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Categoria: Domingos do Tempo Comum - Ano B
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 XIII DOMINGO COMUM - B

1ª leitura (Sb 1,13-15; 2,23-25):  Deus não criou a morte e não se compraz com a ruína  dos seres vivos. Ao contrário, Ele tudo criou para a existência. E todas as criaturas do mundo são boas. Não há nelas veneno de morte nem o poder dos infernos domina sobre a terra, porque a justiça é imortal. Sim, Deus criou o homem para a imortalidade e fê-lo à imagem do seu próprio ser. Foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo; e morrem aqueles que lhe pertencem.

 

* Deus tudo criou para a existência.

   Segundo os peritos no assunto, em termos de composição, o livro que conhecemos como livro da Sabedoria é o último do AT (sendo que alguns chegam a pôr a data da sua composição por volta do ano 50 a.C.). Em termos de conteúdo, ele propõe-se como uma espécie de diálogo ou «inculturação» entre o judaísmo e a cultura grega, que era a que dominava o mundo conhecido de então. A mentalidade dominante de então - o que, de resto, se aplica também aos dias de hoje - podia resumir-se numa frase: o que importa é aproveitar a vida. A sociedade, nesse aspeto, não é, pois, nada de novo. Ora, o autor, numa linguagem que se aproxima bastante da nossa, apela então para outra realidade e deixa claro que, para além da morte física, há uma outra espécie de morte e é contra essa que a ação de Deus é essencial. Isso implica falar também duma vida para além desta vida. Nessa linha, faz todo o sentido defender que Deus criou tudo para a vida. Quando Deus entra na nossa história - digamos assim - não o faz só para nos dar a vida normal (essa já ele no-la deu), mas sim para nos dar a vida que conta para sempre. Por isso mesmo, talvez a ideia mais interessante e central do texto seja: «Deus criou o homem para a imortalidade e fê-lo à imagem do seu próprio ser».

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (2Cor 8,7.9.13-15):  Uma vez que tendes tudo em abundância – fé, dom da palavra, ciência, toda a espécie de zelo e o amor que vos ensinei – procurai também sobressair nesta obra generosa que é o serviço da caridade. Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo: sendo rico, Ele fez-se pobre por vós, para que ficásseis ricos por meio da sua pobreza. Não se trata de vos pôr a vós em apuros para aliviar as necessidades dos outros. Mas, como actualmente tendes em abundância, é justo que ajudeis os necessitados, para que um dia, por sua vez, quando eles tiverem supérfluo, compensem a vossa indigência. Assim haverá igualdade, como está escrito: «Quem muito recolheu, não teve demais e a quem recolheu pouco nada faltou».

 

* O princípio da caridade e da solidariedade.

   Este trecho pertence à segunda das três partes em que se pode dividir a segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Sobre o assunto temos notícias no livro dos Act 24, 17, em Rm 15,25-27, em 1Cor 16,1-4) e também em Gl 2,10. S. Paulo vê a ajuda - caridade - e solidariedade dos cristãos uns para com os outros como modelo de imitação do amor de Jesus Cristo. Presumo, no entanto, que a igualdade que se pretende estabelecer não se refere, em primeiro lugar, aos bens materiais. A Igreja de Jerusalém, em favor da qual é feita esta coleta, enriqueceu com a sua fé os cristãos de Corinto e, por isso, não é nada demais que agora Corinto venha em auxílio da Igreja-mãe de Jerusalém, mesmo que seja só no aspeto material, para que a ninguém falte nada. A frase que Paulo cita é o resumo do que acontecia aos hebreus no deserto quando recolhiam o maná: «Não sobejava a quem tinha muito nem faltava a quem tinha pouco» (cf. Ex 16,18).

