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 XIV DOMINGO COMUM - B

1ª leitura (Ez 2,2-5):  Enquanto essa voz me falava, o Espírito entrou em mim e fez-me pôr de pé. E essa voz continuou: «Filho do homem, vou mandar-te aos filhos de Israel. Eles são um povo de rebeldes, que se insurgiram contra mim. Eles e os seus antepassados têm pecado contra mim até aos dias de hoje. Eles têm cabeça dura e coração obstinado. Envio-te a eles para lhes dizer: “Assim fala o Senhor Deus”. E, quer te escutem quer não – porque são uma raça de gente rebelde – ficarão a saber que há um profeta entre eles». 

 

* Vou mandar-te aos filhos de Israel.

   Os estudiosos dizem que o profeta Ezequiel deve ter nascido em Jerusalém (em 620 a. C.). Ainda segundo eles, a sua missão profética ter-se-á desenvolvido fora, muito provavelmente em Tel-Aviv, onde se fixou com a família em 597. No entanto, é claro que o seu papel de «voz de Deus» junto do povo é mais conhecido entre os exilados na Babilónia. No texto proposto para este domingo, ele fala, em primeira pessoa, do «cuidado» que Deus tem para que não falte quem fale em Seu nome ao povo eleito, apesar de este ter cabeça dura e coração obstinado. Como diz o texto, a finalidade por que Ezequiel é enviado é para que o povo saiba que há um profeta no meio deles. Traduzido em termos mais directos, o profeta, neste caso específico, é o sinal da presença de Deus no meio do povo, independentemente da reação deste. Por outras palavras, isso quer dizer que, não obstante todas as circunstâncias, Deus não abandona o seu povo em nenhum caso. E talvez seja essa uma conclusão que possamos e devamos tirar também para nós: apesar das nossas infidelidades e apesar da nossa dureza de coração (e da humanidade), há que saber que Deus continua presente.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (2Cor 12,7-10):  Irmãos, para que eu não me encha de orgulho pelas revelações extraordinárias que recebi, foi-me dado um espinho na carne, que age como mensageiro de Satanás para me ferir, a fim de que não me deixe levar pelo orgulho. Três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim, mas Ele respondeu-me: «Basta-te a minha graça, pois a minha força se manifesta mais na tua fraqueza». De bom grado, portanto, prefiro gloriar-me nas minhas fraquezas, para assim sentir em mim a proteção do poder de Cristo. É por isso que me contento com as fraquezas, com as perseguições e com as angústias suportadas por Cristo. E assim, quando sou fraco, então é que sou forte.

 

* Basta-te a minha graça.

  Esta passagem eventualmente pode despertar alguma curiosidade, como seja, por exemplo, saber o que significa a expressão «espinho na carne». Alguns especulam que se trataria de uma doença crónica que seria um grave obstáculo que se oporia ao apostolado de S. Paulo. Mas, por mais que se especule, a verdade é que não há modo de tirar essa dúvida. De resto, a finalidade ou objetivo da Escritura não é satisfazer este tipo de curiosidades. Por isso, é melhor esquecer essa pretensão. Agora, aquilo que, pelo contrário, parece claro é que Deus não exige de ninguém que elimine dificuldades e limitações. Mas concede sempre a graça de as superar. E, em relação ao «combate espiritual», no caso de Paulo - ou, já agora, qualquer um de nós - quando se consegue atingir a vitória, apesar da fraqueza, então é muito mais evidente o poder salvífico de Deus, que opera também na nossa fraqueza. Eu penso que, neste capítulo, temos ainda muito que aprender para assumir o espírito cristão. Porque por vezes assalta-nos a «vaidade» de fazer para Deus tantas coisas bonitas e perfeitas, como se o que nós realizamos fosse um feito para impressionar o mais possível. Se não formos capazes de tudo atribuir a Deus, então não é nada fácil - até impossível, concordar com a conclusão de Paulo que «quando sou fraco é então que sou forte».

