Temas de fundo |
XXIII DOMINGO COMUM 1ª leitura (Sb 9,13-19): Quem é que pode entender os desígnios de Deus? A razão humana não tem capacidade para isso e as nossas filosofias têm a tendência para nos enganar, porque o peso do nosso corpo mortal puxa a nossa alma para baixo. O corpo é uma estrutura temporária feita do pó da terra e é um obstáculo para a nossa alma. Tudo o que podemos é fazer conjeturas sobre o que existe no mundo, sendo que temos que lutar até para entender as que estão mais perto de nós. Como é que podemos então esperar compreender as coisas do céu? Nunca ninguém descobriu o teu desígnio, a não ser que lhe tenhas dado a tua sabedoria e lhe tenhas enviado o teu santo espírito. Desta maneira, as pessoas na terra foram encaminhadas pelo caminho reto e aprenderam o que te é agradável, devendo a sua salvação à sabedoria.
* Quem pode compreender os desígnios de Deus? Não parece haver dúvidas de que o Livro da Sabedoria é o espelho do ambiente e do tempo em que foi escrito. Escrito no séc. I A.C., como que se sente palpitar quase explicitamente nas suas páginas a atração pela filosofia grega. Ma, mas ao mesmo tempo, é clara a preocupação de relativizar essa filosofia. Muitos dos judeus que viviam no anonimato da diáspora e sob a influência grega sentiam a tentação de ir atrás do pensamento vigente e de abandonar a sua própria fé. A razão parece simples: naturalmente, pensavam que a sua fé poderia ser motivo de ridicularização e até de dificuldade no acesso aos postos de trabalho e do sucesso. Pois bem, a preocupação do autor do livro da Sabedoria é sem dúvida «demonstrar» que a referência ao pensamento filosófico não é suficiente para entender todas as coisas, e muito menos os desígnios de Deus sobre a humanidade. Na literatura bíblica em geral - e particularmente na literatura sapiencial, como é o caso do livro em questão - nota-se um esforço constante por superar a tentativa (que persiste nos dias de hoje) de reduzir tudo ao âmbito da capacidade e da perceção inteletual. Mas o certo é que o homem não é só inteligência, é também físicidade, vontade e sobretudo interioridade ou alma. Então, nessa lógica, até uma filosofia bem entendida nos deverá dizer que o homem «compreende» não apenas com a inteligência, mas com tudo o que ele é, sem excluir naturalmente o espírito. Por outras palavras, não podemos alimentar a pretensão - como diz o autor da Sabedoria - de compreender tudo o que existe, quando, na realidade, nem sequer compreendemos muitas das coisas que nos rodeiam.
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2ª leitura (Flm 9b-10.12-17): Faço-te um pedido, eu, Paulo, como embaixador de Jesus Cristo e presentemente também preso por causa dele. Faço um pedido em favor de Onésimo, que é meu filho em Cristo. Enquanto estive na prisão, tornei-me seu pai espiritual. Mando-o de volta para ti agora e, com ele, vai também o meu coração. Bem gostaria de o ter aqui comigo, enquanto estou na prisão por causa do Evangelho, para que ele me pudesse ajudar em vez de ti. Mas, eu não quero forçar-te a ajudar-me, mas antes gostaria que tu o fizesses por tua livre vontade. Por isso, não farei nada a não ser que tu estejas de acordo. Talvez Onésimo tenha estado afastado de ti durante pouco tempo para o poderes ter de volta para sempre. E agora não já como um simples escravo, mas muito mais do que escravo: como um caro irmão em Cristo. Por isso, imagina o que ele agora significa para mim! E quanto não significará para ti, tanto como servo como irmão no Senhor! Por isso, se me consideras em comunhão contigo, acolhe-o como me acolherias a mim pessoalmente.
* Recebe-o não como escravo, mas como filho caríssimo. Onésimo era um escravo fugido da casa do seu amo Filémon, por motivos que não nos são conhecidos. Alguns falam de algo parecido com um desfalque, mas isso não está provado, é apenas uma especulação. Em todo o caso, não é isso que mais interessa para o caso. O que, de facto, importa é ter presente que, à semelhança do seu amo, o criado Onésimo, por feliz coincidência, entrou em contacto com Paulo e foi por ele convertido, enquanto Paulo estava prisioneiro em Roma. A partir do momento em que Onésimo é baptizado, como que adquire um novo «estatuto», fica a estabelecer-se um outro relacionamento entre Filémon e Onésino, pelo facto de ambos serem batizados em Cristo Jesus. E é essa a base em que Paulo se apoia para, com uma espécie de bilhete-postal (precisamente a Carta em questão), o reenviar a Filémon que, como cristão, tem agora novos motivos para o receber de volta. Para além do tema de base da liberdade e fraternidade cristãs - que assenta na única filiação divina - está também implícito um outro tema recorrente nas leituras e nos comentários que vão sendo feitos. E é o facto seguinte: nos planos de Deus, o que, eventualmente, se manifesta aparece primeiro como negativo pode acabar por ter, a médio ou longo prazo, consequências positivas. Paulo não pretende, como é óbvio, absolver o «pecado» que Onésimo eventualmente tenha cometido, mas sim afirmar aquilo que, em linguagem popular, se traduz por «do mal tirar o bem».
