carta, de nome Tito, foi convertido por S. Paulo e, pelos vistos, era muito prendado (vejam-se, a esse propósito, as várias referências que há sobre ele na II Carta aos Coríntios). Por isso, nada admira que o mesmo S. Paulo o tenha colocado como bispo numa das comunidades primitivas (Creta). Seja como for, o que mais interessa neste caso é o pensamento que está subjacente ao trecho de hoje: a vinda de Jesus é garantia e manifestação da graça de Deus e fonte de salvação; essa salvação estende-se a tudo o que é humano, ou seja, à totalidade da pessoa humana e, por isso, não ficará completa e real enquanto não se tratar realmente do resgate de toda a iniquidade; é esta a grande notícia, que só é possível a partir do momento que se admitir que esse «nascido» é nada mais nada menos que o Filho de Deus.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Lc 2,1-14): 

(Naquele tempo) o imperador Augusto publicou um édito para ser recenseada toda a terra. Este recenseamento foi o primeiro que se fez quando Quirino era governador da Síria. Todos iam recensear-se, cada um à sua própria cidade. Também José, sendo da casa e da linhagem de David, deslocou-se da cidade de Nazaré, que ficava na Galileia, à cidade de David, chamada Belém, na Judeia, a fim de se recensear, com Maria, sua esposa, que estava grávida. Ora, quando ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz. E ela teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria. Na mesma região, havia uns pastores que pernoitavam nos campos a guardar os seus rebanhos. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu à sua volta. Eles ficaram com muito medo, mas o anjo disse-lhes: «Não temais! Anuncio-vos uma grande notícia, que trará muita alegria a todo o povo: "Hoje mesmo, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, o Messias Senhor". Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura». De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que Deus ama»!

 

* O Salvador do mundo nasce numa manjedoura.

Embora os critérios históricos utilizados pelo evangelista Lucas (e pelos outros também) não sejam os que caracterizam a historiografia moderna, no entanto, segundo os dados que S. Lucas nos deixa, é um facto histórico que a data do nascimento de Jesus está «situada» no tempo do imperador Augusto. Sabe-se que César Augusto foi proclamado imperador no ano 27 a. C. e que faleceu no ano 14 d.C. e, por isso, é perfeitamente admissível que o nascimento de Jesus se tenha dado nessa altura, embora não se possa deduzir do texto o ano exato em que nasceu. Mas, seguramente, não é a data exata o que mais interessa. A verdade é que o nascimento de Jesus se dá em circunstâncias todas particulares: é, por exemplo, importante realçar que Ele nasce na pobreza e, por isso, não se pode tomar como um salvador ou libertador ao estilo dos reis e imperadores mundanos. Mais: é-lhe dado o título de Cristo Senhor. Daí se poder deduzir que esta página evangélica foi escrita depois da ressurreição e depois de os discípulos terem feito essa experiência. É um Messias que é reconhecido por aqueles que têm o coração aberto e disponível às originalidades de Deus.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *    Um menino nasceu para nós.

 *   Ele ofereceu-se por nós para nos constituir seu povo.

 *  Eles não encontraram lugar na hospedaria.

GLÓRIA

A DEUS NAS ALTURAS!

 

  • Príncipe da Paz

    Em termos históricos, não sabemos exactamente quem era o «Príncipe da Paz», a quem o profeta Isaías alude na primeira leitura escolhida para hoje. Possivelmente, não se referia a ninguém em particular, porque não se pode dizer que a algum dos príncipes do seu tempo se pudesse aplicar essa qualificação, mesmo ao mais pacífico. Resta então a hipótese de que a intenção do profeta tenha sido despertar a atenção dos seus leitores para uma figura ideal que resumisse em si as melhores qualidades de todos os governantes do povo.

 

Sendo assim, nessa perspectiva, Isaías fez o que fazemos nós hoje quando nos propomos «descrever» as qualidades ou atributos de Deus. Ora bem, na impossibilidade de o fazer em termos rigorosos, porque Ele nos é completamente inacessível, ao imaginar o seu poder ilimitado, então dizemos que é todo-poderoso. Ao imaginar a sua misericórdia sem limites, dizemos que é infinitamente misericordioso. Ou seja, há que ter a serenidade necessária para admitir que a nossa linguagem limitada não tem a capacidade de exprimir a realidade de Deus senão por aproximação e a partir de indícios.

 

Qual a opção que restava a Isaías para descrever alguém que devia exercer um poder de paz, harmonia e bem-estar para todos? Descrevendo a futura felicidade com imagens de vitória atribuídas aos grandes heróis da história, mas «limpando-as» dos seus contornos negativos. Por isso, o futuro rei que trará a harmonia e a paz será o «Conselheiro Admirável, o Deus-herói, o Pai Eterno, o Príncipe da Paz» (Is 9,6). De resto, os próprios termos utilizados sugerem que se trata de um Príncipe que não tem nada a ver com os príncipes deste mundo.

 

  • A lógica de Deus

    A lógica humana sugeriria que este «príncipe da paz» havia de ser o mais poderoso que jamais existiu. E, para dizer a verdade, foi precisamente essa lógica a vingar e a prevalecer na mentalidade do povo que, no fundo, concebia o messianismo como a forma de governo ideal que submeteria ao domínio de Israel todas as potências mundiais. Confundiam assim o messianismo com um estreito nacionalismo.

