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fundo

 

 

XXI DOMINGO COMUM

1ª leitura (Is 66,18-21): Conheço os seus pensamentos e acções (daqueles que se voltam para os cultos pagãos). Estou prestes a chegar para reunir os povos de todas as nações. Quando eles vierem, hão-de ver o que o meu poder é capaz de fazer e então saberão que eu Sou Aquele que os pune. Mas hei-de poupar alguns deles para os enviar a outras nações distantes que ainda não ouviram falar de mim nem da minha grandeza e poder: Társis (a sul da Espanha), Pul (região da Eritreia) e Lud (designa a Líbia) com os seus artistas do arco, e a Tubal e à Grécia. Entre estas nações, eles proclamarão a minha grandeza. E trarão de volta todos os vossos concidadãos como oferta ao Senhor. Trá-los-ão para a minha montanha sagrada, em Jerusalém, em cavalos, mulas e camelos, em carros e liteiras, tal como os israelitas trazem ofertas de grão para o Templo em vasos ritualmente purificados. E de entre eles escolherei alguns sacerdotes e levitas.

 

* Entre as nações, eles proclamarão a minha grandeza e poder.

   O chamado III Isaías (Is cc. 55-66) termina o seu livro em tons solenes e mesmo hiperbólicos, que apontam para um futuro cheio de promessas. Para além do simbolismo das imagens, há que prestar atenção à forma como o Senhor põe em movimento a sua ação de salvação. Agora, o que não se pode esquecer é que os tempos de Deus não são necessariamente os tempos dos homens. Sendo assim, percebe-se então que, embora o conhecimento do nome do Senhor ainda não tenha chegado a toda a parte, isso há-de acontecer um dia. Se olharmos apenas para o que nos rodeia - e temos a tendência a olhar sobretudo para o que é mais negativo - talvez nos venham dúvidas sobre se, de facto, o nome do Senhor é agora mais conhecido do que era no tempo do profeta Isaías. Agora o que não podemos esquecer é que a Deus nada é impossível (cf. (Lc 1,37). Pessoalmente, estou convencido que os tempos de Deus se cumprem quando mesnos julgamos, pese embora o facto de que nem sempre isso seja muito evidente. Correndo embora o risco de passar por ingénuo, estou convencido que, apesar de tudo, o mundo de hoje é melhor do que jamais alguma vez foi. Há no trecho de Isaías um certo sabor a universalidade, na medida em que a salvação se estende a todos os povos. Neste aspeto, volto a insistir que há que respeitar os tempos de Deus e continuar a acreditar que, apesar de todos os sinais negativos e por vezes trágicos, Deus continua a ser o «patrão» (passe o termo) da história.

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2ª leitura (Hb 12,5-7.11-13):  Já vos esquecestes das palavras de coragem que Deus vos dirigiu como seus filhos: «Meu filho, presta atenção quando o Senhor te corrige e não desanimes quando te repreende. Porque o Senhor corrige todos os que ama e pune todos os que aceita como filhos»? Suportai então o sofrimento como uma punição paterna, pois o vosso sofrimento mostra que Deus vos trata como seus filhos. Já se ouviu falar de algum filho que nunca tenha sido punido pelo seu pai? É certo que, na altura em que somos punidos, isso parece-nos algo que nos entristece e não nos alegra. Mas depois, os que foram castigados por tal punição experimentam a recompensa pacífica duma vida santa. Levantai, pois, os vossos braços cansados e fortalecei os vossos joelhos trémulos. Continuai a caminhar pelo reto caminho, para que as pernas coxas não coxeiem ainda mais, mas, ao contrário, sejam curadas.

 

* Deus corrige os que ama e pune os que aceita como filhos.

   Ficou implícito na outra semana que a chamada Carta aos Hebreus se compreende melhor se tivermos em mente que os seus destinatários são, em primeiro lugar, cristãos judeus sujeitos a um grande sofrimento e a perseguições contínuas. No trecho de hoje, é retomado o tema, introduzindo o autor um outro «argumento» para convencer os seus ouvintes e leitores a suportar as provações com coragem. Citando e comentando dois versículos dos Provérbios (cf. 3,11-12), o autor diz que a prova deve ser encarada como um momento de correção. Sem fazer qualquer tipo de referência à culpa ou ignorância dos perseguidores, ele quer privilegiar esses momentos como oportunidades de crescimento. E, na tentativa de os convencer, acrescenta que o sofrimento é o sinal de que Deus Pai trata os perseguidos como seus filhos. Estas considerações continuam a ser bem atuais, embora, como se diz agora, não sejam muito «politicamente corretas». Com efeito, devemos aprender a não olhar para o que nos acontece só com o olhar magoado de quem não vê senão dor, sofrimento e trevas. Temos que aprender, vivencialmente, que «atrás da tempestade vem a bonança» e que, depois da punição, se experimenta a recompensa pacífica duma vida santa.