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Mc 6,1-6):  Jesus deixou aquele lugar e foi para a sua terra, seguido pelos seus discípulos. Ao sábado, começou a ensinar na sinagoga. Eram muitos os presentes. Quando O ouviram falar, ficaram cheios de espanto: «De onde é que lhe vem tudo isto? E que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como é que se operam tão grandes milagres por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as irmãs não vivem aqui entre nós?». E escandalizavam-se por causa disto. Então Jesus disse-lhes: «Um profeta não é rejeitado senão na sua terra, entre parentes e familiares». E não pôde fazer ali nenhum milagre, a não ser curar alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. Ele ficou muito surpreendido com a falta de fé daquela gente.

 

* Escandalizavam-se por causa dele.

  Estamos no fim da segunda seção do Evangelho de Marcos. Causa alguma estranheza que o evangelista nos deixe uma imagem que retrata, afinal, um fracasso de Jesus, durante uma visita à sua terra (Nazaré, terra onde se tinha criado). Todo o episódio é «sediado», digamos assim, na sinagoga (templo do local), onde as pessoas se reuniam ao sábado. Pela descrição, sabemos que a reação daquela gente não vai para além da simples admiração pelas coisas que Jesus diz. Tanto que se perguntam se porventura ele não é o filho do carpinteiro. Em termos humanos, é de supor que também Jesus estivesse à espera da adesão à sua proposta, mas o que obtém é a recusa por parte dos presentes. É fácil ficarmo-nos por aqui, quando se trata de fazer esta leitura, limitando-nos a criticar a atitude dos seus concidadãos. Ou seja, até nem nos custa muito «dizer mal» dos habitantes de Nazaré, que não foram capazes de descobrir o valor da pessoa que tinham à frente. Mas o facto é que o Evangelho pretende muito mais do que isso: pretende também questionar-nos a nós próprios. E, já agora, não será que, diante de Jesus, não raciocinamos exatamente como eles, não indo além das categorias humanas, dos laços familiares, do ofício do pai de Jesus? Ora, diante de Jesus, isso não basta, mas é preciso ir bem mais longe; sem nunca esquecer que Ele se propõe, antes de mais, como o enviado e o Messias de Deus.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *   Saberão

      que há

      um profeta

      no meio deles.

 

 *    Gloriar-me-ei    das minha fraquezas,

        para que

       a força de Deus se manifeste

       em mim.

 

 *    Ninguém               é profeta

       na sua terra.

O GRANDE

PECADO

É RECUSAR

A DEUS.

 

  • Incredulidade: pista principal

A primeira leitura e o Evangelho deste dia têm como centro de interesse, digamos assim, o tema da recusa e da incredulidade. Por um lado, o profeta Ezequiel é enviado a falar (em nome de Deus) a um povo de rebeldes (de cabeça dura e coração obstinado). E o resultado é que, não obstante as aparentes ameaças do enviado de Deus, o povo continua a não acreditar. Por outro lado, Jesus apresenta-se na sinagoga da terra onde fora criado na sua função de profeta, mas os habitantes rejeitam-no de maneira frontal. Eles acham que as coisas devem ser tratadas «de forma natural», em termos terrenos e, como é claro, sem o recurso a considerações de ordem superior; como seria, por exemplo, a admissão que, na pessoa de Jesus, tinham à sua frente alguém que era muito mais do que simplesmente «o filho do carpinteiro».

 

Ora, o facto é que, para «falar» de Deus e de Jesus Cristo, é necessário colocar como base de apoio a fé; e esta requer a superação dos chamados parâmetros simplesmente humanos. É através da fé que nos é possível compreender que não se pode «abranger» tudo só com as forças da razão. Sem fé, não é possível descobrir a Palavra de Deus para além dos «invólucros» em que está contida. Dito de outra maneira, essa palavra ou explicação, afinal, não passam de palavra humana. Entre parêntesis, eu poderia acrescentar que, neste campo, mais do que falar sobre Deus, devemos aprender a falar de Deus. Ora, esses invólucros, como regra, são pessoas ou factos que, segundo a mentalidade do mundo, tantas vezes, são vistos como insignificantes. Ezequiel, por exemplo, é um homem normal, sem dotes excepcionais, que deve apresentar-se ao povo como portador da Palavra de Deus. Bem vistas as coisas, também Paulo se apresenta também aos Coríntios na sua «fraqueza».

