Imprimir
Categoria: Domingos do Tempo Comum - Ano C
Visualizações: 327

Temas

de

fundo

 

1ª leitura (Jr 17,5-8): O Senhor diz: «Maldito quem confia no homem e conta só com a força humana, afastando-se do Senhor. Parece-se com um cardo selvagem. Nada de bom lhe pode suceder, porque está plantado na secura do deserto, em terra salobra onde não mora ninguém. Feliz, porém, quem confia e espera no Senhor. Esse é como uma árvore plantada à beira da água e que estende as raízes para a corrente. Por isso, não teme quando vem o calor, e as suas folhas estão sempre verdejantes. E, por que não a inquieta a seca dum ano, não deixa de dar fruto».

 

* Maldito quem confia no homem...

   Cuidado em não interpretar mal esta frase! E corremos o risco de o fazer se a extrairmos do texto e contexto. Ora, para não cair no perigo duma interpretação errada, não se pode deixar a frase a meio. Este «princípio» ou critério para entender as coisas está associado e sujeito ao texto que vem a seguir. Além disso, é uma forma de, com o recurso ao exagero, dar relevo à segunda frase que lhe é contraposta e que é, sem dúvida, mais importante: «... Feliz, porém, quem confia e espera no Senhor». Ora bem, dito isto, parece-me que devo acrescentar que esta passagem de Jeremias não tem a estrutura própria da linguagem profética, se é que assim me posso expressar. É que se parece mais com um texto tirado de um livro pertencente à chamada «literatura sapiencial». De facto, no caso em exame, recorre-se ao estilo da contraposição, de maneira que, despertando a atenção dos seus leitores com uma asserção forte e «discutível», se torne manifesto e absolutamente claro o pensamento que se quer fazer passar. Em resumo e em termos simples, o autor deste trecho - para além da forma da frase e das imagens - transmite, sem margem para dúvidas, uma verdade indiscutível a nível de fé: o destino de quem se sente auto-realizado só pelos próprios meios e por outros empreendimentos humanos e não confia no Senhor é, de facto, não a bênção, mas a maldição.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 

 

2ª leitura (1Cor 15,12.16-20): Uma vez que a minha mensagem é a de que Cristo ressuscitou de entre os mortos, como é que podem alguns de vós vir dizer que a morte não será vencida pela ressurreição? Pois bem, se a morte não se pode vencer, então também Cristo não ressuscitou. Ora bem, se Cristo não ressuscitou, então a vossa fé é uma ilusão e estais ainda perdidos nos vossos pecados. O que também significaria que os que acreditam em Cristo - que morreu - estariam perdidos. Se a nossa esperança em Cristo é boa só para esta vida e não para além disso, então somos mais desgraçados que qualquer outra pessoa no mundo.

 

* Se Cristo não ressuscitou, então é vá a nossa fé.

   Esta é uma forma forte e extraordinária de Paulo nos dizer que há uma estreita relação entre a ressurreição de Jesus e a nossa própria ressurreição. E é curioso - e talvez um tanto estranho - constatar que Paulo parte do princípio de que, se não é possível a nossa ressurreição, então também não é possível a de Jesus, por ele ter assumido a natureza huumana, por ser homem como nós. Nesse caso, a consequência seria trágica para nós: a fé seria vã, ou seja, sem fundamento. Não haveria nenhuma garantia sobre o perdão dos pecados e, portanto, a salvação seria uma miragem. Havia já no tempo de S. Paulo batizados que eventualmente até se vangloriavam da sua fé e que, no entanto, não acreditavam que a outra vida existisse. A ideia que eu tenho é que parece que continua a acontecer isso hoje também. Ou seja, há gente que diz que acredita, diz mesmo que é cristão e que, no entanto, não acredita que a vida continue numa outra dimensão. Bem, a meu ver, se é assim, então é caso para repetir o que diz S. Paulo: «Se a nossa esperança (fé) em Cristo é boa só para esta vida e não para além disso, então somos de facto os mais desgraçados dos homens». É claro também que a outra dimensão não pode ser só uma espécie de aperfeiçoamento desta, mas é outra coisa diferente e, nesse sentido, é útil e essencial continuar a leitura do capítulo 15 da 1ª Carta aos Coríntios.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Lc 6,17.20-26): Quando Jesus desceu da colina com os apóstolos, deteve-se num lugar plano com um grande número dos seus discípulos. Havia aí uma enorme multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e de todo o litoral de Tiro e Sídon. Jesus olhou para os discípulos e disse: «Felizes vós, os pobres, porque o Reino de Deus é vosso. Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque sereis consolados. Felizes vós, quando as pessoas vos odiarem, rejeitarem, insultarem e disserem mal de vós, tudo por causa do Filho do Homem. Alegrai-vos e exultai quando isso acontecer, porque uma grande recompensa está reservada para vós no céu. Era precisamente assim que os antepassados dessas pessoas faziam aos profetas. Mas ai de vós, os que agora sois ricos, vós que levais uma vida fácil. Ai de vós, os ricos que tendes tudo, porque já recebestes a vossa recompensa. Ai de vós, os que agora gozais a vida, porque haveis de chorar e gemer. Ai de vós, quando toda a gente disser bem de vós. Era precisamente assim que os antepassados deles tratavam os falsos profetas!».