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Evangelho (Lc 13,22-30):  Jesus ia por cidades e aldeias a pregar ao povo e seguia em direção a Jerusalém. Alguém lhe perguntou: «Senhor, são poucos os que se salvam?». Jesus respondeu a todos: «Fazei o vosso melhor para entrar pela porta estreita, porque certamente muitos vão procurar passar, mas não vão conseguir. O dono da casa levantar-se-á e fechará a porta. Então, quando vós estiverdes de fora e começardes a bater à porta e a dizer: "Abre-nos, Senhor!", ele responder-vos-á: "Não sei de onde sois". Então vós respondereis: "Nós comemos e bebemos contigo. Tu ensinaste na nossa cidade". Mas ele dir-vos-á de novo: "Não sei de onde vindes. Afastai-vos de mim, vós que praticais a maldade". Como chorareis e rangereis os dentes quando virdes Abraão, Isaac e Jacob e todos os profetas no Reino de Deus, enquanto vós sois lançados fora! Virá gente do oriente e do ocidente, do norte e do sul, sentar-se-á à mesa do Reino de Deus. Então, os que agora são últimos serão primeiros e os que agora são primeiros serão os últimos».

 

* Virão do oriente e do ocidente, do norte e do sul para se sentarem à mesa do Reino de Deus.

    Parece-me por demais evidente, duma leitura mesmo apressada do trecho evangélico, que o critério e a chave que abre a porta do Reino não é a pertença a uma determinada raça ou mesmo credo religioso, por muito que isso nos custe a «engolir». Mesmo como cristãos, não podemos escudar-nos no facto de termos comido e bebido com Jesus. Facilmente entrepretamos as palavras de Jesus como uma espécie de «ameaça» para os judeus que se recusavam a aceitar a sua doutrina, mas suponho que tiraremos maior proveito do texto evangélico se tivermos a coragem e a humildade de o aplicar sobretudo a nós próprios. Segundo este texto específico do evangelista Lucas, para entrar no Reino de Deus, não é prioritário ser judeu ou pagão. O que conta é ter verdadeira fé em Jesus, que leve a praticar o bem. Isso quer dizer, por outro lado, que ninguém que tema a Deus e procure pôr em prática a justiça (cf. Act 10,35) está excluído do Reino. Di-lo também sem rodeios a Lumen Gentium: «A divina Providência não nega os auxílios necessários para a salvação aos que, sem culpa da sua parte, não chegaram a um claro conhecimento de Deus e, entretanto, se esforçaram, ajudados pela graça divina, por conseguir uma vida recta» (nº 16).

 

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 *     Entre as nações, eles proclamarão a minha grandeza e poder.

 

 *     Deus corrige os que ama e pune os que aceita como filhos.

 

 *     Virão do oriente  e do ocidente, do norte e do sul para se sentarem à mesa do Reino de Deus.

SÃO POUCOS

OS QUE

E SALVAM?

 

  • Quantos se salvam?

    O tema das três leituras de hoje (com um pouco de boa vontade, chega-se a essa conclusão) é a salvação final, também chamada tecnicamente escatológica. Mas a leitura que nos dá essa ideia mais claramente é, em primeiro lugar, o texto evangélico. O trecho em consideração segue-se a um outro em que Jesus fala, de várias maneiras, sobre o Reino de Deus.

 

    O facto é que, segundo o texto evangélico, um ouvinte aproveita a ocasião para perguntar a Jesus qual é o número de pessoas que se salvam. É curioso que ponha o problema colocando-se de fora, como se o assunto não lhe dissesse diretamente respeito. Ou então, porventura, ele assume essa neutralidade e esse distanciamento na convição de que, quanto a si, o assunto está resolvido: ele está no número dos salvos. Se calhar, a sua curiosidade está em saber quem mais se salvará, para além de si mesmo e de alguns outros que ele bem conhece.

 

    A pergunta não tem nada de anormal no âmbito da mentalidade farisaica de então, mas tem-se repetido também de diversas maneiras na história da Igreja. Hoje, são numerosos os que gostariam de ter uma resposta precisa e definitiva sobre o número dos eleitos. Não me refiro só a alguns elementos de seitas conhecidas que interpretam algumas passagens bíblicas (as que lhes interessam) em sentido literal e restrito. Refiro-me também às longas quanto inúteis discussões (hoje, menos que antigamente, desde que foi esclarecida a questão do limbo) sobre a sorte das crianças que morrem sem terem sido batizadas, dos infiéis, dos heréticos e dos «maus» (que são sempre os outros).