 

A mesma «insignificância» é vista em Jesus, que se apresenta na sinagoga como «um deles» e é visto apenas - repito - como o «filho do carpinteiro». Esta fraqueza em que está envolta a Palavra de Deus, por vezes, pode constituir um obstáculo - senão mesmo um escândalo -, para quem acha que as coisas de Deus levam tudo à sua frente. Essa mentalidade - que ainda continua a existir, mesmo a nível de «cúpulas» - assenta numa fé mal entendida, que anda continuamente à procura de milagres e factos extraordinários e espectaculares. Não me parece esse o modo normal do agir de Deus...

 

  • O grande perigo: rejeitar Jesus

    Se, na Bíblia, por um lado, a idolatria é uma das características das nações pagãs, por outro, a incredulidade é o perigo constante em que incorre o povo de Deus. Toda a história de Israel está tecida de incredulidade, infidelidade e recusa. E o mais curioso (salvo seja!) é que a incredulidade conduz quase sempre ao regresso dos ídolos.

 

    Mas isto não é só característico do povo de Deus. É uma regra geral: quando se recusa Deus (incredulidade), acaba-se sempre por substituí-lo por outros valores ou ideias que, para o caso, são transformados em ídolos. Basta pensar nos ídolos que vão estando sempre na moda ao longo dos tempos: a riqueza, o poder, o sucesso, a beleza, o bem-estar material..

 

    Para «contrabalançar» esta tendência, Deus nunca deixa faltar ao povo eleito - e não só - os seus profetas que, contra a corrente, anunciam, das mais diversas maneiras, a sua mensagem e os seus planos, que vão muito para além da simples dimensão temporal e material. Ora, para quem quer ser deixado em paz, esses «porta-vozes da Palavra de Deus» são uns incómodos e, por isso, são objecto de oposição, quando não mesmo de perseguição e eliminação. Mas Deus continua a insistir em mandar os profetas a essa malta de rebeldes, até lhes enviar o próprio Filho.

 

   Outro facto sempre recorrente é que, como regra, ninguém é profeta na sua terra. O próprio Jesus foi recebido da pior maneira possível; e precisamente por aqueles que julgavam estar mais perto de Deus. E a rejeição deles chega a tal ponto que, para não serem incomodados, decidem mesmo livrar-se dele mandando-o cravar numa cruz para o calar duma vez para sempre.

 

  • Admirava-se da sua incredulidade

   Relendo o texto evangélico, que podemos ser nós a admirar-nos da «maravilha» que o Senhor manifestou perante a incredulidade dos seus compatriotas de Nazaré : porque é que Ele, «no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência» (cf. Cl 2,3), se admira da pouca fé dos seus concidadãos? Como os antepassados se tinham comportado com os profetas, assim os israelitas agora se comportam com Jesus: são um povo de rebeldes; são gente de cabeça dura e de coração endurecido. A admiração é compreensível se pensarmos em Jesus como verdadeiramente Homem. Como tal, Ele fica admirado com a incredulidade dos nazarenos.

 

    Os nazarenos conheciam Jesus na sua «humanidade», mas também havia alguns sinais da sua divindade. Mas eles não quiseram ir para além do que era directamente visível. Saber descobir a outra dimensão da realidade: é esse o convite que nos é feito pelo evangelista; por outras palavras, ir para além do que os nossos sentidos podem apreender. Ora, é isso que os «operadores da Palavra» de sempre devem fazer: propor uma perspectiva que ultrapasse a simples temporalidade, independentemente do facto de serem ou não aceites. Seja como for, ser alvo de incredulidade (é muito mais cómodo seguir as regras e os ditames de uma vida já planeada) é, infelizmente, um dos resultados a que estão sujeitos os profetas de sempre. Mas a incredulidade dos outros não deve induzir o profeta ao silêncio, à renúncia, à demissão. Acrescente-se que aos profetas de todos os tempos o Senhor responde como a S. Paulo: «Basta-te a minha graça!». De facto, o poder de Deus manifesta-se na fraqueza daqueles que envia.

