Temas de fundo |
XXII DOMINGO COMUM - B 1ª leitura (Dt 4,1-2.6-8): Moisés disse ao povo: «Israel, ouve as leis e os preceitos que eu hoje te ensino. Põe-nos em prática e, assim, viverás e chegarás à posse da terra que o Senhor, Deus dos teus pais, te dará. Nada acrescentes e nada elimines ao que hoje te prescrevo, mas guarda os mandamentos do Senhor, teu Deus, como eu tos prescrevo. Se os observares e puseres em prática, mostrarás a tua sabedoria e a tua inteligência aos olhos dos povos que, ao terem conhecimento de todas estas leis, dirão: «Que povo sábio e que inteligente esta grande nação!». E, com efeito, nenhuma outra nação, por maior que seja, tem um deus tão próximo de si como está próximo de nós o Senhor, nosso Deus, sempre que o invocamos. E que grande nação haverá que tenha leis e preceitos tão justos como esta lei que eu hoje te apresento?». Como se sabe, o Deuteronómio (de onde é escolhida a primeira leitura de hoje) é o 5º livro da Bíblia e significa à letra «segunda lei»; ou, dito doutra maneira, «lei revista e aumentada». Simplificando, trata-se, pois, de um livro cujo tema, em termos gerais, fala do relacionamento das pessoas com Deus. Nele está sempre atuante a presença de Deus, que faz um pacto de amizade através de Moisés. Daí se dever concluir que, a partir deste momento, a «religião» já não pode olhar só para o passado, mas tem que olhar para o futuro. Isso obriga o povo a assumir um estilo de vida necessariamente diferente do que era o estilo de vida anterior, superando nomeadamente o que vigorava sob a escravidão do Egipto. Este trecho é uma prova, uma «demonstração», do orgulho que o povo tinha na sua Lei, uma vez que, em termos territoriais e também militares, Israel era «insignificante». Mas é também um compromisso: o de viver agora segundo normas e coordenadas totalmente diferentes. Nesse sentido, mantém toda a sua atualidade, já que nos sugere a nós também que as atitudes e o comportamento de todos os dias têm que se conformar com a opção de fundo (a cristã) que fizemos. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
2ª leitura (Tgo 1,17-18.21b-22.27): Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto. Vêm do Pai das luzes, que não está sujeito a variações nem a sombras de mudança. Criou-nos, de sua livre vontade, com uma palavra de verdade, para sermos como que as primícias das criaturas. Acolhei com mansidão a palavra que em vós foi semeada e que é capaz de salvar as vossas almas. Mas tendes de a pôr em prática e não apenas ouvi-la, sob pena de vos enganardes a vós mesmos. A religião pura e sem mácula diante de Deus Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se deixar corromper pelo mundo.
