Temas de fundo |
1ª leitura (Is 50,5-9a): O Senhor Deus ensinou-me o que devo dizer e eu não me rebelei nem me afastei. Apresentei as costas aos flageladores e não virei a cara aos que me arrancavam a barba. Não desviei o rosto dos que me ultrajavam e cuspiam. Mas os seus insultos não me podem fazer mal, porque o Senhor vem em minha ajuda. Endureço a minha cara como uma pedra, porque sei que não cairei em desgraça. O meu defensor está comigo e provará a minha inocência. Quem ousará acusar-me? Compareçamos perante o juiz e apresente-se quem tiver alguma acusação contra mim! É o próprio Senhor que me defende: quem ousará provar que sou culpado? * É o próprio Senhor que me defende. Este trecho, extraído do chamado III Cântico do Servo de Javé (Is 50,4-11; os outros são: 42,1-4; 49,1-6; e o quarto 52,13-53,12), continua a ser objecto dos estudos dos especialistas, que procuram identificar esta figura com alguém concreto. Para os que não são especialistas, possivelmente o mesmo só terá algum sentido tendo em consideração que o Servo de Javé é claramente a figura de Jesus que se sujeita à paixão e morte de cruz, primeiro pelo povo a que pertence, e depois por toda a humanidade representada por esse mesmo povo e corporizada no novo povo de Deus. Seja como for, num plano de aplicação pessoal e concreta, é possível afirmar que, não obstante todo esse calvário de sofrimento, o Servo Sofredor vê sempre a luz ao fundo do túnel, porque mantém uma confiança inabalável naquele diante do qual ninguém O poderá acusar. Nesse sentido, este trecho é, à sua maneira, um convite feito a todos a que, na vida, ponham sempre em primeiro lugar Aquele que é a razão de tudo. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 2ª leitura (Tgo 2,14-18): Meus irmãos, que aproveita a alguém dizer que tem fé se não apresenta obras para provar isso? Acaso essa fé o poderá salvar? Suponhamos que há um irmão ou uma irmão que não têm que vestir ou precisam de alimento quotidiano. De que lhes aproveitará se um de vós lhe disser: «Ide em paz, aquecei-vos e matai a fome», e não lhe der o necessário para o corpo? O mesmo acontece com a fé: se ela não tiver obras, é uma fé morta. Mas alguém poderá arguir: «Tu tens a fé e eu tenho as obras». A minha resposta é: «Mostra-me a tua fé sem obras, que eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras». * A fé sem obras é uma fé morta. Não parece haver qualquer relação entre este texto e as outras duas leituras propostas para este domingo. Seja como for, é incontestável poder deduzir-se que as nossas convicções profundas têm que ser «provadas» através de factos concretos. Quer dizer, soa a falso afirmar que se tem fé na salvação e não fazer nada o provar. Por outras palavras, dizer (como se ouve tantas vezes) que «eu cá tenho a minha fé» talvez não seja a melhor maneira de qualificar as próprias convicções. Por outro lado, não vejo que haja contradição entre o que diz S. Tiago e o que escreve S. Paulo na Carta aos Romanos: «Estamos convencidos de que é pela fé que o homem é justificado» (Rm 3,28). Basta para isso dizer que Paulo fala num contexto especial em que ele pretende deixar claro que, no campo da salvação, não há possibilidade de justificação se não se acredita em Jesus Cristo. De resto, basta continuar a ler a referida passagem de Paulo para logo descobrir que a salvação não é devida propriamente às «obras da Lei». Isso não quer dizer que não seja preciso fazer nada para demonstrar a fé em Jesus Cristo. