Temas

de

fundo

 

1ª leitura (Sb 2,12.17-20):  (Disseram os ímpios): «Armemos laços ao justo, pois nos embaraça e é contra a nossa maneira de actuar... Vamos ver se as suas palavras são verdadeiras e o que lhe acontecerá no fim da vida. Se o justo é filho de Deus, então Ele o ampare e livre dos adversários! Ponhamo-lo à prova com ultrajes e torturas para avaliar a sua paciência e o seu carácter e para comprovar a sua resistência. Condenemo-lo a uma morte infame, pois, segundo ele diz, Deus o protegerá». 

 

 * Avaliemos a paciência e o carácter do justo.

   Não são só de hoje as objecções que os ímpios - nós poderíamos chamar-lhes «laicos», embora correndo o risco de exagerar - fazem aos que, na sua vida, procuram pautar o seu comportamento pela «vontade de Deus». Debatia-se já com o mesmo problema o autor do livro da Sabedoria, último documento do AT, escrito directamente em grego já perto da vinda de Jesus e que, por isso, não foi aceite na Bíblia hebraica. Como diz o seu autor, os ímpios «odeiam» a vida do justo porque este, pela mansidão e fraqueza, enfim, pela sua vida diversa, é para eles um sinal imutável constante de reprovação e condenação. É por isso que inclusivamente projetam dar-lhe uma morte infame, mesmo que eventualmente isso não se venha a verificar. O que, porém, é necessário saber é que se trata da eterna história dos maldosos que não suportam que os outros não sejam como eles. O «justo», por seu lado, terá que estar sempre preparado para ser objeto de maledicência, desprezo e hostilização.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

2ª leitura (Tgo 3,16-4,3):  Onde há inveja e espírito faccioso, há desordem e todo o género de obras más. Ao contrário, a sabedoria do alto é, antes de mais, pura. E é também pacífica, dócil, cheia de misericórdia e de bons frutos; é imparcial, sem hipocrisia. A bondade é uma colheita semeada pelos obreiros da paz. De onde é que provêm as guerras e os confrontos entre vós? Não é porventura das vossas paixões que combatem nos vossos membros? Vós cobiçais coisas e, como não as podeis obter, estais prontos a matar. Roeis-vos de inveja por obter coisas e, como não as conseguis, então furtais e guerreais-vos. Vós não tendes o que quereis porque não o pedis a Deus. E, se não recebeis, é porque os vossos motivos são maus: pedis para satisfazer os vossos prazeres. 

* Não peçais para satisfazer os vossos prazeres.

  À semelhança da leitura anterior, este texto, da Carta de Tiago, aponta o caminho para a verdadeira sabedoria, na ótica de Deus. É graças a Ele que nós chegamos a saber o que é a sabedoria em concreto. É sábio quem é capaz de ter uma boa conduta e sabe tecer à sua volta uma autêntica teia de relações de sentimentos de paz, bondade, imparcialidade e compreensão para com as pessoas que o rodeiam, incluindo os inimigos. Fala-se, por vezes, demasiado na necessidade de reagir por se «ser filho de boa gente» (nunca achei muita piada à expressão), mas, ao contrário do que se possa pensar, a necessidade de fazer justiça nunca se pode confundir - ao menos na ótica cristã - com violência, orgulho, caos e vingança. Os litígios, os assassínios e as guerras são o produto de muita justiça que de justiça só tem o nome. E, a propósito, não será verdade que o conceito que Deus tem de justiça é muito diferente do que nós temos? Mais: não será que o seu conceito é mais correto que o nosso?

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Mc 9,30-37): Partindo dali, atravessaram a Galileia. Jesus não queria que ninguém o soubesse, porque ia instruindo os seus discípulos dizendo-lhes: «O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, que o hão-de matar; mas, três dias depois, ressuscitará». Mas eles não entendiam esta linguagem e tinham receio de o interrogar. Entretanto, chegaram a Cafarnaum e, quando já estavam em casa, Jesus perguntou: «O que vínheis a discutir pelo caminho?». Mas eles ficaram em silêncio, porque, no caminho, tinham discutido sobre quem deles seria o maior. Então Jesus sentou-se, chamou os Doze e disse: «Quem quiser ser o primeiro, terá que se colocar no último lugar e ser o servo de todos». Depois chamou um menino, colocou-o no meio deles, abraçou-o e disse: «Quem receber, em meu nome, uma destas crianças, recebe-me a mim. E quem me recebe, não só me recebe a mim mas também aquele que me enviou».

* O primeiro é o servo de todos.