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Mc 5,21-43): Depois de Jesus ter atravessado de barco para a outra margem, reuniu-se uma grande multidão à sua volta, ali à beira-mar. Chegou então um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo, que, ao vê-lo, se prostrou a seus pés e lhe suplicou com insistência: «A minha filha está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se cure e viva». Jesus foi então com ele, seguido por numerosa multidão, que o comprimia... Jesus livrou-se de toda aquela gente e, levando consigo apenas o pai e a mãe da menina e os que vinham com Ele, entrou onde estava a menina. Tomando-a pela mão, disse: «Talitha qûm!» (isto é, «Menina, Eu digo-te: Levanta-te!»). E logo a menina se levantou e começou a andar (pois ela tinha doze anos). Todos ficaram assombrados...

 

* Jesus cura e, acima de tudo, dá a vida.

   Do trecho evangélico de hoje, para além disto, faz parte também a cura duma hemorroíssa (texto omitido por razões de espaço), ou seja, duma mulher que sofria de fluxo de sangue. Seja como for, tanto no caso da hemorroísa como no caso da filha de Jairo, Jesus é apresentado por Marcos como o grande vencedor da doença e da morte. Mas, como me parece evidente, o objetivo principal do evangelista não é falar apenas e sobretudo da cura e da vida simplesmente materiais. O objeto, digamos assim, da fé cristã não se exaure na dimensão material, mas apela para a vida na sua plenitude, ou seja, usando um termo clássico, tem por fim a salvação. A salvação é vitória sobre a morte, mas não só sobre a morte material e biológica, mas sobre a morte total. É sobretudo esta a vida que Jesus pretende, mas a gente só a alcança se arriscar a sério, pois só a fé permite ao homem encontrar-se com o poder salvífico de Jesus Cristo.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *     A morte entrou

        no mundo

       por inveja

      do diabo.

 

 *     A vossa abundância

       supera

       a indigência

       dos pobres.

 

 *    Menina, levanta-te!

TODOS

FICARAM

ADMIRADOS

COM O

MILAGRE

DE JESUS.

 

Uma das características da Palavra de Deus é responder às ânsias mais profundas do homem, que têm a ver com o último destino. A Palavra de Deus tem, pois, por objetivo dizer ao homem algo de seguro e definitivo sobre realidades intimamente relacionadas entre si, como são a morte e a vida, e sobre o seu significado. Mais concretamente, a vida e a morte, na sua valência de plenitude, são realidades que têm a ver com todos os homens, constituindo, segundo uma expressão do Vaticano II, «o enigma da condição humana».

 

Como tem sucedido com vários vocábulos de extração cristã, também a morte vem sendo «assumida», digamos assim, por uma certa mentalidade laica e laicista; quiçá para a esvaziar de sentido. Quer dizer. não obstante defendam que esta vida não tem «escapatória», ou seja, tem um fim e não se pode falar de outra vida, vêem-se, no entanto, obrigados a lidar com ela. Então (possivelmente para lhe tirar o sentido de mistério que a caracteriza) tendem a reduzi-la a um mero fenómeno natural, como outro qualquer, mas sem consequências de qualquer espécie para além desta dimensão; pura e simplesmente que a outra dimensão, para eles, é apenas uma hipótese de estudo.

 

De qualquer forma, perante a inelutabilidade desse momento enigmático e incerto, alguns espíritos, que gostam de se apelidar de desempoeirados e positivos (seja o que for que isso signifique), rendidos à evidência, como que procuram desmitizar também a morte, descrevendo-a com ressaibos de sabor prosaico, sobretudo querendo importar e impor a doutrina que determina que não vale a pena - por ser irracional, segundo eles - alimentar ilusões consolatórias acerca de uma outra vida para além desta. Por outras palavras, uma certa mentalidade positivista tenta, por todos os meios, convencer as pessoas que, afinal de contas, depois da morte, é o vazio, é o nada, é mesmo o fim. Pois, mas... e se não for assim? 