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Mc 8,27-35): Enquanto Jesus ia com os discípulos pelas aldeias da Cesareia de Filipe, durante o caminho, Ele perguntou-lhes: «Quem dizem os homens que Eu sou? Eles disseram: «Há quem diga que és João Baptista; outros, Elias; e outros ainda, que és um dos profetas!». «E vós, quem dizeis que Eu sou?» – perguntou-lhes Jesus. Pedro então respondeu: «Tu és o Messias». Jesus, depois disto, mandou que não dissessem nada a ninguém. Começou depois a ensinar os discípulos: «O Filho do Homem deve sofrer muito e vai ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei. Será condenado à morte, mas, três dias depois, ressuscitará». E dizia isto sem margens para dúvida. * Tu és o Messias, o Filho de Deus. Há claramente três partes distintas neste trecho evangélico: a confissão de fé por parte de Pedro; o anúncio da paixão e morte por parte de Jesus; e o convite que Jesus faz a que os seus discípulos O sigam no mesmo caminho. Situado no meio do Evangelho de Marcos (recorde-se que este tem só 16 capítulos), este trecho assinala também uma mudança de perspectiva, na medida em que Jesus começa a falar claramente do fim que O espera e do que isso implica para os próprios apóstolos. O próprio evangelista Marcos - que, segundo os peritos, escreve primordialmente para não judeus - não tem dúvidas em fazer notar que: Jesus é recusado por Israel (3,6: «Os fariseus reuniram-se com os partidários de Herodes para deliberar como haviam de matar Jesus»; cf. sobretudo 6,1-6); por seu lado, Jesus como que «rejeita» Israel (7,24: «Partindo dali, Jesus foi para a região de Tiro e Sídon). Para Jesus, e para os discípulos, não resta senão a via da cruz... O discípulo de Jesus de todos os tempos não pode exigir e esperar outra sorte. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Entrega o corpo aos flageladores. * A fé sem obras é uma fé morta. * O Filho do Homem deve sofrer. |
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VÓS QUEM DIZEIS QUE EU SOU? |
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O Messias sofredor
Embora Jesus se tenha referido pessoalmente apenas uma vez, de modo mais ou menos explícito, ao tema do Servo Sofredor («Estou no meio de vós como aquele que serve»: cf. Lc 22,27), a tradição primitiva, logo bem cedo, não teve qualquer dúvida e dificuldade em ver muitas semelhanças entre a figura do Servo Sofredor (ou Servo de Javé) e o Filho do Homem (Cristo).
Logo a seguir ao baptismo no Jordão, o evangelista Marcos indica sem margem para dúvida que a vocação messiânica do Senhor é como a do Servo/Filho (cf. Mc 1,11; Mt 3,17; cf. também Is 52,13): «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu enlevo». Segundo o evangelista Mateus, as curas efectuadas por Jesus revelam a sua «função» de Servo expiador: «Fez isto para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: "Ele tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores"» (Mt 8,17; cf. Is 53,4). A sua humildade e mansidão são características que se atribuem também ao Servo de Javé (cf. Mt 12,18-21; Is 42,1-3).
O tema do «Servo de Javé» é, pois, aquele que melhor descreve a necessidade de o Salvador passar através do sofrimento e da morte para realizar o desígnio de salvação traçado pelo Pai.
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O escândalo dum mestre sofredor
Ora, a ideia do Messias como servo sofredor é do que mais escandaloso e afastado da realidade se pode propor à mentalidade triunfalista e de sucesso, bem como às expectativas de grandeza e domínio pelas pessoas em geral e pelos contemporâneos de Jesus em particular; sem excluir os próprios apóstolos. Neste sentido, quando a possibilidade do sofrimento e da morte é acenada, a reacção de Pedro, logo a seguir à sua grande confissão de fé («Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há-de acontecer!»: Mt 16,22), é extremamente elucidativa.
Se, só para confessar a messianidade de Jesus, é necessária a inspiração e a revelação do Pai (cf. Mt 16,17), mais difícil é ainda o caminho da fé que aceita o «escândalo» da cruz. Nem os discípulos, embora diferentes dos outros ouvintes de Jesus por lidarem de perto com Ele, foram capazes de aceitar a necessidade da cruz senão num segundo momento, depois de serem repletos do Espírito Santo. E nem sequer foram capazes de aceitar essa necessidade após um período, que se supõe razoável, em que Jesus os foi instruindo sobre a maneira de raciocinar segundo os critérios de Deus e não segundo os critérios humanos.
