Temas

de

fundo

1ª leitura (Ez 34,11-12.15-17):  Assim fala o Senhor Deus: «Eu mesmo cuidarei e olharei pelas minhas ovelhas. Como o pastor que passa em revista o seu rebanho, quando está entre as ovelhas que se tinham dispersado, assim me preocuparei com o meu rebanho. Reconduzi-lo-ei de todas as partes por onde tenha andado disperso num dia de nuvens e de trevas. Eu próprio apascentarei as minhas ovelhas e as farei descansar. Irei à procura da ovelha perdida e reconduzirei a tresmalhada; enfaixarei a que estiver ferida e tratarei da que estiver doente; e vigiarei a que está gorda e forte. A todas apascentarei com justiça... Eis que vou julgar entre ovelhas e ovelhas, entre carneiros e bodes.

 

* Escolherei entre ovelhas e ovelhas.

   As leituras bíblicas de hoje foram escolhidas em função do sentido a dar à «realeza» de Cristo. É, portanto, esse o ponto de interesse para delas tirar o máximo proveito. E, para isso, é indispensável partir do suposto fundamental de que a realeza de Cristo não tem a ver com domínio - como em geral é entendida a palavra - sobre os homens e as coisas. A realeza de Cristo consiste dum modo especial em querer associar-nos à sua glória. Parece-me que é esta a conclusão que se pode tirar também do texto do profeta Ezequiel. Depois de acusar, na página anterior a este trecho (eu diria com alguma violência) os reis de Judá e os chefes religiosos (também chamados pastores do povo), que, em vez de servir as pessoas, as exploram, o profeta preanuncia que o próprio Deus apascentará o seu povo com verdadeiro espírito de pastor. Esta leitura insere-se num contexto em que, em Judá, não há nem rei nem líderes religiosos como deve ser (estamos na altura em que os judeus regressam do exílio) e em que as pessoas estão mais disponíveis para aceitar uma nova «ideia» de rei, que é aquele que, em vez de mandar os seus súbditos para a morte, se entrega ele mesmo à morte por eles, para que tenham a vida e a tenham em abundância.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (1Cor 15,20-26a.28):  Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram. Assim como por causa dum homem veio a morte, assim também por meio de um homem vem a ressurreição dos mortos. Como todos morrem em Adão, assim em Cristo todos voltarão a receber a vida. Mas cada um segundo a sua própria ordem: primeiro, Cristo; e depois, por ocasião da sua vinda, aqueles que pertencem a Cristo. Depois, será o fim: Ele entregará o reino a Deus Pai, depois de ter reduzido ao nada toda a soberania, toda a autoridade e todo o poder. Com efeito, é necessário que Ele reine até colocar todos os inimigos debaixo dos seus pés. E o último inimigo a ser destruído será a morte. E, quando tudo lhe estiver submetido, então também Ele, o Filho, se submeterá a Deus, que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos.

 

* Em Cristo, todos voltarão a receber a vida.

   Este trecho de Paulo parte do suposto (de resto, isso está indicado imediatamente antes) de que, se Cristo não tivesse ressuscitado de entre os mortos, a pregação dos Apóstolos não faria qualquer sentido. Na óptica de Paulo, é meridianamente claro que, se Cristo não tivesse ressuscitado, o pecado e a morte (morte no sentido completo) não seriam retirados, continuariama subsistir. Concluída essa argumentação, ele retira as necessárias conclusões, sendo a principal o facto de que Cristo, com a sua ressurreição, é o fruto antecipado e o penhor e garantia de que também os que nele acreditam poderão alcançar essa vida que jamais terá fim. É através dessa vitória sobre a morte que Jesus conquista finalmente o «reino» e foi esse um dos motivos por que este trecho foi escolhido para este dia: «Ele entregará o reino a Deus Pai, depois de ter reduzido a nada toda a soberania, toda a autoridade e todo o poder». Cristo, o primeiro ressuscitado, como que nos arrastará consigo, digamos assim, no seu triunfo real.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Mt 25,31-46):  Quando o Filho do Homem aparecer na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, sentar-se-á no seu trono de glória. Diante dele, reunir-se-ão todas as nações. Então Ele separará umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. À sua direita porá as ovelhas e à sua esquerda os cabritos. O Rei dirá então aos da sua direita: «Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Tive fome e vós destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e acolhestes-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e fostes visitar-me, estive na prisão e fostes ter comigo». Então os justos responder-lhe-ão: «Senhor, quando é que te vimos com fome e te demos de comer ou com sede e te demos de beber? Quando é que te vimos peregrino e te recolhemos ou nu e te vestimos? E quando é que te vimos doente ou na prisão e te fomos visitar?». Então o Rei responder-lhes-á: «Em verdade vos digo: sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes». Dirá então aos que estiverem à sua esquerda: «Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me recolhestes; estava nu e não me vestistes; estava doente e na prisão e não me fostes visitar». Então também eles lhe hão-de perguntar: «Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, peregrino ou nu, doente ou na prisão, e não te prestámos assistência?». E ele lhes responderá: «Digo-vos que, na verdade, sempre que deixastes de fazer isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer».