 

* Felizes quando, por causa de Mim, vos tratarem mal.

   No domingo anterior, o evangelista Lucas contava a sua versão do chamamento dos primeiros «discípulos». Pois bem, é a partir daí que se estabelece uma «distinção» clara entre os discípulos e a multidão. Mas não me parece que seja esse o principal tema do texto deste domingo. De resto, o ter escolhido alguns para desempenhar uma papel especial (apóstolos e discípulos) não quer dizer que a atenção de Jesus esteja toda focada só nesse grupo de «escolhidos». O texto de hoje concentra-se naquilo que leva o nome de Bem-aventuranças, se bem que seja de esclarecer, desde já que, ao contrário de S. Mateus (onde elas são 8), em Lucas elas são apenas 4. O que quer dizer que, mais que o número, o que mais interessa é o conteúdo. Este trecho é, pois, como uma espécie de «Constituição» do ser cristão. Sim, não obstante as diferenças entre as «Bem-aventuranças» de S. Mateus e de S. Lucas, parece-me claro que a «proposta» que Jesus faz é de tal maneira radical que houve (e há), em todos os tempos, uma enorme dificuldade em assumi-la e em pô-la em prática. Ainda hoje - como sempre - os «ideais» que atraem as pessoas, incluindo os cristãos, são a carreira, o sucesso, a fama, a saúde, o dinheiro, a procura do prazer... Quantas vezes - quase sempre - se ouve dizer, por exemplo, que o mais importante é a saúde. Se calhar, pensar de modo diferentequivale a não ter os pés bem assentes na terra, é ser idealista. Ora bem, sejam as Bem-aventuranças oito, sejam quatro (não é o número o que mais interessa), parece que não é bem essa a «opinião» de Jesus. Então a pergunta a fazer por quem se diz cristão é simples: quem tem razão: Ele ou nós?

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 

 * Nós estamos nas mãos do Senhor como o barro está nas mãos do oleiro.

 

   Se Cristo não ressuscitou, então é vã a nossa fé e continuamos no pecado.

 

  *Felizes sereis quando, por causa de Cristo, vos tratarem mal!

A «LEI DE BASE» 

DOS CRISTÃOS.

   

 

*   Deus é imprevisível 

    Com o texto evangélico deste domingo, tem início a leitura do "plano prático" que Lucas apresenta para propor a nova lei, a vida moral do cristão. Há momentos na vida em que infelivelmente nos vemos confrontados com uma pergunta concreta que diz respeito ao que devemos fazer: o que é essencial no Evangelho de Jesus? E a resposta parece-me mais simples do que se pode julgar. E, no fundo, toda a moral natural se pode resumir a esta norma: age segundo aquilo que és. Ou seja, a acção moral parece estar como que confinada aos horizontes da natureza.

 

   Mas, na Bíblia (AT e NT), as coisas são diferentes.  A fórmula clássica da lei moral no Antigo Testamento começa por propor um modelo que é externo ao próprio homem. Com efeito, essa fórmula começa assim: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egipto, da condição de escravidão. Não terás outros deuses além de Mim» (cf. Ex 20,2-3). Ponto de referência absoluto é, pois, Deus. Só depois são fixados os preceitos ou regras morais a pôr em prática: não matar, não roubar, não cometer adultério... E isso traduz-se numa realidade de fundo que admite as próprias limitações perante o Absoluto. Daí se falar dos pobres, dos  que têm fome, dos que choram, dos que sofrem; enfim, daqueles que, levados pelas circunstâncias, não têm outra alternativa senão confiar n'Aquele que é o autor de todas as coisas.

