1ª leitura (Ml 1,14b-2,2b.8-10): Eu sou um grande rei - diz o Senhor - e o meu nome é temível entre as nações. Pois bem, agora é para vós esta ordem, sacerdotes: «Se não me ouvirdes, se não tomardes a peito engrandecer o meu nome - diz o Senhor do universo - lançarei contra vós a maldição e mudarei as vossas bênçãos em maldição. (Sacerdotes), vós desviastes-vos do caminho recto, ao fazerdes tropeçar um grande número de pessoas com o vosso ensinamento. Quebrastes a aliança de Levi - diz o Senhor do universo. Por não terdes guardado os meus mandamentos e por terdes feito aceção de pessoas perante a lei, tornei-vos desprezíveis e abjetos aos olhos de todo o povo». Não temos porventura todos nós um só Pai? Não fomos criados pelo mesmo e único Deus? Porquê então agir com perfídia uns contra os outros, profanando a aliança dos nossos pais?
* Os sacerdotes falsificaram a Palavra de Deus.
Esta passagem do livro do profeta Malaquias (=meu enviado, meu mensageiro) contra os sacerdotes entende-se melhor se tivermos em conta que terá sido escrita no tempo (cerca de 450 a.C.?) em que Neemias, após o regresso do cativeiro da Babilónia, procurava purificar o culto em Jerusalém. Os sacerdotes são chamados à atenção por se terem afastado do caminho recto e por terem arrastado o resto das outras pessoas com o seu exemplo. Os sacerdotes eram os representantes oficiais, digamos assim, dos dirigentes religiosos daquele tempo. Feito o diagnóstico, não podemos, porém, dar-nos por satisfeitos, porque, na verdade, este comentário só tem sentido se formos capazes de o aplicar à situação atual e a nós próprios. Trata-se, como é evidente, da denúncia da hipocrisia religiosa e porventura também do facto de os líderes religiosos se servirem do seu cargo não só para se julgarem superiores a toda a gente, mas também supostamente para explorar os outros. Ora, estes são aspetos que infelizmente não são exclusivos desses tempos. Nunca devemos excluir-nos da crítica que a Palavra de Deus representa. A este propósito, basta pensar em certas cartas que S. Catarina de Sena escreveu a sacerdotes, religiosos, bispos, cardeais e até ao Papa: as críticas não são contra as «instituições» em si, as quais são queridas por Deus, mas sim contra o uso ilegítimo e indigno que delas se faz.
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2ª leitura (1Tes 2,7b-9.13): Eu fui afetuoso entre vós, como uma mãe que acaricia e nutre os seus filhos. A afeição que sentia por vós era tanta que de bom grado teria partilhado convosco não só o Evangelho de Deus mas até a própria vida, de tão caros que me éreis. Irmãos, certamente vos recordais do meu esforço e das minhas canseiras! Trabalhei dia e noite para não ser de peso a nenhum de vós, quando vos anunciei o Evangelho de Deus. E há mais um motivo por que dou contínuas graças a Deus: é que, quando vos preguei a Boa Nova, vós acolheste-la não como palavra humana, mas como ela é realmente. Esta é a palavra de Deus que atua em vós que acreditais.
* Não quero ser de peso a ninguém.
A ideia que fica a quem lê esta página de Paulo aos Tessalonicenses contradiz um pouco a imagem que há a tendência a fazer acerca do «Apóstolos dos Gentios», que se supõe um tanto ou quanto duro e frio. Se, porventura, é essa a imagem prevalecente, então talvez seja altura de mudar de registo. Este Paulo, neste caso, tem um «coração de manteiga», eu diria, é quase um romântico. É, pois, claro que ele nutria um carinho muito especial pela comunidade de Tessalónica, na Macedónia. Mas isso não quer dizer que não avançasse com exigências, baseando as suas razões em todas as canseiras por que tinha passado. Em todo o caso, o mais admirável é que Paulo tem todo o cuidado em não ser de peso a ninguém. Neste capítulo, talvez muitos de nós façamos bem em seguir o seu exemplo, pois o «sucesso» ou não da nossa missão junto dos outros irmãos depende, em grande medida, da nossa independência em relação a interesses materiais de qualquer espécie. Talvez seja esse também o caminho mais convincente para levar as pessoas a acolherem a mensagem não como palavra humana, mas sim como palavra divina. Se é certo que a palavra de Deus é sempre eficaz, não é menos certo que muito do seu «sucesso» depende da forma como ela é apresentada e sobretudo do desapego relativamente a outros interesses com que é acompanhada.