 

    Ora bem, é curioso também que Jesus se recuse a dar uma resposta a esta pergunta. Ele não tinha vindo para satisfazer a curiosidade das pessoas. De resto, o Reino de Deus não se rege por estatísticas. E, por isso, a única coisa que Ele diz àquele curioso é o seguinte: «Fazei todo o possível por entrar pela porta estreita». Isso é que é verdadeiramente importante. O resto são problemas secundários.

 

  • ... Ainda as estatísticas

    Eu insisto neste ponto, porque me parece importante. A lógica do judaísmo contemporâneo de Jesus e também a visão das grandes religiões (incluindo também a cristã) sempre tiveram como preocupação importante saber a resposta a esta pergunta: quantos (quem tem mais)? Exagerando talvez um pouco, du diria que cada uma tem a tendência a pensar que os que não lhe «pertencem» não se salvam ou então muito dificilmente se salvam.

 

    Pois bem, um judeu normal à questão referida teria respondido mais ou menos o seguinte: salvam-se os verdadeiros judeus e condenam-se os pagãos. Por sua vez, o cristão (pelo menos até há bem pouco tempo) costumava responder: salvam-se os que fazem parte da Igreja e condenam-se os que estão fora dela. Certamente que este «estar fora» é, depois, interpretado com as devidas distinções e cautelas, para evitar dissabores e dificuldades. Assim, não faltariam judeus que teriam dito que um bom pagão era implicitamente como se fosse judeu. E os cristãos falariam duma pertença à Igreja em espírito.

 

    Ora, parece-me que este tipo de resposta pertence um pouco àquele exercício de raciocínio segundo o qual, mais que a verdade, o que importa é não «perder a face». Ora, parece-me muito mais correcto dizer, sem falsas vergonhas, que as vias de Deus na história são sempre um enigma. E a verdade é que, até segundo a Bíblia, é mais correto dizer que as vias do Senhor são infinitas.

 

  • Todos são convidados

    Devemos voltar à parábola do Evangelho segundo a qual o que importa não é tanto saber a sorte dos outros quanto fixar a exortação de Jesus dirigida a todos: «Fazei todo o vosso possível por entrar pela porta estreita».

 

    A salvação não é um tema para satisfazer a curiosidade, mas sim um empenho. O povo de Israel julgava que, pela sua história e pelo seu passado, era privilegiado e podia gozar incondicionalmente da promessa da salvação. Mas já os profetas são muito claros a esse respeito. No caso da presente leitura do AT, Isaías diz que o Senhor reunirá todos os povos e todas as línguas. O exclusivismo judaico será totalmente superado com a participação no culto e no sacerdócio por parte de todas as gentes.

 

    O encontro com Deus não é, pois, exclusivo de ninguém. O estranho é que os judeus não tenham sido capazes de pôr em prática essa mentalidade, já que os princípios eram tão claros. «Todos os povos e todas as nações» quer dizer mesmo «todos». Mais enigmático ainda talvez seja o facto de, mesmo depois de vinda de Jesus Cristo, os novos membros do «povo eleito» continuarem a alimentar essa mentalidade exclusivista.

 

    A esse respeito, a leitura evangélica de hoje é dos textos mais claros e explícitos que se conheçam. E, no entanto, muitos cristãos, durante séculos, continuaram (e continuam ainda em certo sentido) a excluir da salvação outras pessoas que não pertençam formalmente à Igreja; como se essa decisão dependesse deles!

 

  • Ser cristão é sobretudo um serviço

    Na vida espiritual (como também na material), deixamo-nos levar, com mais frequência do que seria de desejar, pelo instinto do privilégio e do exclusivismo. Em teoria, sabemos e proclamamos até que Deus mandou o seu Filho único para salvar todos os homens. E, no entanto, na prática, quanto regozijo não sentimos às vezes ao «prever» que tal ou tal pessoa terá ido malhar com os ossos no mais profundo dos infernos (passe a expressão)!

 

    Pois bem, sem negar que isso possa acontecer, temos porventura que inverter a ordem dos fatores; como faz Jesus: há últimos que serão primeiros e primeiros que serão últimos. De bom grado, nos consideramos, senão os primeiros, pelo menos dos primeiros. Cautela, porque não é o nosso próprio juízo que conta, mas sim o juízo de Deus!...

 

    Mas, do cristão espera-se muito mais. Não que julgue os outros, mas que ame e sirva os outros. Por outro lado, a medida da «grandeza» do cristão é o seu serviço aos outros; como aconteceu com Cristo. Se quisermos falar de «atribuição da salvação», a pergunta que os discípulos de Jesus se devem fazer é, antes de mais, a seguinte: «Nós, cristãos, salvar-nos-emos?». Como efeito, ser cristão não é um privilégio nem um meio mágico de salvação. Esta é, digamos assim, o resultado do encontro do esforço humano com o dom de Deus.