Temas de fundo |
1ª leitura (Os 2,16.17b.21-22): Eis que a atrairei a mim e a conduzirei ao deserto para lhe falar ao coração. Aí, ela corresponderá como no tempo da sua juventude, como nos dias em que saiu da terra do Egipto. Então desposá-la-ei para sempre segundo a justiça e o direito, com misericórdia e com amor. Sim, desposar-te-ei com fidelidade e tu reconhecerás o Senhor. * Atraí-la-ei para lhe falar ao coração. O livro de Oseias pode parecer um pouco estranho, sobretudo se se atender ao facto de que o profeta/protagonista é «obrigado» a aceitar como sua esposa uma prostituta, com o encargo de a conduzir ao bom caminho. Discute-se inclusivamente se, mais que dum livro profético, não se tratará de uma ficção literária com o fim de transmitir uma mensagem especial? Fundamentalmente, a mensagem resumir-se-ia ao seguinte: Deus (no caso seria o esposo) tem um tal amor a Israel em particular (a esposa) e à humanidade em geral que faz tudo o que está ao seu alcance para a reencaminhar pelo trilho da redenção e salvação. Por outro lado, são bem patentes os sinais que acompanham a autêntica salvação: libertação do mal e perdão, encontro de paz e amor com Deus e reconstituição da antiga aliança. Nesse sentido, parece-me que é uma mensagem que se adapta à vida de qualquer pessoa, a começar por cada um de nós. Também em relação a nós, enquanto perdurar apenas o temor e não nos reencontrarmos com Deus na paz e no amor, não haverá verdadeira salvação. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 2ª leitura (2Cor 3,1b-6): Porventura terei necessidade, como alguns, de cartas de recomendação para vós ou da vossa parte? A minha carta sois vós; uma carta escrita no meu coração, para ser conhecida e lida por todos. Noto, com efeito, que sois uma carta que o próprio Cristo escreveu e confiou ao meu ministério. Está escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne que são os vossos corações. E digo isto graças à confiança que tenho em Deus por meio de Cristo. Não é que seja capaz de conceber alguma coisa por mim mesmo, mas porque a minha capacidade vem de Deus. É Ele que me torna capaz de ser ministro duma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, ao passo que o Espírito dá vida. * É de Deus que provém a nossa capacidade. Umas das acusações que a Paulo dirigiam os seus opositores (sobretudo judaizantes) era que ele se julgava o único e «legítimo» agente do anúncio do Evangelho. Por esse motivo, acusavam-no de arrogância e sobranceria. Com esse selo colado à cara, a sua actividade não podia não diminuir em efectividade. Pois bem, Paulo refuta essas acusações dizendo-se apenas um ministro (servidor) de Jesus Cristo: o que realizou é fruto da capacidade que provém de Deus que fez dele ministro duma aliança que se funda no Espírito que dá a vida. Se, com a vinda de Cristo e, no tempo de Paulo, com a chegada da «nova doutrina», tudo continuasse na mesma (como queriam um judaizantes), então, como é costume dizer-se popularmente, era melhor estar quieto. Se é certo que Jesus não veio mexer directamente em nada do que havia na Lei, a verdade, porém, é que, com os seus ensinamentos e a sua vida, o relacionamento do homem com Deus, a partir desse momento, tem que ser diferente. E é nisso que Paulo não se cansa de insistir. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Mc 2,18-22): Houve uma ocasião em que os discípulos de João e os fariseus estavam a jejuar. Vieram então alguns dizer a Jesus: «Porque é que os discípulos de João e os dos fariseus jejuam e os teus discípulos não?». Jesus respondeu: «Será que os convidados para uma boda podem jejuar enquanto o esposo está com eles? Claro que não! Enquanto têm consigo o esposo, não podem jejuar. Mas chegará o dia em que o esposo lhes será tirado e, então, nessa altura, jejuarão». «Ninguém deita remédio de pano novo em roupa velha, pois o pano novo puxa o tecido velho e o rasgão fica maior. E ninguém deita vinho novo em odres velhos. Se o fizer, o vinho romperá os odres e perde-se o vinho, tal como os odres; mas vinho novo, em odres novos». * Quando lhe for tirado o esposo, então hão-de jejuar. A frase que antecede imediatamente este trecho - «Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» - é já de si uma tentativa radical de mudança de mentalidades. É, digamos assim, uma revelação do rosto misericordioso de Deus através do próprio rosto de Jesus. O trecho de hoje, por sua vez, aplica a Jesus uma imagem que era aplicada a Deus no Antigo Testamento, como, de resto, é exemplificado pela primeira leitura deste domingo. Jesus, à semelhança de Deus Pai, é como o esposo cuja principal ideia e preocupação é ser motivo de alegria para o povo. Nessa linha, penso que a questão do jejum é apenas acidental, pelo que pretender daí inferir se o cristão deve ou não jejuar e quantas vezes deve jejuar é um «exercício» que ultrapassa a intenção do evangelista. Se alguma conclusão é preciso tirar é que o jejum deve ser um método e uma forma de preparação para o encontro com o «esposo» e, portanto, não é um fim em si mesmo. |
* Atraí-la-ei para lhe falar ao coração. * É de Deus que provém a nossa capacidade. * Quando lhe for tirado o esposo, então hão-de jejuar. |
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DEUS É FONTE DE ALEGRIA, E NÃO DE TRISTEZA. |
Deus e o enamoramento
A primeira leitura tirada do profeta Oseias introduz-nos logo no tema da liturgia de hoje: o encontro com o esposo. Segundo este trecho, Deus (que, para falar com o homem, tem que se «adaptar» às limitações do homem) não tem medo de utilizar a palavra «esposo» aplicada a Si mesmo para exprimir o seu profundo amor pela humanidade. Se partirmos do suposto que e relacionamento entre esposo e esposa é o mais íntimo e profundo que há, então podemos fazer uma ideia bastante aproximada de quais são os «sentimentos» que Deus nutre pelos homens.