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Evangelho (Lc 14,25-33): Uma vez, quando era seguido por grandes multidões, Jesus voltou-se e disse-lhes: «Quem quiser vir atrás de mim, não pode ser meu discípulo se não me amar mais do que o seu pai, a sua mãe, a sua mulher e os seus filhos, os seus irmãos e as suas irmãs e mais que a si mesmo. Quem não toma a sua cruz e vai atrás de mim não pode ser meu discípulo. Quem de vós que deseja construir uma torre não se senta primeiro a calcular a despesa para ver se tem o suficiente para a terminar? Não suceda que, depois de assentar os alicerces, não seja capaz de a concluir e então todos os que olhem comecem a fazer troça, dizendo: "Este homem começou a edificar, mas não foi capaz de concluir!". E qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei e não se senta primeiro para ver se é capaz de se opor, com dez mil soldados, a quem vem contra ele com vinte mil? Caso contrário, enquanto o outro ainda vem longe, manda-lhe uma delegação a pedir as condições de paz. Da mesma maneira, ninguém pode ser meu discípulos se não deixar tudo o que tem».
* Quem não renuncia a todos os bens, não pode ser discípulo de Jesus. Independentemente das duas pequenas parábolas que se referem aos cálculos que é preciso fazer para construir uma torre e para vencer uma batalha (no caso, seriam dispensáveis), creio que a ideia básica e mais importante deste trecho é aquilo que, de resto, afinal, faz a essência do cristianismo. Ou seja, a condição para seguir a Jesus implica amá-lo a Ele mais do que à própria família, tomar a cruz e renunciar a todos os bens pelo Reino. Perante a forma como a proposta é apresentada, não pode haver dúvidas: o núcleo essencial do cristianismo é a pessoa de Jesus Cristo, pois Ele está acima de todas as coisas. Por outras palavras, se nos interrogarmos sobre o que distingue o cristão dos fiéis de outras religiões (nomeadamente as monoteístas), temos que responder que o Deus do cristão é o «Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo», ou seja, o Deus que Jesus Cristo nos revelou como Pai. Por outro lado, Jesus, na medida em que ultrapassa todos os laços mais sagrados que possam existir, é proposto como absoluto. Daí poder-se concluir que a fé é uma escolha radical e o seu objeto é, digamos, precisamente Jesus Cristo. Dito de outra maneira, sem a aceitação desta opção radical, não há sequer cristianismo.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Quem pode compreender os desígnios de Deus?
* Recebe-o em tua casa não como escravo, mas como filho caríssimo.
* Quem não renuncia a todos os seus bens, não pode ser discípulo de Jesus.
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A OPÇÃO RADICAL POR CRISTO |
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A fé é escolha radical
Por se tratar de um tema que pode causar não poucas perplexidades, vou limitar-me a comentar o texto evangélico. E, para o efeito, vou servir-me das reflexões dum autor versado no texto de Lucas. Minhas são apenas as ligações entre umas partes e outras, bem como os subtítulos; além da tradução e adaptação, naturalmente.
«O texto que comentamos é composto por duas parábolas (14,27-30 e 14,31-32) e por três sentenças/conclusões fundamentais (16,26; 14,27; 14,33). O tema geral é o das exigências que o seguimento de Jesus Cristo impõe. As parábolas mostram-no de maneira humanamente razoável e compreensível. As sentenças, ou conclusões, acentuam, ao contrário, o aspecto paradoxal e mais duro deste seguimento. As parábolas fazem pensar na esperteza e no cálculo dos homens deste mundo. O que constrói reflete bem primeiro sobre os custos, a ver se pode sustentar todas as despesas necessárias. Assim também, o rei que pretende travar um batalha, calcula primeiro a consistência das suas forças e as possibilidades que tem de chegar à vitória».