 

* O que fizestes a um dos meus irmãos mais pequenos foi a Mim que o fizestes.

   O chamado «Juízo Final» é uma das páginas mais conhecidas do Evangelho de Mateus. E é a conclusão, com imagens grandiosas, da vinda definitiva de Jesus, em que Ele se apresenta simultaneamente como rei e como juiz. A cena do «juízo final» tem por objetivo descrever o tipo de reino que Cristo quer implantar e que se identifica com os pobres, com os marginais e marginalizados e com todos os que sofrem duma maneira ou doutra. Com esta parábola, Jesus dá a volta por completo às categorias que, com frequência, nos regem. Nós temos a tendência a identificar a autoridade e o poder com o domínio, quando Jesus o identifica com o serviço. Enfim, no fundo, a grande questão que nos é proposta é esta: qual é a ideia que nós temos de reino e de poder? Segundo Jesus Cristo, o reino que conta é o do serviço aos outros, que se manifesta naquilo a que se dá o nome de «obras de misericórdia». Assim, todo o que ama, sobretudo os mais necessitados, é, na óptica cristã, o herdeiro do Reino de Deus. Aliás, Jesus di-lo de maneira clara numa outra passagem do mesmo evangelista Mateus: «Nem todo aquele que me diz "Senhor, Senhor", entrará no reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade do meu Pai» (cf. Mt 7,21).

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *   Escolherei   

      entre ovelhas 

      e ovelhas.  

 

 *   Jesus entregará 

      o Reino a seu Pai.

 

 *   O Filho do Homem sentar-se-á 

      no seu trono 

      e separará uns dos outros.

O QUE FIZESTES 

A UM DOS MEUS IRMÃOS 

MAIS PEQUENOS 

FOI A MIM QUE O FIZESTES.

 

 

  • Senhor do tempo e dos homens

    Nos tempos que correm, em que, em certos ambientes, o simples facto de pronunciar a palavra «monarquia» constitui quase um tabu. Então, mencionar a realeza de Cristo poderá parecer, aos espíritos que se presumem desempoeirados, um contrassenso e até mesmo um anacronismo, de que é urgente desenvencilhar-se a todo o custo. Ora, isto, embora custe a alguns admiti-lo, não passa de preconceito; como há outros. Por muito que custe a alguns, há algumas monarquias que são autênticos modelos de progresso e respeito democrático. Para alguns, o simples ato de nomear a monarquia é sinónimo de mentes saudosistas e retrógradas ou então de espíritos exploradores. É fácil e simples demais qualificar os outros de saudosistas ou retrógrados quando eles não concordam com as nossas ideias.

   A realidade é que, na prática, quer se trate de monarquia quer se trata de república, o progresso e a democraticidade não dependem tanto do sistema quanto das pessoas que estão à frente dos destinos das respetivas nações e dos cidadãos que as constituem. Se é verdade que «fracos reis fazem fraca a forte gente», também não deixa de ser verdade que  cada povo tem os reis ou os líderes que merece, independentemente do regime. O progresso, a modernidade, a ordem e o respeito dependem. em primeiro lugar, do esforço que os referidos povos são capazes de fazer para mudar de mentalidade e sobretudo para «mudar de coração e de vida».