Na vida religiosa, ou melhor dizendo, na vida espiritual, no que diz respeito ao nosso relacionamento com a divindade, há sempre o perigo de pensar que a fé seja apenas um consentimento dado a uma série de verdades. Quer-me parecer que até a profissão de fé no Credo que se reza na missa pode induzir-nos a uma perspectiva redutora. Por seu lado, no Catecismo de Pio X, a fé era por definição aceitar uma série de verdades, não parecendo haver nenhuma referência explícita ao «acolhimento» duma pessoa. E, nesse capítulo da adesão a uma série de verdades, não se tolerava então qualquer resquício de dúvida, como se, mesmo no que ao consentimento intelectual diz respeito, fosse possível hipotizar, passe a palavra, uma adesão a cem por cento às verdades propostas como alvo da fé. Por mais perfeita que seja a minha adesão a qualquer coisa, nunca será cem por cento perfeita, porque eu não sou capaz disso. A verdade é que, no que é humano, tudo é limitado e, portanto, a «adesão perfeita» nunca é possível.
Isto para indicar a que extremo se pode chegar nesta matéria (e que, pelo contrário, é preciso evitar): ser cristão, nesse caso, seria equivalente a aceitar, a dar consentimento (e por vezes ser obrigado a dá-lo) a uma série de verdades, e não já e sobretudo um encontro com uma pessoa, com uma experiência. A leitura do profeta Oseias e o Evangelho de hoje ajudam-nos a evitar este perigo: a fé que conta é conversão da alma e do coração, e não só da mente. No fundo, se bem lá no íntimo coração, eu procuro aceitar a pessoa de Deus, mesmo que subsistam alguns pequenos temores e algumas pequenas dúvidas, essa entrega e esse «consentimento» é o que mais interessa.
Afectividade e intimidade
«As nossas paróquias preocupam-se com ultrapassar a crise da fé programando cursos, encontros, funções. Tudo bem, mas atenção: a fé é uma paixão da mente, é ser fascinado interiormente, é um encantamento do coração. A fé diz respeito a todo o meu ser, torna-se vida, paixão, encontro com Cristo».
«Algumas das nossas liturgias, em parte, são apenas catequeses frias, sem paixão, e, em parte, repetição de palavras que os fiéis (por vezes) já sabem de cor. Ou seja, não aquecem o coração, não criam laços nem com o Senhor nem com os irmãos. Se muitos cristãos hoje correm em massa a certas manifestações, participam em certos grupos de oração, não será porque nas nossas igrejas não encontraram aquele calor de que cada cristão precisa para traduzir na vida concreta a sua fé? No relacionamento com Deus, precisamos de gestos e momentos de intimidade, momentos em que desejamos afastar-nos um pouco para gozar da pessoa amada. "Conduzi-la-ei ao deserto e lhe falarei ao coração", diz o Senhor a Oseias» (Valentino Vaccaneo, em «Vita Pastorale», Fevereiro de 2006).
Quando o esposo está connosco...
No domingo passado, os escribas e os fariseus escandalizavam-se e diziam: «Quem pode perdoar pecados senão Deus?». Hoje perguntam: «Porque é que os teus discípulos não jejuam?». Jesus, partindo desta contestação, aproveita para revela mais um pouco a sua identidade. Não é certo que quem lhe faz a pergunta chegue a entender o que Ele quer dizer. No contexto da literatura rabínica e bíblica em geral, a chegada do Messias era comparada a um banquete nupcial, em que naturalmente todos os presentes eram convidados, não a jejuar, mas sim a tomar parte no banquete. Jesus está a querer dizer implicitamente que Ele é o Messias, mas, pelos vistos, essa mensagem não é entendida.