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O risco de ser discípulo
«É com este pano de fundo que é apresentado o tema do discípulo. Seguir a Jesus é uma empresa dura e custosa. Por isso, aquele que decide ser cristão deve calcular muito bem as forças, os deveres que assume e os riscos que corre».
«O ensino destas parábolas é muito simples. Os projetos deste mundo impõem despesas, planos e sacrifícios. Não se pode ter a pretensão de resolver o problema do seguimento de Cristo ao calhar, sem uma ordem, sem uma lógica, sem esforço... Por isso, é necessário que calculemos com "frieza" o que essa opção implica. Eventualmente, poder-se-á chegar à conclusão de que, por esse preço, não vale a pena "construir a torre" ou "vencer a guerra"... Nesse caso, seria preferível confessar pura e simplesmente que não temos intenção de ser discípulos de Cristo».
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Condições do seguimento
«A primeira condição de todo o seguimento de Jesus está expressa em Lc 14,27: "Quem não toma a sua própria cruz e não me segue não pode ser meu discípulo". Isso significa que esta "guerra" não tem outra lei senão a de Cristo: o seu ir ter com os pequenos, a sua mensagem de esperança e o seu caminho de verdade (fidelidade) até à morte».
«Tal é o custo e a riqueza que implica ser cristão. Esta lei fundamental apoia-se em duas condições que definem o sentido verdadeiro da renúncia. Construir uma grande torre ou vencer uma batalha comporta sacrifícios que podem chegar a ser enormes, tanto em termos de bens materiais como em desgaste (ou até morte) de pessoas. Seguir a Cristo exige uma renúncia ao amor da família e a renúncia a todo o domínio do dinheiro» (cf. Lc 14,26; 14,33).
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Os limites da parentela
«"Se alguém quer ser dos meus e não odeia o seu pai, a sua mãe, a mulher, os filhos, os irmãos, as irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo". As palavras do texto original falam de "ódio" à família e têm provocado o escândalo de milhões de cristãos. Todavia, elas aí estão no centro da mensagem de Jesus, constituindo um dos aspectos mais consoladores e fecundos da sua doutrina».
«Por família (pai, mãe, mulher, filhos e irmãos) entende-se o clã onde se vive, a comunhão biológica de sangue, a segurança da raça, o ideal dum destino comum. Fechar-se no amor desta família, baseada em vínculos de sangue, nos interesses da raça, nas funções dum partido político, nas fronteiras dum estado que se absolutiza... fechar-se nestes limites quer dizer confundir o amor com o egoísmo, o bem dos outros com os próprios interesses».
«Cristo veio criar o amor que abate as fronteiras. Por isso, oferece o seu auxílio aos marginalizados, aos pecadores, aos estrangeiros. Só na medida em que seguirmos o seu exemplo, só na medida em que procurarmos fazer o bem a todos, sem limites, é que seremos capazes de abater as fronteiras da indiferença e do ódio que separam clãs, raças e nações. Só nessa medida seremos seguidores de Jesus Cristo...».
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Os limites da riqueza
«É nesta perspetiva que se compreende também a segunda implicação do seguimento de Jesus: "Quem de vós não renunciar a todos os seus bens, não pode ser meu discípulo". Renunciar aos bens não quer dizer desinteressar-se do mundo. Renunciar quer dizer pôr tudo à disposição do Reino, usar as coisas para o bem dos outros no campo do amor, aberto a quem quer que tenha necessidade».
«Neste sentido, Lucas condena, por exemplo, aquele tipo de propriedade privada na qual o patrão crê poder usar a riqueza simplesmente para satisfazer os seus caprichos. A propriedade privada é cristã na medida em que é posta ao serviço da comunidade humana» (Javier Pikaza).
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As exigências do discipulato
Para alcançar o Reino de Deus, é indispensável obedecer ao chamamento de Jesus. Ora, na parábola do «grande banquete», à qual Lucas dá uma configuração toda característica (comparar Lc 14,15-24 com Mt 22,1-14), aparecem já as dificuldades de ordem material e afectiva que impedem de acolher o convite do servo. O Servo do Senhor é o próprio Jesus. É ele, segundo Lucas, que tem a responsabilidade e missão de anunciar o Reino.
O trecho de hoje toma em consideração as dificuldades de ordem afetiva, material e de aceitação da cruz, insistindo por três vezes no tema da renúncia pelo Reino. Cada um veja quais são as próprias forças e decida. O cristianismo é uma escolha. Diante de Jesus Cristo, tudo o resto é relativo.