   É bom recordar, claro, que o segundo anúncio da Paixão de Jesus acontece depois da Transfiguração. Mas suponho que mais importante do que isso é a lição que Jesus quer dar, em primeiro lugar aos seus discípulos mais íntimos, porque é essa mesma lição que nos diz diretamente respeito a nós. O facto de eles, a caminho de Cafarnaum, discutirem quem iria ser o mais importante no futuro reino de Jesus, era a demonstração mais evidente de que ainda não tinham compreendido nada. Não obstante, há que reconhecer que as perspetivas de poder que eles tinham, afinal, não representavam nada de anormal em relação àquilo que era a mentalidade corrente, pois todos estavam à espera dum Messias guerreiro capaz de levar tudo à sua frente. Mas, pensando bem, no fundo, não é essa a mentalidade que continua a vigorar nos dias de hoje? mesmo - não vale a pena escondê-lo - entre aqueles que deveriam já compreender que, ao seguir Jesus, «quem quiser ser primeiro, deve ser o servo de todos»? Este princípio do serviço, como é claro, é válido e indispensável tanto para a hierarquia como para o resto do Povo de Deus. A realização no nosso tempo do Reino de Deus não é possível sem a humildade, o acolhimento dos mais pequenos, ou seja, dos pobres e dos marginalizados.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

*   Condenemos

     o justo a uma

     morte infame.

 

 *  Um dos frutos

     da justiça

     é a paz.

 

 *  Quem quiser

     ser o

     primeiro,

     seja o último.

 

QUEM

ME

RECEBE

RECEBE

AQUELE

QUE ME

ENVIOU.

 

  • Autoridade e serviço

A perseguição do «justo» (homem bom, homem íntegro) é o tema da primeira leitura de hoje. O justo é alvo de perseguição, porque a sua conduta é a mais radical contestação do operar do «ímpio», seja qual for a sua forma de atuação. Por esse motivo, o ímpio não suporta o justo, julga-o fastidioso e um incorrigível «desmancha-prazeres».

 

O tema do justo perseguido relaciona-se com outros temas não menos significativos; como seja, por exemplo, o do Servo de Javé (domingo passado). Os judeus tinham uma ideia prevalentemente política da obra do Messias, julgando que ele haveria de aparecer sobre as nuvens para pôr em fuga todos os inimigos e fazer do Reino de Israel um reino poderoso, ao qual estivessem subjugados todos os outros reinos da terra. Insissto: não será essa ainda hoje a ideia que se tem do Messias? 

 

Mas a pregação e a ação de Jesus colocam-se, ao contrário, num outra direção. O seu anúncio é, por assim dizer, «politicamente incorreto»; é claramente um «anúncio de salvação radical contra o poder do mal», do pecado, e não a restauração duma dominação política; seja de que cor for. Daí o facto de os seus contemporâneos e até muitos dos seus discípulos (cf. texto evangélico do domingo passado) O não terem reconhecido e de O não terem aceitado como tal.

 

  • Não aos primeiros lugares!

A mensagem que Jesus transmite aos apóstolos é uma contestação da conceção de Reino baseada no poder, nas honras, na «dignidade», no papel, na importância, nos primeiros lugares. Mas, na realidade, a contestação mais radical é a sua própria vida e maneira de atuar. Jesus aceita a sua missão de «servo», manso e humilde de coração, que anuncia a salvação aos pobres. Ele vive no meio dos apóstolos como «aquele que serve», embora sendo o seu «Senhor e Mestre», chegando mesmo ao «exagero» de dizer que o serviço é a outra face do amor e que o maior amor é o daquele que é capaz de dar a vida pelos amigos (cf. Jo 15,13). E quanta dificuldade temos em aceitar e pôr em prática esta mensagem!

 

A palavra e o exemplo de Jesus resolvem o problema das «precedências» em sentido cristão: Jesus recusa categoricamente toda a ambição de domínio. A única autoridade da Igreja e dentro dela é (ou, pelo menos, deve ser) a autoridade do último lugar, a autoridade do serviço humilde... Mas quão longe estamos dessa meta! Os evangelistas são claros a este respeito, mas como é difícil assimilar a sua mensagem! Oiçamos, por exemplo, S. Mateus: «Quanto a vós, não vos deixeis tratar por "mestres", pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos... Não permitais que vos tratem por "doutores", porque um só é o vosso Doutor: Cristo» (Mt 23,8.10). E nós teimamos em pensar exatamente ao contrário!

 

  • Autoridade para realizar o bem comum

A autoridade! Eis uma das realidades mais ambíguas e, por isso, mais contestadas do nosso tempo; seja a nível civil seja mesmo a nível eclesial. Há quem a exerça por ambição, por vontade de domínio, por desejo de honra e glória. E há também quem a considere (e quem a proclame em linha de princípio) como um serviço em favor do bem comum. É o que se ouve dizer por aí amiúde, sem excluir os políticos que, nas campanhas eleitorais e nas tomadas de posse, juram que os seus mais nobres propósitos são o serviço do povo e o bem comum. Só que, na realidade, aqueles que põem essa proclamação em prática são muito poucos.