 

 Por seu lado, a visão cristã é que a realidade da vida e da morte (por todos sentida, embora continue a ser incompreensível) é bem mais forte que todas as teorias. Todo o homem, qualquer homem, sabe perfeitamente, sem necessidade de elucubrações dos grandes pensadores, que a morte é inexorável. Mas, por outro lado, não deixa de ser menos verdade que todo o homem, qualquer homem (mesmo os que em teoria a pretendem desvalorizar), se revolta contra a morte; procura, a todo o custo, evitá-la, sabendo embora, repito, que lhe não pode escapar.

 

No fundo, este «instinto» para a vida não será talvez o sinal e a perceção de que a morte não pode ser, afinal de contas, o fim da existência plena? A morte, assim sem mais nada para além dela, para qualquer homem, é uma violência insuportável para a sua sede inexplicável e ao mesmo tempo inextinguível de vida.

 

A questão das questões é obviamente a do sofrimento, sobretudo o sofrimento do inocente, aliada à questão da morte. Questão que foi colocada pela nota que se segue à primeira leitura. De resto, como já ficou aqui implícito num outro comentário, é o tema dum dos livros mais belos e dramáticos de sempre: o livro bíblico de Job. A isso se referia a liturgia da palavra do domingo passado, a começar com um texto desse mesmo livro, que os muitos estudiosos consideram uma obra de arte da literatura mundial, e assim reconhecido até por alguns que crentes não são. Em minha opinião, daria uma belíssima peça de teatro sobre o tema do sofrimento.

 

Segundo a visão da fé, a morte (não me refiro à morte física, claro) não faz parte do projeto original de Deus. É certo que não sabemos como as coisas se processariam se esse projeto de Deus não tivesse sido alterado pela liberdade humana. Mas o facto é que (e não sabemos bem entendemos como) esse projeto foi alterado. A Bíblia dá a entender que «essa» morte entrou no mundo por causa do pecado. A primeira leitura de hoje sugere que foi por inveja do diabo. Seja como for, não faz sentido nenhum Deus ter criado o homem para o lançar na espiral do nada.

 

Mas, cuidado! Não queiramos resolver o problema atribuindo a culpa exclusivamente aos primeiros pais e ao diabo. Cada um de nós, através da história, está sempre a escolher entre a morte e a vida. Não podemos esperar respostas «filosóficas» ou racionalistas a partir da Bíblia. E também não é característica destas reflexões dar respostas deste género. De resto, por mais que se bata nessa tecla, chegamos sempre a um ponto em que a gente se vê obrigada a embater-se contra o misterioso (ou, pelo menos, contra o enigmático). E será que apostar em Deus é menos digno do que fiar-se nas nossas capacidades? Quando é que, finalmente, chegamos à conclusão que o melhor sinal de inteligência é ser capaz de admitir que não somos sufientemente inteligentes para entendermos tudo, como se o que não cabe na nossa cabeça não possa ser?

 

A Bíblia dá uma resposta, se quisermos, existencial (se é que se pode usar a expressão), uma resposta que afunda as suas raízes na origem divina do homem. A morte-morte faz parte da vida do homem por inveja do diabo. É evidente que a Bíblia se refere dum modo particular à vida e à morte em toda a sua dimensão; ou seja, à vida global e, por contraposição, ao seu negativo que é a morte global, mais do que à simples morte fisiológica. Da capacidade de distinguir entre morte global e morte meramente física depende a compreensão de muito desta realidade que a todos nos diz respeito.

 

Quando, instigado pelo autor do mal, o homem decide cortar os seus laços de união com a própria fonte da vida, acaba por perder a noção de vida e por apreender a morte como algo de incompreensível, quando antes a via simplesmente como uma passagem ou, por assim dizer, como uma fase da vida rumo à dimensão total.É tão bom alimentar a sensação de que estamos numa viagem em direção à terra que nos espera e onde descobriremos as nossas raizes!