 

  O texto supõe a situação concreta das pessoas e também o acumular de factos históricos. Só que, na ótica bíblica, são vistos à luz da fé. Os factos referem-se à libertação do povo da escravidão e ao seu constituir-se como nação livre. Mas, para isso, ao contrário de todas as vezes que as pessoas pensam que podem determinar o bem e o mal por si mesmos, é necessário admitir que o único que pode determinar a distinção entre o bem e o mal é Deus. Nessa linha, os mandamentos são são senão o corolário dessas premissas.

 

*  O número ou o conteúdo das Bem-aventuranças

   O comportamento, o agir concreto, das pessoas - tanto no AT como no NT - não pode ser senão a consequência da relação que elas têm com a divindade. E, por isso, a «abordagem» tem que seguir essa premissa: o ensino e o comportamento moral está relacionado com o anúncio dos princípios contidos nos chamados Dez Mandamentos e no Evangelho. É desse evento histórico, digamos assim, é desse relacionamento pessoal com Deus (no AT) e por Jesus Cristo (NT) que deriva o empenho moral. Quanto a isso, não há dúvida que o comportamento daquele que se rege pela fé é diferente do daquele que não parte desse princípio.

 

   No caso dos evangelistas, há uma tentativa a pôr por escrito aquilo que lhes parece como que a «constituição do cristão». É nesse contexto que se insere uma espécie de lista de princípios que fundamentam o comportamento das pessoas. São as chamadas Bem-aventuranças, que, em S. Mateus, são oito, e que, em S. Lucas, são apenas quatro. Mas não é tanto o número que conta, mas sim os valores que elas veiculam. Por isso, no que nos toca, não basta nós sabermos bem o catecismo e ficarmos todos contentes quando respondemos que são oito quando os perguntam quantas são as Bem-aventuranças. Repito: não é isso o que mais importa; senão, se calhar, algo estaria mal com a versão de Lucas.

   «O quadro dos valores, na sua globalidade, é revolucionado. Cria uma situação nova que não é possível desconhecer. Exige uma resposta: o sim ou o não; a fé ou a incredulidade. A aceitação comporta uma vida nova. O evento-Jesus é a grande ocasião oferecida aos homens para instaurar uma nova espécie de relacionamento com Deus, em que não é possível desconhecer os grandes empenhos morais, ao mesmo tempo que as possibilidades da vida são alargadas de maneira ilimitada» (cf. Messale dell'Assamblea Cristiana).

 

As bem-aventuranças como reviravolta de valores

 

   «As Bem-aventuranças (Evangelho) exprimem a reviravolta radical dos valores que o evento- Jesus realizou. São o "sinal" do evento. Com elas, Lucas proclama a realização das promessas messiânicas (bem-aventurados os pobres: cf. Is 61,1ss; Lc 4,18,19.21; 7.22; 10,21ss; bem- aventurados os que agora tendes fome: cf. Is 25,6; Lc 22,16,30; bem-aventurados os que agora chorais: cf. Is 35,10; Lc 2,25)».

 

   «Nestes pobres e nos perseguidos Lucas vê a Igreja em que vive. Quem diz sim ao evento-Jesus experimenta a alegria de se sentir amado por Deus e inserido na história da salvação, participando na sorte dos profetas e de Jesus. Os quatro "ais" apresentam a sorte oposta de quem diz não, de quem não acredita no Evangelho e, portanto, não se insere na história salvífica».

 

   «As Bem-aventuranças não são separáveis da pessoa que as pronunciou. Jesus é o "homem das Bem-aventuranças". Porque Ele ressuscitou (2ª leitura), é verdade que são bem-aventurados os pobres e a nossa fé não é vã» (cf. Messale dell'Assamblea Cristiana).

 

* Bem-aventuranças: lei ou evangelho?

    «As Bem-aventuranças não são lei, mas evangelho. A lei "atrela" o homem às próprias forças e incita-o a adequar-se a ela até ao extremo. O evangelho, ao contrário, põe o homem frente a Deus e incita-o desse dom inexprimível o fundamento da vida. Numa sociedade de proveito, em que o dinheiro é o ídolo perante o qual a pessoa humana é sacrificada a todo e qualquer outro valor, num mundo superindustrializado e superseguro, em que não há espaço para a autêntica liberdade. Só o "o homem das bem-aventuranças", o homem livre em relação às coisas, pode fazer com que seja redescoberto o verdadeiro rosto do homem».