A chamada Carta de S. Tiago parece-me um escrito eminentemente didático, prático e muito concreto, embora não descure igualmente as «bases» doutrinais. Referindo-se de modo particular à Palavra de Deus, o autor, neste texto, põe o dedo na ferida ao afirmar que não vale a pena enganarmo-nos a nós mesmos, contentando-nos com ser simples ouvintes; o que infelizmente acontece com frequência. A eficácia da Palavra depende da forma como, nas atitudes práticas de todos os dias, procuramos pô-la em prática. Dito doutra maneira, palavras que não produzam frutos são como «um bronze que soa ou como um címbalo que retine» (cf. 1Cor 13,1). Se calhar, a nossa ineficácia como cristãos reside precisamente aqui: o não dar o peso autêntico à Palavra que ouvimos; ou seja, o não a levar a sério. Para que não haja dúvidas quanto ao conteúdo das suas recomendações, S. Tiago termina dizendo que a religião pura e sem mácula consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Mc 7,1-8a.14-15.21.23): Alguns fariseus e doutores da Lei vindos de Jerusalém reuniram-se à volta de Jesus. E repararam que vários dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar... Perguntaram-lhe pois: «Porque é que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem com as mãos impuras?». Respondeu: «Hipócritas, bem tinha razão Isaías quando profetizou a vosso respeito: "Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. É em vão que me prestam culto; e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos". Desprezando o mandamento de Deus, prendeis-vos à tradição dos homens». E Jesus acrescentou (para a multidão): «...Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem é que o torna impuro...». * O QUE SAI DO HOMEM É QUE O TORNA IMPURO. Não é preciso muito para concluir que, neste trecho, nos encontramos envolvidos num ambiente de desencontro entre Jesus e os escribas e os fariseus. E a coisa, se calhar, até nos deixa relativamente tranquilos, pois, como regra, temos o condão de nos sentirmos desresponsabilizados ao darmos o nosso apoio às críticas de Jesus aos mesmos escribas e fariseus. Ou seja, achamos até que Jesus tem muita razão quando lhes lança em rosto o facto de, por causa das tradições humanas, eles negarem aquilo que «pertence» a Deus. Mas o texto evangélico assim não tem muito efeito. Este texto evangélico - como, de resto, qualquer outro texto bíblico - deve questionar-nos a cada um de nós. Ou seja, acabando com os rodeios, devemos questionar-nos até que ponto nós - não só os outros - não somos os escribas e fariseus criticados. Não será que, como com os antigos contemporâneos de Jesus, também os nossos corações estão endurecidos? As nossas tradições - sobretudo as supostamente religiosas - servem para mascarar a nossa maldade (estamos sempre prontos a julgar e a condenar os outros) ou para manter o coração unido a Deus? Só neste caso, são válidas. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Israel, ouve as leis e os preceitos que Eu hoje te ensino.
* Acolhei com mansidão a palavra que em vós foi semeada e que é capaz de salvar as vossas almas.
* O que sai do homem é que torna o homem impuro. |
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ESTE POVO HONRA- ME COM OS LÁBIOS, MAS O SEU CORAÇÃO ESTÁ LONGE DE MIM. |
O importante é o espírito
Após o que poderemos chamar de «ciclo eucarístico» (cap 6, Discurso do Pão da Vida), que é exclusivo de João e ao qual a liturgia da palavra dedica nada menos que cinco domingos, eis-nos de novo na companhia do evangelista deste ano, Marcos. Depois de termos sido engolfados, digamos assim, no mistério da intimidade com Jesus, venhamos cá para fora para entrar em contacto com a realidade exterior, com as ocupações de todos os dias...
Nesse sentido, parece-me que a liturgia da palavra de hoje é deveras interessante. De facto, a religião não deve ser algo de desencarnado daquilo que é a vida das pessoas. Não se vive olhando para o passado ou para as tradições (que, muitas vezes, nenhum impacto real têm na nossa vida) mas operando no presente, fundados sobre a fé da vivência dum Deus que é sempre jovem e sempre original. Tanto é assim que a presença de Deus no meio do povo obriga as pessoas a assumir um estilo de vida diferente do dos outros povos e a apresentar-se diante destes como um povo especialmente dependente de e absolutamente dedicado a Deus.
Prova dessa atitude e realidade é, por exemplo, o texto do livro do Deuteronómio, que testemunha o orgulho que Israel depositava na sua Lei e também na convicção de que essa Lei superava de longe todas as outras leis. Só que, com o tempo, infelizmente, foram dando mais importância a esse orgulho do que ao espírito da Lei que governava as suas relações para com Deus e duns para com os outros. Pouco a pouco, deixaram-se enredar pela letra da Lei, fazendo dela um ídolo, e acabaram por matá-la. Emaranharam-na de tal maneira com centenas de preceitos (só de proibições havia tantas quantos os dias do ano) que se tornava praticamente impossível pô-la em prática. No fundo, o que tinha surgido com a finalidade de ajudar as pessoas a aproximar-se de Deus, na prática concorria para que elas se afastassem dele. Não será isso o que acontece, em muitos casos, também no que se refere à Lei que se baseia em Jesus Cristo? E disso não excluo as leis de hoje!
