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fundo

1ª leitura (Is 42,1-4.6-7):  Diz o Senhor: «Eis o meu servo, que eu amparo, o meu eleito, que Eu prefiro. Fiz repousar sobre ele o meu espírito, para que leve a verdadeira justiça a todas as nações. Ele não gritará nem levantará a voz e não clamará pelas ruas. Não quebrará a cana rachada, não apagará a mecha que ainda fumega. Anunciará com toda a firmeza uma justiça duradoira. Não desanimará, nem desfalecerá, enquanto não estabelecer na terra a justiça, as leis que os povos das ilhas esperam dele». «Eu, o Senhor, chamei-te e dei-te o poder para que a justiça seja feita sobre a terra. Através de ti estabelecerei uma aliança com todos os povos e levarei a luz às nações. Escolhi-te para abrires os olhos aos cegos, para tirares do cárcere os prisioneiros e da reclusão os que vivem nas trevas».

*Estabelecerei uma aliança com todos os povos. A segunda parte do livro de Isaías, ou Dêutero-Isaías (cc. 40-55), contém quatro poemas sobre o «Servo do Senhor» ou «Servo de Javé». A leitura escolhida para a festa de hoje é o primeiro deles. Os outros estão respectivamente em: 49,1-6; 50,4-11; e 52,13- 53,12. Os estudiosos são unânimes em afirmar que não é fácil identificar esta figura, mas, lida à luz do Novo Testamento, não parece difícil concluir que se refira a Jesus. É sobretudo Jesus que é chamado a realizar a salvação que vem de Deus (a justiça). O que há a realçar, nesta figura, é que, ao contrário do que sempre esperamos, não se «recorre» à força e ao poder para exercer a justiça. A eficácia da missão do verdadeiro «Servo de Deus» assenta na sua humildade e mansidão. E são essas as características que nos são propostas no início da vida pública de Jesus, que não vem nem levantar a voz, nem quebrar a cana rachada, nem apagar a mecha que ainda fumega. Neste aspecto, talvez os seus sequazes tenham que fazer um sério exame de consciência.

 

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2ª leitura (Act 10,34-38):  Pedro tomou a palavra e disse: «Na verdade, agora compreendo que Deus não faz acepção de pessoas; quem o teme e pratica a justiça, seja qual for o povo a que pertença, é-lhe agradável. Vós estais ao corrente de que Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando-lhes a Boa Nova da paz por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos. Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do baptismo que João pregou: como Deus ungiu com o Espírito Santo e com poder a Jesus de Nazaré, que andou, de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que estavam sob o domínio do Maligno, porque Deus estava com Ele».

 

* Andou de lugar em lugar fazendo o bem. Este discurso foi pronunciado por Pedro na casa do centurião Cornélio. No encontro participam várias pessoas, quer do círculo de familiares e amigos de Cornélio, quer acompanhantes de Pedro. Após uma visão em Jope em que o Senhor diz a Pedro que não pode considerar impuro o que Deus purificou, o mesmo Pedro é confrontado com o facto de o «pagão Cornélio» ter tido, também ele, uma visão em que vê os seus pedidos serem atendidos por Deus. A este discurso de Pedro, segue-se o baptismo de Cornélio, bem como de muitos outros «pagãos», que ali estavam presentes. E é a partir deste facto que os Actos dos Apóstolos nos começam a falar insistentemente na necessidade de que a doutrina de Cristo se estenda aos pagãos e que estes sejam também baptizados. Da escolha desta leitura para a Festa do Baptismo do Senhor sinto-me no direito de poder concluir que o baptismo, na realidade, não é exclusivo de nenhum povo em especial, mas se destina a todos os povos.

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Evangelho (Mc 1,7-11): (João Baptista) pregava assim: «Depois de mim, vai chegar outro que é mais forte do que eu. Diante dele nem sou digno de me inclinar para lhe desatar as correias das sandálias. Eu tenho-vos baptizado em água, mas Ele há-de baptizar-vos no Espírito Santo». Ora, por aqueles dias, veio Jesus de Nazaré, na província da Galileia, e foi baptizado por João no Jordão. Logo que Jesus saiu da água, João viu abrirem-se os céus e o Espírito Santo descer sobre ele como uma pomba. E do céu ouviu-se uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus o meu encanto».