   «Jesus lova os pobres que vivem contemporaneamente em dois mundos, por assim dizer: o mundo presente e o mundo escatológico. Ao mesmo tempo, ameaça os ricos que se contentam com viver só num mundo; o mundo que inclui quase exclusiva e inevitavelmente aqueles que levam uma vida desafogada... O pobre, ao contrário, "possuindo" talvez só a solidão, vive-a, todavia com a coragem que leva à profundidade do seu ser, lá onde um novo mundo é intuido e percebido...» (cf. Messale dell'Assamblea Cristiana).

 

 

 * Maldito quem confia no homem...

   As considerações que precederam põem no devido contexto a primeira leitura tirada do profeta Jeremias, cuja intenção não é classificar de maldito quem confia em outra pessoa. Só nos faltava mais essa! Agora que não demonstre muita inteligência - no sentido cristão do termo - quem põe totalmente a sua confiança nos homens, desprezando o Senhor, então sim, esse é maldito. Afinal, bem vistas as coisas, e em palavras pobres, escolher entre Deus e a pessoa (nós próprios) como princípios antagónicos é que é o verdadeiro «pecado original».

   «Maldito quem confia no homem» é claramente uma frase exagerada que só faz algum sentido quando «confrontada» com a que vem a seguir e a que afirma que é bendito aquele que confia em Deus. Todavia, neste texto como em tantos outros textos da Bíblia, há que ter o cuidado de nunca esquecer que a linguagem usada é a linguagem coloquial das pessoas, porque fala da vida das pesoas e não de supostas «teses científicas», que é preciso provar. Significa isso que à Bíblia é consentido não dizer a verdade? Seria uma conclusão completamente «desconchavida» - passe a expressão - porque não há menos verdade, por exemplo, numa determinada poesia só porque é poesia. Não façamos, pois, dizer à Bíblia o que lá não está escrito.

 

* Afinal, a nossa fé é vã ou não?

   Considerando agora a segunda leitura de Paulo aos Coríntios e correndo porventura o risco de «forçar» um relacionamento com as outras duas leituras, eu atrever-me-ia a dizer sem receio que há a hipótese de aplicar também neste caso a opção que tem que se fazer. Na ótica cristã, como é óbvio, a nossa opção fundamental e incontornável é opção pelo Absoluto que é Deus. Ora, como se sabe, o Absoluto decidiu fazer-se um de nós, sem, no entanto, nunca deixar de ser Deus; que o mesmo é dizer «Deus-connosco». É exatamente Jesus Cristo que «consubancia» essa realidade e, nesse aspeto, Jesus é então - também Ele, enquanto Deus-connosco - objeto da nossa opção de fundo; em contraposição com a opção pelo homem. E, nesse sentido, seremos benditos se a nossa opção for por Ele e seremos malditos se a nossa opção não for por Ele.

   Mas a leitura em questão introduz mais uma questão que me parece essencial. Ou, dito doutra maneira, optando por Deus e pelo seu Filho unigénito, opta-se pela vida de Deus. Isso significa que a fé em Deus implica a fé numa outra dimensão da vida que não se realiza apenas nesta vida. Daí Paulo falar no problema da ressurreição.

   A argumentação de Paulo pode não estar muito de acordo com a nossa mentalidade, mas o que ele quer provar é que, realmente, com a possibilidade da ressurreição, nasce a hipótese de esperar por uma outra dimensão, em que seremos como que imersos na própria vida de Deus. O crente que assim espera pode ser acusado de ser interesseiro, mas, por outro lado, que sentido faz uma fé que se limita a uma mera filosofia romântica. A fé é vida e este é um aspeto quer não pode ser, de maneira nenhuma, ignorado.

   E, já agora, todo o capítulo 15 da 1ª Carta aos Coríntios é poderoso e fundamental para entrar nesta grande luz da vida, que é a própria vida de Deus. Se a nossa fé não diz nada em relação ao que nos espera, se a nossa fé se esgota nesta vida, então que sentido faz? Se assim fosse, então, de verdade, a nossa fé seria vã e enganadora.