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Evangelho (Mt 23,1-12): Jesus falou assim à multidão e aos seus discípulos: «Os doutores da Lei e os fariseus instalaram-se na cátedra de Moisés (são os intérpretes autorizados da Lei de Moisés). Fazei, pois, e observai tudo o que eles disserem, mas não imiteis as suas obras, pois eles dizem e não fazem. Atam e põem aos ombros dos outros fardos pesados e insuportáveis, mas eles nem com um dedo querem ajudar a levá-los. Tudo o que eles fazem é com o fim de se tornarem notados pelas pessoas: alargam as filactérias e alongam as orlas dos seus mantos; gostam de ocupar o lugar de honra nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas; gostam das saudações nas praças públicas e que as pessoas os tratem por "mestre". Pois bem, vós não vos deixeis tratar por "mestre", porque o vosso Mestre é um só e vós sois todos irmãos. E não chameis "pai" a ninguém nesta terra, porque um só é o vosso Pai, aquele que está nos céus. Nem deixeis que vos tratem por "doutores", porque o vosso único "Doutor" é o Messias. O maior de vós seja o vosso servo, porque quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado».
* Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!
A tensão entre Jesus e os chefes espirituais do povo de Deus atinge tais proporções que pode causar em nós algum assombro. Mas parece-me que a intenção do evangelista Mateus vai mais além do que a simples narrativa de algo que realmente tenha acontecido. Sendo o seu evangelho dirigido sobretudo à comunidade cristã, o seu alcance justifica-se na medida em que ele pretende evitar que, na mesma comunidade, se verifiquem essas coisas. Por isso se pode dizer que a denúncia profética de Jesus contra a hipocrisia não perdeu atualidade. As palavras do evangelista são, pois, um aviso contra todos os «mestres» da comunidade no sentido de fazerem adequar o seu ensinamento àquilo que fazem. No entanto, o evangelista tem o cuidado de avisar os «fiéis» de que o que os mestres ensinam não é necessariamente falso. Os fiéis têm o direito de esperar dos seus «pastores» o serviço fiel da Palavra, mas é claro que não são dispensados, também eles, de serem coerentes com a fé que recebem: «Observai tudo o que eles disserem, mas não imiteis as suas obras». A segunda parte do texto («não vos deixeis tratar por mestre...») é uma exortação clara a todos os chefes da comunidade cristã no sentido de não se deixarem vencer por sentimentos de ambição e domínio que os seus conhecimentos suscitam nos outros. Muito possivelmente, Mateus tinha casos concretos em mente, mas isso não impede que essa exortação seja válida para todos os tempos e que, por isso, também hoje, nos devamos examinar neste ponto específico.
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O MAIOR DE VÓS SEJA O VOSSO SERVO.
Deus é o único Rei
Duma leitura, mesmo que apressada, dos textos bíblicos propostos para este domingo, o tema comum que ressalta à vista pode sintetizar-se assim: Deus é o único Absoluto cuja palavra é indefetível e, por conseguinte, o único digno de confiança absoluta; e é abusiva toda a tentativa de se substituir a Deus.
O autor da primeira leitura, o profeta Malaquias (=«meu mensageiro»), utiliza imagens conhecidas dos seus leitores para pôr em relevo a «excelência» de Deus acima de tudo o resto. As «fúrias» do profeta parecem ter por alvo imediato os sacerdotes e os levitas do Templo de Jerusalém que, abusando da sua situação cultual, não se preocupam com fazer voltar o povo para Deus, mas olham apenas para os seus próprios interesses. Mas, em todo o caso, as suas críticas são dirigidas a todos os chefes do povo em geral que procedem do mesmo modo.