    Em suma, segundo essa mentalidade, no fundo, o messianismo seria a instauração dum reino ou império onde todos os desejos de vingança e desforra reprimidos durante séculos seriam finalmente libertados e satisfeitos. Por outras palavras, o que fundamentalmente estava em causa, embora sob formas e fórmulas religiosas, era o orgulho e o patriotismo nacionais. Mas, assim, afinal de contas, nada mudava, a não ser o poder passar para as mãos de outras pessoas. Mas o género de poder seria o mesmo. Ou seja, um poder e uma «polícia» que continuava a esmagar os mais fracos.

 

    Mas a ideia de Deus não era (nem é) essa. E Isaías, desconhecendo talvez o alcance das suas próprias «previsões», di-lo claramente nos chamados «Cânticos do Servo de Javé» (cf. Is 42,1-4; 49,1-7; 50,4-11; 52,13-53,12), que não temos agora ocasião de comentar. Mas as pessoas não quiseram ou não foram capazes de entender a missão desse Servo de Javé.

 

Só o Novo Testamento descobre o véu que escondia a verdadeira natureza deste Messias, que será alguém nascido na humildade e destinado ao sacrifício supremo em favor do seu povo. Talvez seja essa a razão por que a liturgia da palavra nos propõe como segunda leitura para a noite de Natal um texto de Paulo a Tito, que faz referência não ao nascimento, mas à morte do Messias: «Ele entregou-se por nós, a fim de nos resgatar de toda a iniquidade» (Tit 2,14), acrescentando logo a seguir: «e para purificar e constituir um povo da sua exclusiva posse e zeloso na prática do bem» (cf. ibidem).

 

  • A lógica dos homens

    Segundo a estreita lógica dos homens, essa maneira de o Messias se manifestar (quer no nascimento, quer no decurso da sua vida privada e pública, quer ainda e sobretudo na altura da sua morte) não faz sentido e não tem qualquer cabimento. Como diz Paulo, isso é loucura para os gregos e escândalo para os judeus (cf. 1Cor 1,23). Também o trecho evangélico nos dá conta dessa diferença de critérios entre Deus e os homens no que se refere ao nascimento do Messias.

 

   Um Deus que nasce numa manjedoura, por não haver para Ele lugar na hospedaria (cf. Lc 2,7), é, de facto, um escândalo para os judeus e um absurdo para os gregos. Se a coisa dependesse de nós - damos connosco a imaginar - teríamos nascido num palácio dourado, impondo-nos ao respeito e à admiração das autoridades e de todo o povo!

 

    Pois é! Mas, pelos vistos, Deus não é da mesma opinião. O local do nascimento, Belém, parece ir ao encontro das antigas aspirações e expectativas documentadas no Antigo Testamento, mas o facto é que o Menino nasce só e abandonado, longe das luzes da ribalta e afastado dos caminhos do sucesso que tecem a história humana. Não tem à sua disposição nenhum dos recursos humanos que são apanágio dos grandes deste mundo. O nascimento do Filho de Deus dá-se em circunstâncias absolutamente normais; melhor dizendo, em circunstâncias próprias dos mais pobres dos pobres. É caso para dizer que realmente a lógica de Deus não tem nada a ver com a lógica dos homens... Os homens põem a sua esperança na força de reis supostamente invencíveis e Deus o que faz? Envia um Menino pobre, indefeso e totalmente dependente dos seus pais, Maria e José, para sobreviver.

 

  • Ele é Salvador total em toda a linha

   A lógica humana, neste capítulo, teria sentido se o plano de Deus fosse simplesmente salvar as pessoas, e em particular Israel, do domínio e da opressão inimiga, nessa altura consubstanciada na força e no poderio do império romano. Mas, como é evidente, não era esse tipo de salvação que interessava a Deus. Ele queria (e quer sempre) a salvação de todos os homens, sem domínio duns sobre os outros, e do homem todo: dos dominadores e dos dominados, dos judeus e dos gregos, dos homens e das mulheres, dos conhecidos e dos anónimos, dos homens daquele tempo e dos homens de todos os tempos.

 

Nós temos uma certa dificuldade em entender estas coisas, porque, como regra, pensamos na salvação em termos simplesmente humanos, na medida em que circunscrevemos essa salvação à nossa libertação de todas as situações que causam incómodo e sofrimento. Mas a salvação de Deus ultrapassa essas fronteiras, porque vai para além da realidade que podemos apalpar. E, por outro lado, a primeira condição para admitir este tipo de salvação é sermos capazes de admitir que Deus, a quem nada é impossível, faz parte da nossa história (da minha história) da maneira mais incrivelmente  humana possível. Para isso, é preciso deixar-se guiar pela grande luz de que fala Isaías (1a leitura). Só que essa luz não é uma luz qualquer que se possa abarcar com a visão física. Essa luz esconde-se na figura dum Menino.

 

    Enfim, por mais voltas que dê à cabeça, tenho que chegar sempre à conclusão de que o tipo de salvação, proposta por um Deus que se faz menino indefeso, não se exaure naquilo a que se dá o nome de vitória sobre os inimigos ou equilíbrio de forças. Essa salvação é uma força (a força do próprio Deus) a actuar no interior de cada um, para lhe dar uma paz que o mundo não pode dar e um sentido que só tem sentido na medida em que ultrapassa os umbrais deste tempo para dar entrada nos umbrais da eternidade.

 

sample.jpg  «DEUS AMOU DE TAL MANEIRA O MUNDO QUE LHE

    O MUNDO QUE LHE ENTREGOU O SEU FILHO UNIGÉNITO PARA QUE TODOS OS QUE CREEM NELE NÃO SE PERCAM, MAS SE SALVEM. PORQUE DEUS NÃO ENVIOU O SEU FILHO AO MUNDO PARA CONDENAR O MUNDO, MAS PARA QUE ESTE SE SALVE POR SEU INTERMÉDIO» (Jo 3,16-17)