* Ele baptizar-vos-á no Espírito Santo. A leitura que varia nos três ciclos litúrgicos no que diz respeito ao «Baptismo do Senhor» é precisamente a leitura do Evangelho. Ora bem, no trecho de Marcos (deste ano, Ciclo B), podemos considerar duas partes: a apresentação que o Baptista faz de Jesus; e a narração propriamente dita do baptismo. O episódio é descrito com palavras sérias e sem rodeios, sobretudo na versão de S. Marcos. Quase a querer dizer que o baptismo (o de Jesus e o nosso) não é propriamente e acima de tudo uma festa, mas sim o início dum novo rumo, duma nova vida. Nos nossos baptismos, não é bem isso o que acontece; se calhar, damos mais importância à água (passe a expressão; e, já agora, ao copo de água) do que ao Espírito Santo. Seria muito curioso - se não fosse quase trágico - saber porque é que se pede o baptismo quando quase não se liga nada a Cristo e ao Espírito Santo.

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  Eis o meu Servo

     no qual pus 

     a minha complacência.

 * Deus consagrou 

     no Espírito Santo a Jesus de Nazaré.

  * Tu és o meu Filho muito amado.

ELE VOS

HÁ-DE BAPTIZAR

NO ESPÍRITO SANTO

 

  • Jesus investido oficialmente

 João Baptista, nas margens do Rio Jordão, prega o arrependimento dos pecados em ordem a uma conversão de vida. Como sinal externo dessa conversão, convida as pessoas a sujeitar-se a um rito de purificação que parece exercer um efeito mobilizador muito grande. Para as pessoas simples, esse rito apresenta-se como sendo cheio de sentido e eficácia. Entretanto, desce também à água, entre a multidão anónima, Jesus para se fazer baptizar... 

O baptismo para os judeus era, certamente, um rito penitencial, mas representava sobretudo o início duma nova fase de vida. Por outras palavras, constituía um rito que punha as bases duma real conversão e mudança de rumo, pois comportava o reconhecimento dos próprios pecados e o desejo de os eliminar optando por um novo estilo de vida. A recordação da travessia do Mar Vermelho continuava bem presente na mente das pessoas e, assim, passar pelas águas do Jordão simbolizava não só uma atitude de purificação, mas sobretudo deixar para trás uma vida de dependência que não interessava.  

Como sabemos, Jesus não precisava desse rito, porque não tinha nada de que se purificar. No entanto, vindo ao mundo para fazer a vontade do Pai (a salvação dos homens), Ele quis assumir todos os gestos humanos dos seus contemporâneos e da humanidade em geral. Tendo assumido a natureza humana, carregando sobre si os pecados dos homens (como diz S. Paulo aos cristãos de Corinto: cf. citação mais em baixo), sujeita-se a um rito que, além da mudança de vida pessoal e individual, significava também uma mudança de vida a nível comunitário, pois os baptismos eram feitos em grupo.  

Mas, a partir do momento em que Jesus se sujeita a este rito penitencial, há um elemento novo. Há sempre algo de novo quando Jesus entrar a fazer parte de alguma coisa. No caso concreto, a manifestação explícita do Pai e do Espírito Santo dão um significado preciso a esse rito praticado por João Baptista. Jesus é proclamado publicamente «Filho de Deus» e investido oficialmente da sua missão de levar a salvação a todos. Para Jesus, trata-se duma missão que implica a aceitação de todas as dificuldades e vicissitudes da existência humana e sobretudo do sacrifício e da morte que O esperam. Talvez até o próprio autor do trecho evangélico tenha querido dizer isso, pois, em grego, a expressão para dizer «Filho de Deus» é a mesma que se usa para dizer «Servo de Javé» (expressão que encontramos na primeira leitura de hoje e que é sinónimo de sofrimentos inauditos e que é aplicada a Jesus Cristo).

  • Baptismo na água, Baptismo no Espírito 

Jesus partilha a condição dos pecadores e como que se faz Ele mesmo «pecado» (cf. 2Cor 5,21). Mas logo se faz ouvir uma voz do céu que, no fundo, vem declarar a sua inocência. Parece-me poder-se deduzir que, da forma como não só o evangelista deste ano, Marcos, mas também os outros descrevem o episódio do baptismo no Jordão, há uma vontade expressa de ir para além da descrição em si mesma. Ou seja, não devemos demorar-nos no episódio em si, como se isso nos interessasse apenas como descrição de um episódio de crónica, porque não é essa a principal finalidade dos evangelistas. 