De facto, como já tinha dito Isaías, os caminhos de Deus não são os nossos caminhos (cf. Is 55,8). Só que nem os discípulos eram capazes de chegar a esta conclusão prática. E o «escândalo» consiste precisamente em que o critério para distinguir os planos de Deus dos planos dos homens é só um: é o critério da cruz.
O verdadeiro discípulo de Jesus é aquele que toma a sua cruz e O segue (cf. Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23). Custa até verbalizá-lo, mas é assim. Da mesma forma, o crente não é aquele que acredita em Deus não obstante os sofrimentos, mas sim aquele que segue a Jesus sob o peso da cruz, porque, di-no-lo Ele, quem não seguir assim atrás dele, não é digno dele.
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Loucura da cruz, mensagem de esperança
A cruz de Cristo continua a ser para muitos hoje (creio que a maioria) uma autêntica «loucura», um «escândalo» inaudito. Naturalmente, porque os critérios dos homens são diferentes dos critérios de Deus. Não me estou a referir só aos que não acreditam. Refiro-me também aos que se dizem cristãos.
Nós até estaríamos dispostos a aceitar a Jesus como Filho de Deus, como enviado do Pai. (E temos que o fazer, sob pena de estarmos a imaginar um Cristo incompleto). Mas o Jesus do Calvário é para nós sempre mais que um mistério; é um autêntico «escândalo»; senão até um «absurdo». E, no entanto, em tudo isto, há uma lógica, embora se trate duma lógica do Espírito e não da «carne».
O Pai não tinha «necessidade» dos sofrimentos de Jesus como punição substitutiva do castigo que nós merecíamos. Se podemos dizer que Deus tinha necessidade de alguma coisa (é a nossa maneira humana de o dizer) era da vida de Jesus como amor substitutivo em nosso nome.
Só o amor (que, em todo o caso, é sempre uma realidade misteriosa) é razão de ser desse sofrimento. Agora que Deus ame o homem e não tenha duvidado entregar-lhe o próprio Filho é um mistério ainda maior, se assim me posso expressar. Mas, mais uma vez, torna-se urgente intuir (talvez até por experiência própria) que o amor não se explica.
O Messias, como «servo sofredor», só se explica por amor. Todavia, quem sabe, talvez o amor inexplicável dum Deus que se faz homem pelo homem seja ainda a explicação mais «lógica» do facto de que Deus, que, por definição, não pode sofrer, se tenha sujeitado, em Jesus Cristo, ao pior de todos os tormentos.
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Amor: sinal e motor da esperança
Deus - a quem nada é impossível - também do sofrimento e da morte é capaz de fazer nascer a vida. Pela experiência por que passou Jesus, Deus como que nos demonstrou que, afinal, a morte e a derrota não são senão um fim aparente; não são um obscuro e fatal destino, porque Ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos.
Tudo isto contém implícita uma mensagem de esperança. O Deus que sofre connosco num acto supremo de amor, que é entregar a vida, em Jesus Cristo, para que os homens tenham a vida e a tenham em abundância, «demonstra» com isso mesmo que ama o mundo «loucamente» e que está disposto a tudo para que isso fique bem claro! Ele não se limita a deixar acontecer o mal indiferentemente, quase cruelmente! Porque o mal não vem dele. Pelo contrário, Ele combate-o. Só que o faz de maneira original; como sempre faz tudo o que faz. Ou seja, segundo a sua maneira de ver as coisas. E a sua maneira de ver as coisas não será melhor que a nossa?
Se, portanto, Deus se nos apresenta, em Jesus Cristo, como Salvador em uma das penas de morte mais cruéis que a humanidade conheça, é porque deve ter razão! Essa cruz, que lança a sua sombra para todos os recantos do universo, indica o insondável mistério de Deus. Na cruz, Deus como que abriu o seu coração, revelou o seu mais profundo segredo: o segredo dum Deus que (não se sabe porquê) é sempre solidário com o homem, aconteça o que acontecer, mesmo que, para isso, seja preciso mesmo inventar uma maneira de morrer por ele.