Conservar ou mudar?
Logo desde o início da sua vida pública, Jesus afirma a sua independência em relação à tradição judaica. Por várias atitudes e conversas com a gente, Ele deixa bem claro que o que lhe interessa é o espírito, o coração das coisas. Eu diria, utilizando palavras atuais, que é inequívoco que, para Ele, a Lei é pura e simplesmente um meio e não um fim. Aliás, também Ele diz isto mesmo por outras palavras: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado» (Mc 2,27; cf. também Mt 12,1-8; Lc 6,1-5). Mas é tão difícil ultrapassar a convicção de que lei é lei e não se discute mais sobre isso.
Tanto é assim que essa posição de Jesus acaba por se tornar um ponto de fricção e de contraste entre Jesus e o judaísmo farisaico. Por um lado, Jesus afirma claramente que a Lei e os Profetas não devem ser abolidos (e Ele não veio para isso), mas sim completados, dando-lhes sentido. Por outro lado, como que se envolve numa discussão e numa luta contra certas «tradições dos antigos», que são o resultado de preocupações puramente humanas e legais, ameaçando anular o próprio espírito da Lei...
Pomo de discórdia: esclerotização da Lei
Com base nesta polémica dura de Jesus contra os fariseus, que defendiam perspectivas estreitas, acabou por dar-se o nome de «farisaísmo», originalmente sinónimo de piedade e perfeição, àquilo que também é conhecido há muito tempo por «hipocrisia», como observância puramente exterior e ritual priva de convicção.
Obviamente, isso não significa que todos os fariseus fossem iguais. Jesus tinha amigos entre os fariseus. E Paulo, por exemplo, era ele mesmo um deles. Por outro lado, sendo severos observantes da Lei numa época de influência pagã muito acentuada, eles, por via indirecta, acabaram por salvar a alma e a identidade do povo de Israel. Para salvar essa identidade, tinham-se visto obrigados a atenuar consideravelmente as expectativas e as esperanças messiânicas, ao contrário dos zelotas que eram a favor da ação política, que teve consequências desastrosas. Sendo certas atitudes «subversivas» dos zelotas politicamente perigosas, os fariseus acentuavam, em vez disso, as práticas cultuais, dando a essas a precedência sobre os deveres de fraternidade humana e de justiça social. Há que reconhecer que foi esta defesa e espécie de «devoção» à Lei que tornou grande o judaísmo e que, em mais que um caso, foi motivo de salvação da identidade para todo o Israel.
Mas isso comportava grandes riscos que, de resto, são causticados pelo Evangelho. Ao pôr no mesmo pé de igualdade todos os preceitos, religiosos e morais, civis e cultuais, deixando a discussão à subtileza dos casuístas, o culto da Lei acabava por impor um jugo impossível de levar (cf. Mt 23,4; Act 15,10). E assim, de sinal de aliança e liberdade, a Lei tornara-se uma cadeia de escravidão. Um segundo perigo, ainda mais grave e radical, era o de estabelecer uma espécie de «justiça do homem», que chegva ao cúmulo de pensar que poderia reclamar os seus direitos perante Deus. Por outras palavras, na prática, a salvação então não dependeria propriamente da graça e da livre iniciativa de Deus, mas da obediência material e «física» a mandamentos e à prática de boas obras, como se o homem fosse capaz de se salvar sozinho.