 

  • Um rei que é pastor

  Talvez por esses motivos é que esta solenidade é de data muito recente. Com efeito, esta festa foi proclamada por Pio XI com a encíclica Quas primas, no final do ano 1925. Seja como for, na realidade, o que constitui o seu verdadeiro conteúdo teve origem nas palavras do próprio Cristo que, diante de Pilatos, durante o processo que o condenará à morte de cruz, à pergunta: «Então, tu és rei?», responde: «Tu o dizes, Eu sou rei» (cf. Jo 18,37).

 

   Em todo o caso, como é evidente, não vou falar nem de regimes de governo nem de democracia nesta sede, nem sequer de política no sentido genérico. Seja como for, atribuir hoje o título de rei a Cristo parece ainda arriscado pelas consequências que a noção e o conteúdo do termo «realeza» traz implícitas. No entanto, do trecho evangélico de hoje (e também da primeira leitura) emerge inequivocamente a figura de Cristo como pastor e rei, estendendo-se a sua realeza a toda a humanidade. Bem, talvez a imagem do pastor atenue um pouco o contexto negativo que a noção de realeza ainda encerra.

   A segunda leitura, por seu lado, alarga ainda mais esta perspetiva de universalidade, na medida em que proclama que ao poder de Cristo será submetido todo o universo. Trata-se, pois, de uma realeza cósmica, se assim se pode dizer.

 

  • Ponto focal das ânsias da História

   Cristo como centro de toda a História do universo é um dos temas do documento do II Concílio do Vaticano chamado Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), cujo tese central é o papel da Igreja no mundo contemporâneo. O capítulo sobre este assunto intitula-se precisamente, de maneira muito significativa: «Cristo, Alfa e Ómega». E passo a citar: «... O Verbo de Deus, por meio do qual tudo foi criado, fez-se carne para operar, Ele, o homem perfeito, a salvação de todos e a recapitulação universal. O Senhor é o fim da história humana, "o ponto focal dos desejos da história e da civilização", o centro do género humano, a alegria de todos os corações, a plenitude das suas aspirações».

 

   «Ele é aquele que o Pai ressuscitou da morte, exaltou e pôs à sua direita, constituindo-o juiz dos vivos e dos mortos. E nós, vivificados e reunidos pelo seu Espírito, vamos, como peregrinos, ao encontro da perfeição final da história humana, a qual corresponde inteiramente ao desígnio do seu amor: "recapitular em Cristo todas as coisas, as do céu e as da terra". Diz o próprio Senhor: "Eis que eu venho e trago comigo o prémio para retribuir a cada um segundo as suas obras. Eu sou o Alfa e o Ómega, o primeiro e o último, o princípio e o fim" (Ef 1,13)» (cf. GS, N.º 45).

 

  • Ele só é rei de quem quer

   A convergência de todo o universo em torno de Cristo não é, todavia, um mero facto mecânico. É fruto duma intensa atividade dos homens livres na construção da humanidade e do mundo. A liberdade do homem é um predicado muito sério para não ser respeitado. Nesse sentido, o Reino de Deus continua a manifestar-se em Cristo como amor que liberta os pobres diante de Deus (cf. Mt 5,3); ou seja, os que, em total disponibilidade, acolhem os dons do Espírito, que se manifesta nas obras de misericórdia e amor para com o próximo.

    Assim, pertencerá a Cristo todo aquele que O aceitar e lhe for fiel até ao fim, segundo as suas próprias capacidades. E Ele terá em conta não tanto os feitos e obras excecionais (essas também, claro!) quanto os gestos normais de todos os dias feitos por seu amor. Fica deste modo esclarecido que os «filiados» no Reino de Deus não serão certamente os imparáveis «palradores» dos grandes momentos, mas os que, na solidão do quotidiano, são capazes de encontrar os homens e de os tratar por irmãos. Porque não é aquele que diz «Senhor, Senhor» que entrará no Reino dos céus, mas, sim, aquele que faz a vontade do Pai (cf. Mt 7,21).