 

    Jesus de Nazaré escandaliza os fariseus pela facilidade com que, segundo eles, põe de parte a Lei e as tradições. Mas há mais: Ele escandaliza até os próprios discípulos pelo fim humilhante e trágico várias vezes anunciado e que Ele acaba por aceitar, contra a maneira de ver dos seus seguidores. Escandaliza os seus compatriotas por causa do incompreensível mas aparente contraste entre as suas humildes origens e a sua grandeza e inacessibilidade de profeta e taumaturgo. Apesar dos prodígios que evocam a sua divindade, os seus conterrâneos não O aceitam, porque, para O aceitar, é necessária a fé.

 

 O perigo da auto-suficiência

    Uma grande parte - a maioria - dos hebreus não chegou a reconhecer e aceitar Jesus como o Messias esperado. Este é um facto posto em realce até pelo apóstolo Paulo. Apesar de ele próprio ter tido uma experiência extraordinária, a recusa sistemática por parte dos judeus fez confusão a Paulo, como se sabe dos Atos (cf. Act 8,3; 9,1-6; 22,4; 26,9-10; Gl 1,13-14), se bem que ele tenha também começado por ser perseguidor dos cristãos. Mas ele foi uma excepção, na medida em que foi capaz de fazer o salto para além dos factos, como referem as passagens citadas.

 

    As razões que explicam esta rejeição são as mesmas que explicam também a nossa rejeição. Também nós estamos continuamente em perigo de pretendermos passar por cima do Cristo que nos é apresentado pelos Evangelhos. Também nós somos tentados às vezes a considerar a Jesus apenas como um grande homem - que o é, segundo o que se aprende, de resto, no catecismo e é também facilmente admitido por qualquer pessoa, mesmo sem fé. Talvez tenhamos alguma dificuldade, pelo menos às vezes, em aceitar que Jesus é também verdadeiramente Deus. Sem esta «vertente» da divindade, digamos assim, o retrato de Jesus não fica completo.

 

    Certamente quereremos salvar-nos, mas pomos a confiança apenas nos meios externos, num culto mais formalístico e ritual que interior. Também nós estamos sujeitos à contínua tentação de fazer calar os profetas, e sobretudo o Profeta por excelência, por mexerem com as nossas seguranças adquiridas. Era essa a situação que viviam os hebreus no tempo de Jesus. Julgavam que, pelo facto de cumprirem à risca e escrupulosamente (quando cumpriam, pelo menos em público) todos os mínimos particulares da Lei, tinham a salvação garantida. Legalmente eram perfeitos, mas moralmente eram cegos. Moralmente, só se pode ver quando se usam os óculos do coração. O milagre é sempre um desafio à cegueira do homem e é por isso que os que não usam o coração (no sentido hebraico do termo) são como os que têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem, têm mãos e não tocam e têm pés e não andam... A inteligência (a minha inteligência, por maior que seja) nunca pode ser o padrão último do conhecimento.

 

  • Profecia: originalidade do Espírito

    Como Ele próprio disse (cf. Mt 10,34; Lc 12,51), Jesus veio «trazer a espada», veio criar tensões, veio incomodar a nossa tranquilidade. A sua pessoa e a sua mensagem são sempre sinal de contradição, pois as suas propostas obrigam as pessoas a fazer opções, a tomar partido, não permitindo que se sintam sossegadas onde estão.

 

    O profeta é alguém que provoca uma ruptura nas nossas posições de equilíbrio, é aquele que vem romper o ambiente de tranquilidade que criámos à nossa volta. Um ponto comum a todos os profetas é a sua originalidade e rebeldia em relação às situações de facto que afetam a a vida e a interioridade das pessoas. O profeta é aquele que, cheio da originalidade do Espírito, quer mexer com as pessoas por dentro e que, por isso mesmo, acaba por mexer com elas também por fora.

 

    O profeta não é necessariamente um sujeito simpático, porque não acaricia os nossos caprichos e os nossos vícios, porque proclama com coragem a verdade e nos recorda (porque não usar a palavra?) os pecados, para provocar a nossa conversão. Ora, isso representa sempre um esforço muito grande e com frequência leva à recusa. Ao homem, o incómodo não agrada e, por isso, rejeita os profetas, rejeita Jesus, rejeita o Espírito.