Tentação que se repete
O farisaísmo e o formalismo não são uma atitude que diz respeito só ao passado. São uma tentação contínua que se repete nos tempos que correm e na qual caem pessoas e instituições que iniciam as suas actividades na melhor das intenções. Falando disso, foi uma mentalidade e uma forma mentis farisaicas que quase acabaram por bloquear o dinamismo da Igreja primitiva, quando os próprios apóstolos queriam impor todos os costumes judaicos aos que se convertiam do paganismo. Foi necessária a firme e até rude energia de Paulo, a autoridade de Pedro (mas apenas depois duma visão especial) e a convocação do primeiro «concílio de Jerusalém» (anos 49-50 da nossa era) para que a comunidade primitiva se conseguisse libertar das normas legais que os judaizantes queriam impor como essenciais ao cristianismo.
Este modo farisaico de proceder pode ganhar terreno também na Igreja de hoje. Com efeito, pode-se exagerar e, pior ainda, absolutizar (como, de facto, acontece em muitos casos) a legalidade, o preceito, a exterioridade. Pode-se ainda hoje viver um cristianismo formal, legalista, exterior, periférico, mais interessado em obedecer passiva e acriticamente a normas recebidas, do que em dar uma resposta pessoal e responsável à chamada de Deus em relação às exigências de comunhão com os irmãos.
Corre-se igualmente o risco de ser fariseu ao não distinguir com clareza o essencial do acontecimento cristão alicerçado na história, das diversas formas históricas e culturais em que se manifesta, manietando com as nossas categorias preceitísticas a inegável e, eu diria, «imprisionável» originalidade e a ação do Espírito.
Tensão libertadora dos jovens
Algumas (ou muitas?) reticências (e até algumas resistências e recusas) em relação à renovação conciliar são o sinal desta tentação farisaica de «observar as tradições dos homens, transcurando os mandamentos de Deus» (cf. em cima, texo evangélico). Uma mal entendida fidelidade à Tradição (que, aliás, muitas vezes, é fidelidade a algumas tradições que não à Tradição) manifesta-se numa oposição intransigente a todo e qualquer esforço de renovação e acaba por ser índice de esterilidade e de infecundidade espiritual. A fidelidade ao Espírito é para levar a sério, uma fidelidade não amorfa mas dinâmica que, consequentemente, comporta mudança, vida, espírito. Tenho que admitir que, infelizmente, hoje continua a confundir-se com demasiada facilidade o que é um meio qualquer de chegar a Deus com a própria vontade de Deus.
Contra essa tendência, estão em geral os jovens de todos os tempos, que, por isso mesmo, são duramente criticados por nada respeitarem. Mas serão as suas atitudes apenas o resultado do instinto da destruição da tradição? Embora se oiça por vezes essa crítica, ela não parece tão linear. Em certos momentos, os jovens, neste sentido, podem ser um elemento ativo desta dinâmica de transformação das estruturas tradicionais inadequadas e inadaptadas aos tempos que correm. A natural, e não raramente consciente, rejeição de certa herança do passado (com os inevitáveis exageros) e a abertura a um futuro mais humano, são uma autêntica profecia no marasmo duma sociedade que parece contente de si mesma, mas que vive apagada de valores humanos autênticos.
É certo que nem tudo o que é «moderno» é bom e positivo, mas não deixa de ser menos verdade que nem tudo o que é «antigo» tem garantia de validade e bondade. Por outro lado, o que é acidental nunca pode ser essencial. Sejamos sinceramente abertos para admitir estas constatações sem com isso sentirmos que ficam abalados os alicerces da religião. Porque, afinal de contas, sentir que os alicerces da religião foram abalados por uma mudança qualquer não passa claramente de falta de fé: os alicerces da religião e da Igreja assentam não propriamente nas nossas virtudes (e até nem sequer nas nossas fidelidades às tradições), mas sim no poder do Espírito Santo. Poder que se manifesta com frequência através daqueles cujo dinamismo não permite que se leve a vida a conservar os louros do passado. Isso poderá ser doloroso e, em certo sentido, até apresentar-se como negativo, mas é preciso nunca esquecer que, como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas.
Só quando se «respeita» o Espírito é que se é capaz de ser gente de espírito, que se não deixa matar pela letra das coisas.