Se Marcos se refere ao assunto (como o fazem, repito, também os outros evangelistas), é para dizer claramente que aquele rito nas águas do Jordão, de agora em diante, será substituído para sempre pelo novo baptismo do povo de Deus, através da água e pelo Espírito Santo. Toda a cena evangélica nos comunica que este homem Jesus, que se sujeita ao rito do baptismo, é, no entanto, diferente de todos os outros. Do texto em exame, conclui-se facilmente que uma das notas que O caracterizam é a sua dimensão divina, única em toda a história dos profetas de Israel.

Enquanto o gesto anterior a Jesus representava a travessia do Mar Vermelho, na caminhada em direcção à Terra Prometida, agora esse gesto adquire novos «contornos». Agora as margens do mar e a travessia são outras. Neste novo simbolismo da imersão nas águas do Jordão (como no tempo de Moisés nas do Mar Vermelho), Jesus é o primeiro a «sair» da água, é o primogénito e o chefe do novo povo liberto da escravidão do pecado em direcção ao país da libertação definitiva.

  • Após a conversão, o deserto

Todavia, após a saída do Egipto e a travessia do Mar Vermelho, a libertação não estava ainda totalmente conquistada. Isso era apenas o início duma longa e difícil caminhada. Para a solidificar, foram precisos quarenta anos de afã, dificuldades e de peregrinação pelo deserto. Mas não foram dificuldades e uma peregrinação infrutíferos. Essa longa caminhada contribuiu para «estruturar» a têmpera dum povo que até então ainda não alcançara uma autêntica consciência de identidade nacional.  

 

A libertação que Jesus vem trazer, simbolizada pela imagem do Servo sofredor (implícita na 1ª leitura), tem que passar também através do deserto do sofrimento. Cristo, que se submete a um acto público de penitência (fazendo-se passar por pecador) é, por assim dizer, a expressão da solidariedade do Pai, do Filho e do Espírito para com os homens na sua história concreta. Através da aceitação da nossa humanidade por parte de Jesus, nós somos feitos participantes da própria santidade de Deus. Esta participação é a possessão da Terra Prometida por excelência, ou seja, a possessão do seu Reino. Através do baptismo, como que se desencadeia para o cristão o processo de libertação que, por entre sofrimentos e penas, conduz à pátria definitiva, onde se completará a realização final do homem como ser especial com ânsias de infinito. Isso terá que passar pela purificação do deserto, mas a Terra Prometida é o termo dessa caminhada.

  • Baptismo com água e sem Espírito

Os judeus baptizados por João Baptista não recebiam o Espírito Santo. Mas o gesto de João era um gesto que significava uma verdadeira conversão e mudança de vida. Em relação ao cristão, é paradoxal e triste que, tantas vezes, o baptismo, que faz dele membro do Corpo de Cristo, não tenha muita incidência na sua consciência e, por conseguinte, na sua maneira de olhar para a vida e para as coisas. Algo deve estar errado se os cristãos não sentem o ingresso na Igreja através do baptismo como um momento decisivo nas suas vidas. Nascidos e vivendo na fé da Igreja, os cristãos têm necessidade de redescobrir a grandeza e as exigências da vocação baptismal. (O mesmo se pode dizer naturalmente dos outros sacramentos).  

Por iniciativa particular ou mesmo por iniciativa da própria Igreja, tem-se feito um esforço para dar nova vida ao baptismo (e aos outros sacramentos) por uma renovação adequada, por uma purificação dos seus ritos e por um aprofundamento do seu conteúdo. Aliás, na escuta dos sussurros do do Espírito Santo e sob as indicações do Concílio. E o que é que, por vezes, sucede? Não sendo essa a regra, chega-se, às vezes, a acusar a Igreja de querer mudar a religião por, afinal, pretender tratar os sacramentos como deve ser, ou seja, com seriedade.  

Se mesmo o baptismo de João Baptista era um rito pleno de significado, que produzia quase sempre resultados palpáveis, com muito maior razão o deve ser o baptismo do cristão. Através dele, para além da transformação que se opera, pelo facto de se tornar oficial e efectivamente filho de Deus, irmão de Jesus e templo do Espírito Santo, o baptizado assume um compromisso sério de ser fiel às exigências e responsabilidades que um novo status lhe impõe.

  • Sempre... o baptismo dos filhos!