 

  • Para quê tanta azáfama?

   O homem moderno está cada vez mais consciente das suas possibilidades e continua também a manter a sua real capacidade de domínio sobre o mundo. Mas, por outro lado, isso leva-o a julgar que tem nas mãos o poder discricionário de modificar o mundo a seu bel-prazer, incluindo nos capítulos mais sagrados que se referem sobretudo ao mistério da vida humana desde o início até ao fim. E com isso ele corre o risco de se convencer cada vez mais de que é um super-homem, chegando mesmo a propor-se como explicação de toda a criação. E, afinal, no apogeu do seu narcisismo científico e intelectual, nem sequer se recorda que basta um nada para o deitar por terra; uma pequena contrariedade e a tragédia pode estar a bater-lhe à porta.

  Como se faz para convencer o homem de hoje que, sem Cristo, nada pode fazer? Para semelhante pergunta, só há uma resposta: os cristãos, os que convivem com os outros homens, devem dar testemunho da vacuidade (vaidade) e da provisoriedade das empresas humanas quando desligadas da dimensão eterna. Seja como for, o facto de o Reino de Cristo não ser deste mundo, ou seja, de forma mais concreta, não ser à maneira dos reinos deste mundo, não deve impedir que sejam os cristãos os primeiros a trabalhar para restituir às realidades criadas (nelas incluindo a atividade humana) a sua verdade e consistência de criaturas. Os cristãos são aqueles que devem apontar para a relatividade do «mundo», para a sua não-significância quando separadas do Criador.

   A realeza de Cristo é a corrente que ilumina as consciências dos homens e, através destas, todas as realidades criadas, tornando o homem mais livre, menos atolado pelo pecado e pela escravidão, mais capaz de exercer um correto domínio sobre o universo das coisas. Pensar que se pode prescindir de Deus, assumindo indevidamente o seu posto, e também que se tem o direito de ditar leis sobre as criaturas, como se fôssemos patrões únicos, intocáveis e todo-poderosos, é uma responsabilidade de cuja gravidade e consequências teremos um dia que dar contas. É que, se o homem perdoa às vezes e Deus perdoa sempre, a natureza nunca perdoa! Oxalá que a sua sentença não seja condenatória!

 

  • Cristo, chefe da nova humanidade

   Uma visão superficial do mundo de hoje, e em particular daquele em que geograficamente estamos inseridos, não é muito encorajadora no que se refere à realeza de Cristo. Não vou procurar nem bodes expiatórios nem desculpas e explicações, porque não tenho nada que as dar. Limito-me a constatar a realidade. E então o primeiro passo é aceitar o facto sem desespero, pois sabemos que os caminhos de Deus não são os nossos caminhos. Mas isso não deve constituir um motivo para ficarmos de braços cruzados, à espera que aconteçam milagres a torto e a direito. A verdade é que os milagres continuam a dar-se, só que, como regra, se dão através dos homens.

   Talvez então o cristão (e digo-o como cristão em primeiro lugar) tenha de reconhecer que tem uma reeducação de base a fazer. Muitos cristãos, infelizmente, não têm a profundidade interior suficiente que lhes faça ver a relação entre Cristo e a realidade de todos os dias. Como todos os outros, deixam-se enredar pelas preocupações diárias, como aconteceu à semente da parábola que caiu entre espinhos (cf. Mt 13 e Mc 4).

    Se é verdade que o cristão é um homem como outro qualquer, não é menos verdade que é o homem que vê as coisas duma maneira totalmente diferente, sob outro ângulo. Ou, pelo menos, deve sê-lo; sob pena de deixar de ser cristão. Se não vê as coisas duma maneira totalmente diferente, deixa de ser testemunha e o Reino de Deus tardará a implantar-se. Ou então a vinha do Reino de Deus será entregue a outros que a façam frutificar (cf., a esse propósito, Mc 12,9).


   O cristão deve aparecer perante os outros como um homem apaixonado pela verdade total, pela promoção integral da humanidade e pela relativização constante e subordinação de toda a criação ao seu Criador. Esta adquire sentido somente quando referenciada ao Criador.