 

Todavia, essa ambiguidade não tem o seu fundamento no poder enquanto tal, mas na atitude de quem o exerce. Segundo a opinião e os critérios de Jesus, a autoridade não é pura e simplesmente nada mais do que um serviço. Não é que Ele seja tão «inocente» que pense que tudo está bem a nível de exercício de autoridade. Seria forçar a própria letra do Evangelho pensar sequer em semelhante hipótese. Mas o que lhe custava mais era o facto de nem sequer os próprios discípulos compreenderem o sentido e a natureza da autoridade, apesar de terem vivido com Ele tanto tempo.

 

  • Igreja não é sociedade civil

A incompreensão (ou, pelo menos, a compreensão lenta) dos discípulos tinha raízes profundas. Como se explica que eles não compreendessem? Marcos apresenta-nos as razões da falta de «inteligência» deles. Eles sabiam que Jesus pretendia fundar uma comunidade da qual eles se consideravam elementos cofundadores. Então começaram a imaginar como seria essa comunidade.

 

E, efetivamente, em linha de princípio, não havia mal nenhum e nada de estranho em pensar na sua organização. Mas não é esse o pomo da discórdia, digamos assim. Os discípulos discutiam o primado na comunidade, para ver quem é que mandava em quem. Jesus não diz que nessa comunidade não haverá um «primeiro». O que Ele quer fazer compreender aos discípulos é que, na nova comunidade, o primeiro lugar é o do serviço e da humildade. E, para ilustrar o seu pensamento, pega numa criança e diz: «Quem acolhe um destes pequeninos, em meu nome, é a Mim mesmo que acolhe».

 

E a verdade é que até nós aceitamos que sobre as crianças não se pode exercer uma autoridade que não seja de serviço. Ao exigir que o «primeiro» seja o servo de todos, Jesus não pretende impor a ninguém a submissão a outrem. Não se trata de submissão, mas de serviço; o que não é bem a mesma coisa. Seja como for, que os «últimos» não queiram usurpar o lugar dos «primeiros» sob pena de estarem a distorcer tudo. Com efeito, os membros menos «dignos» da comunidade que os «primeiros» devem servir não deixam de ser irmãos e nunca patrões. E é como filhos de Deus e irmãos em Cristo que eles são aqueles que «representam» o Pai e Jesus.

 

Deverá haver forçosamente uma comunidade estruturada e também uma organização, mas as «regras do jogo» comportam uma diferenciação radical em relação aos conceitos básicos que, até àquele momento, guiavam a sociologia profana e religiosa. O que a deve reger não deve ser o jogo de poderes, mas sim o cimento do serviço e da comunhão. Qualquer eclesiologia que se inspira em critérios civis, ou seja, a que transforma a Igreja numa sociedade civil, está a afastar-se dessa imagem essencial do Novo Testamento.

 

  • ... A autoridade na Igreja

Tudo o que acabou de ser dito está a indicar que a Igreja deve ser, antes de mais, uma comunidade de serviço. Assim como Jesus é «servo» porque salvador, assim a Igreja terá que ser serva, se quiser ser instrumento e sacramento de salvação.

 

A Igreja não pode existir, ou melhor, nem sequer se justifica, se tem por fim a própria grandeza. A sua existência só se explica como serviço para a comunicação de Deus com a humanidade: um serviço de unidade, de caridade e de verdade no mundo inteiro. Todos nós sabemos isso em teoria. Mas é preciso traduzir estas verdades na prática. Não é certamente um processo fácil, mas é preciso fazer um esforço efetivo nesse sentido. E, claro, compete à autoridade ser a primeira a ser sinal de unidade, porque ela é a primeira a dever servir.

 

Neste serviço cabe também a crítica, que é preciso aceitar. Sobretudo quando ela tem razão de ser, pois me parece que é mais fácil aceitá-la quando não tem fundamento do que quanto o tem. Quando não tem razão de ser, facilmente é catalogada por quem quer que seja como falsidade ou pura insinuação. Quando os campos se extremam em posições antagónicas (entre os que acham que as mudanças são demasiado rápidas e profundas e os que, pelo contrário, perdem a paciência frente à superficialidade das reformas) não basta dizer que a questão se resolve mantendo uma posição equidistante. É que pode muito bem acontecer que, tanto dum lado como do outro, haja exageros, mas também pode acontecer que haja motivos autênticos de queixa e reflexão.

 

E isso seria o suficiente para entender

a célebre proposta de João XXIII:

«É mais o que nos une do que o que nos separa».