Se os que O interrogam estivessem atentos, poderiam chegar à conclusão de que Ele era o Esposo ou Messias esperado, era Aquele que perdoa (domingo passado), ou seja, Aquele que está ali à sua frente, Aquele que realiza plenamente o encontro do homem com Deus. É isso o que o texto evangélico tem também intenção de revelar. Ele é o sinal visível de que Deus desposou a humanidade e, na sua pessoa, aceitou as consequências dessa condição.
E essa, na mente do evangelista, talvez seja uma resposta a todos aqueles que porventura acusavam os primeiros cristãos de não proceder, em matéria de jejum, como os outros. O que Marcos quer acentuar é que, mais importante do que o jejum, é o facto de os cristãos terem o dever é de celebrar, porque o «esposo» tem o poder de perdoar os pecados e de convidar para a festa. É isso: o encontro com Deus deve constituir para todos, antes de mais, uma festa. Jesus é a Boa Notícia, a notícia alegre de que Deus está presente entre nós, a notícia alegre de que Deus não é um Deus distante e desinteressado, mas um «Deus-connosco». O jejum também fará parte da nossa vida, mas como momento e forma de participação na cruz de Cristo. Fora desse contexto, se calhar, não tem sentido algum. E muito menos se, apesar do jejum, não chegamos a encontrar-nos com o esposo.
O ritualismo é anti-evangélico
«Ninguém deita remendo novo em pano velho». Embora aparentemente esta anotação não tenha a ver com o jejum, a verdade é que o evangelista Marcos tem a intenção de sublinhar que, com a vinda de Cristo, algo de totalmente novo se passou. O convite de Jesus é muito claro e mostra a infinita distância entre a religiosidade dos fariseus e a sua. Com Jesus, a espera acabou. Jesus é o esposo que leva a cumprimento a aliança entre Deus e o homem anunciada por Oseias. Quem permanece ainda na velha religiosidade não pode entrar na nova. Por outras palavras e utilizando as imagens evangélicas, não é possível deitar remendos. E isto vale para cada um de nós, hoje. A tentação duma religião farisaica, estreita, está sempre presente. Devemos ser capazes de espaços e horizontes novos.
Se a alegria é uma característica dos tempos messiânicos, então, por vezes, no dia a dia dos cristãos, dá a impressão que ainda não se chegou à descoberta de que o Messias já está entre nós. Se o cristão sabe que já foi «salvo», então a sua reacção natural deveria ser a da alegria e a paz de espírito. Cristo diz «não» ao que é velho e inútil, à religiosidade ritual e formulística e propõe uma religião em espírito e em verdade, não sujeita a ritos e fórmulas que, em certas circunstâncias, em vez de aproximar, afastam de Deus.
É claro que, neste caso, o «velho» não se deve identificar necessariamente com a «Lei», que continua a ser válida, na medida em que emana da própria vontade de Deus, mas tem a ver com as práticas do judaísmo já ultrapassadas que desfeiam e inutilizam o espírito que deve presidir a essas leis. É por isso que aprendemos que «a letra mata e o espírito é que dava vida» (cf. 2Cor 3,6).
Cultivar a novidade de Jesus
De alguma forma, é para mim uma espécie de sofrimento ter que admitir que, ainda nos dias que correm, continua subjacente no agir de muitos cristãos uma mentalidade que não tem muito de diferente da que caracterizavam os fariseus do tempo de Jesus. Parece que temos que carregar sempre derreados o peso dos nossos falhanços e dos nossos pecados - o que sem dúvida também é verdade - mas sem nunca nos esquecermos de que temos ao nosso lado Alguém que nos ajuda a levar os fardos a bom porto.
E isso, mais que motivo de tristezas e de jejuns, deve ser motivo de alegria e celebração. As nossas assembleias e as nossas eucaristias só merecem, de facto, o nome de celebração quando, nas nossas igrejas, há um ambiente alegre de libertação e de vitória sobre o pecado e sobre a morte. Mas isso deve ser uma realidade visível nos nossos «ritos», que não devem ser letra, mas sim espírito.
Quanto de verdade não existe nos «clichés» de certa literatura que apresenta o cristão como uma criatura triste, pessimista, medrosa, e que privilegia a linguagem da renúncia e da mortificação! Isso, claro, também faz parte da nossa condição, pois ainda não atingimos a plenitude da alegria. Mas, afinal, não somos a assembleia daqueles que foram libertados pelo próprio Filho de Deus?