Foi, é e será sempre um problema fértil em debates o do baptismo dos filhos pequenos ou, em termos gerais, o baptismo das crianças. O argumento aduzido para combater a prática do baptismo das crianças é aceite sem discussão por todos os que, aprioristicamente, vêem nesse gesto um atentado contra a liberdade da pessoa humana: deixá-lo para uma idade em que a pessoa saiba o que realmente está a fazer. Se fôssemos a seguir esse princípio à risca em todos os outros aspectos da vida, dar-nos-íamos conta de que a própria vida seria impossível.

Entrámos numa época de pós-cristandade caracterizada por um pluralismo que nem sempre se mantém dentro dos espaços da lógica. No caso vertente, propõe-se sem tergiversações para o baptismo o que não se aceita em outros campos da vida humana. Quase sempre se aduz a razão de que a recepção do baptismo deve ser deixada para uma idade de maior consciencialização em que se possa fazer uma opção supostamente responsável. Digo «supostamente», porque acontece, com mais frequência do que seria de desejar, que nem sequer os que acedem ao baptismo em idade adulta o fazem com plena consciência.

  • Baptismo: assunto sério

Seja como for, embora possa parecer uma constatação simplesmente negativa, a proposta de adiar o baptismo para uma altura em que se possa tomar uma decisão pessoal consciente, afinal de contas, por linhas travessas, acaba por representar a redescoberta da seriedade do sacramento. Ou seja, o sacramento do Baptismo é um assunto demasiado sério para poder deixar de ser assumido com consciência e pleno conhecimento. 

Todavia, por outro, seria absurdo seguir esse critério em relação a outros «factos» da vida da criança, fundamentais também, como sejam, por exemplo, o da alimentação e o da escolaridade. Segundo essa lógica, também aí se deveria esperar que a criança atingisse o grau de consciência suficiente para tomar uma decisão por si mesma. E, no entanto, em relação a isso, não se levantam objecções (por motivos que me parecem óbvios); antes pelo contrário, e com razão, acha-se que seria uma decisão absurda.  

Mas também se dá o caso que, com frequência, na vida real, aqueles que menos se interessam pelo aspecto religioso da vida dos filhos sejam os que mais protestam pelo facto de algum pároco ou sacerdote recusar o baptismo aos seus filhos, já que não estão em condições de lhes assegurar uma educação cristã adequada.

  • Haverá uma solução para o problema?

As estatísticas e a experiência demonstram que, efectivamente, um grande número de crianças baptizadas vivem como se fossem pagãs; e nomeadamente porque, apesar das promessas, os pais ou educadores não se interessam pela sua educação religiosa, embora tenham sido muito exigentes - quando não até violentos - quanto ao direito de que os filhos fossem baptizadas. Que certos pais sejam levados a pedir o baptismo para os filhos por motivos de conveniência, promoção social, por tradição familiar e até por causas de natureza supersticiosa, e não por autênticos motivos de fé, isso raia os limites do paradoxal. Mas, infelizmente, é um facto mais comum do que se possa imaginar. E isso constitui um grave problema.  

Contudo, a solução do problema evidentemente não é tão simples como pode parecer. Ocorre inseri-lo numa pastoral de conjunto que tenha em conta o facto de que os primeiros a necessitar duma verdadeira catequese são os pais ou educadores. São eles os mais directamente responsáveis pelas opções que se fazem em lugar dos filhos. Por conseguinte, nos casos em que o pastor se veja obrigado a optar pela recusa do dom do baptismo, deve fazê-lo num clima de amizade e diálogo. Trata-se duma ocasião a não perder para explicar com calma os motivos da recusa (motivos que não se devem, como me parece óbvio, reduzir a motivos de ordem jurídica).  

Então, sim, essa recusa «fundamentada» obriga os pais a reflectir e a colocar-se uma série de problemas e, eventualmente, a ir à procura de informações catequéticas. Com esse processo, então a própria recusa deixará de ter razões de persistir. Ou seja, o pedido irresponsável do baptismo (que acontece) poderá ser uma óptima ocasião para pôr em dia uma série de informações que, afinal, vão ser úteis àqueles que fazem esse pedido de forma irresponsável. E, por isso, no plano operativo, digamos assim, mais do que uma recusa pura e simples, o pedido de baptismo talvez seja o momento mais oportuno para uma formação adequada. Duma coisa se deve estar certo: o que mais interessa não é a data ou a solenidade do baptismo, mas sim o caminho da fé (a começar pelos pais), sem a qual não há possibilidade de salvação.