 

Há qualquer coisa de misterioso na morte, apesar de tudo. Até para o homem mais religioso. E até o homem dito moderno, apesar de toda a «cultura de relativismo», tem um sentido muito agudo dessa realidade. Dominador da natureza, explorador do universo, artífice das maiores empresas, ele encontra-se, de repente, impotente perante a morte. E, por isso, chegado a esse momento decisivo, o homem não pode não fazer esta pergunta essencial: porquê a morte?

 

Apesar do que se possa defender, a morte para o homem de hoje continua a ser um mistério tremendo, como o era para os primitivos. E o mistério não se consubstancia apenas na pergunta: «O que está para além da morte?». Há outras, até mais simples, como, por exemplo: «O que é a morte?». Por isso, diante da morte, Jesus, que partilha connosco todas as vicissitudes da vida, não fica indiferente. Disso talvez sejam exemplos a ressurreição de Lázaro (cf. Jo 11,1-43) e a ressurreição da menina a que alude o texto evangélico de hoje.

 

Para intuir o mistério da morte, talvez seja indispensável intuir e aceitar primeiro o mistério da vida. Que sentido tem a vida para muita gente? Que significado têm para as pessoas as expressões «vida eterna», «imortalidade», «paraíso», «inferno», «salvação»? Disso depende a resposta ao problema. Muitos (talvez a maioria, pensam alguns), seduzidos pela vida materialista, vivem só para o dinheiro, para a carreira, para o sucesso, para o corpo e para a beleza física, para o divertimento, para a canção, para a discoteca, para o desporto e os tempos livres, para a procura do encontro sexual...

 

Mas o mais interessante (salvo seja!) é que, com frequência, é necessário que se nos apresente diante dos olhos o espetro da morte para realmente nos darmos conta que a vida que levamos, afinal de contas, não é a vida que mais conta. Será que a vida do ser humano é só esta vida? Se calhar, procuramos calar essa voz incómoda, mas ela retorna ciclicamente para nos fazer sempre a mesma pergunta: «O que é a vida? Para que serve a vida?».

 

Para o cristão, é possível uma dupla consideração em relação à morte. A morte para ele pode ser tremenda e terrível (como para outra pessoa qualquer), mas sabe que é o preço que tem que pagar ao pecado. O seu ser revolta-se todo contra ela e, no entanto, a morte é também a «porta aberta» para os novos céus e o novo mundo que lhe dá a possibilidade de, finalmente, se lançar nos braços do Pai para viver para sempre. O cristão sabe que à morte não pode escapar; nem ele nem ninguém. Mas, por outro lado, também sabe que, depois desse túnel escuro, uma claridade sem fim se abre perante os seus olhos e, então, já numa outra dimensão, compreenderá o que realmente é a vida.

 

Só um background destes pode explicar que, ao lado de costumes, teorias e expressões de angústia e de medo, encontremos na hagiografia cristã exemplos não só de calma e paz diante da morte, mas até o desejo ardente de que a distância que separa da outra dimensão seja encurtada o mais depressa possível. Mas não precisamos de recorrer a hagiografias especiais. Recordemos o que nos diz Paulo na Carta que escreveu aos cristãos de Filipos: «Eu gostaria de deixar esta vida para estar com Cristo, que seria muito melhor» (cf. Fl 1,23)...

 

No contexto da leitura do AT e do trecho evangélico propostos para hoje, apetecia-me dizer que a II leitura não tem muito cabimento. Por outro lado, seria forçar as coisas tentar a sua harmonização e adaptação. De qualquer forma, um elemento que me parece importante é o facto de, à luz da Palavra de Deus, ser «compreensível» a obrigação da solidariedade para com os mais necessitados.

 

Se a passagem comum e igual para todos os homens é a morte (disso ninguém pode duvidar) e se, na perspetiva da vida no sentido global, há que relativizar sempre a vertente materialística da existência, então a ganância deixa de ter sentido, porque os bens passam a ser considerados segundo a modalidade que lhes é própria, ou seja, meios para alcançar um fim bem definido: que é o de que todos sejam, finalmente, um só em Cristo Jesus.