Para isso, Malaquias parte duma ideia triste e incompleta de realeza que o povo tinha herdado da sua experiência dolorosa sob os dominadores assírios e babilónios. Com efeito, nessa ideia de realeza o que mais ressaltava era o seu caráter despótico, na media em que ela se traduzia em em medidas de coação cujo principal objetivo era incentivar o culto idolátrico e explorar o povo através da imposição de pesados impostos e duma situação que na prática equivalia à escravidão. Mesmo o ambiente que rodeava as atividades do Templo era de tal ordem que o que menos interessava aos seus «dependentes» era o culto a Deus. Nesse sentido, o profeta Malaquias comunga dos esforços levados a cabo por Esdras e Neemias para purificar esse culto de todas as incrustações mercantis de que infelizmente enfermava. Por isso, Malaquias vem lembrar, «alto e bom sol», que Deus é o grande Rei ao qual, e só a Ele, tudo deve estar sujeito.
Conduta abominável
A prova tangível de que a conduta dos sacerdotes e dos levitas era abominável era o facto de oferecerem como sacrifício de imolação os exemplares mais decadentes dos rebanhos; como resulta do texto que precede imediatamente o que temos entre mãos. Nisso, a atitude deles é igual à do assassino Caim, cuja oferta de produtos da terra não é aceite por Deus, precisamente por ter escolhido também ele os piores frutos das suas colheitas.
Mas não é propriamente a oferta em si que interessa. É o que ela representa e simboliza relativamente à pureza ou impureza de coração. Tanto num caso como noutro, a primeira lição a tirar é que Deus não é nem pode ser um alibi para procurar o próprio interesse e para explorar os outros, porque Ele é o Ser supremo e Ele não pactua com essas tentativas de querer enganá-lo. Se quisermos estabelecer um paralelo para entender esta mensagem, atente-se no que diz o primeiro Isaías: «Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Vazio é o culto que me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos» (cf. Is 29,13). É interessante notar que é justamente esta passagem de Isaías que serve de base para a invectiva que o evangelista Marcos faz contra as tradições judaicas (cf. Mc 7,6-13) e que tem o seu correlativo no texto evangélico proposto para o dia de hoje.
Ensinar o que é recto
A atitude incorreta dos sacerdotes e dos levitas não se limita ao desvirtuamento dos preceitos e das regras de culto. Eles são recriminados também por Malaquias pelo facto de se terem desviado do mais importante de toda a Lei. Em vez de se preocuparem, antes de mais, com que os preceitos - que, de facto valem - continuem a ser a norma de procedimento, os encarregados de guiar espiritualmente o povo entretêm-se com iniciativas que nada têm a ver com o verdadeiro culto a Deus.
O profeta Malaquias sente-se, pois, na obrigação de repor a verdade das coisas, para assim impedir que o povo se desvie do seu caminho. Nesse sentido, toda a sua atividade profética tem por fim fazer com que o povo descubra o que realmente tem importância. Eu permito-me sugerir a sua leitura integral, até porque o livro de Malaquias é relativamente curto. Por outro lado, a leitura de hoje será muito mais clara se inserida no seu contexto natural (já agora, acrescento, mesmo não sendo necessário, que o livro em questão, nas edições mais recentes, se encontra antes do Evangelho de S. Mateus).
O pastor e a comunidade
Para contrastar o modo de proceder dos «pastores» do tempo de Malaquias, a verdadeira atitude do pastor é-nos descrita num trecho (a 2ª leitura) que até pode causar admiração pelo tipo de linguagem «romântica» utilizada pelo seu autor. Trata-se de uma faceta da personalidade do apóstolo Paulo que não é muito conhecida e muito menos posta em evidência, já que geralmente se associa à pessoa de Paulo uma imagem de dureza, frieza e frontalidade que não se compagina com esta página de ternura. Seja como for, independentemente disso (que me parece secundário no caso presente), a ideia que ressalta é a de como devem comportar-se os «pastores» relativamente às suas comunidades; sobretudo quando os inícios são difíceis; como foi efectivamente o caso da Igreja em Tessalónica, que era a capital da província romana da Macedónia.
No caso específico dos Tessalonicenses, Paulo parece optar por uma estratégia que eu não teria rebuço nenhum em sintetizar numa frase: «Não apagar o morrão que fumega» (cf. Is 42,3). Por outras palavras, também Paulo, ao contrário do que muitos pensam, é capaz de se adaptar ao background das pessoas a quem se dirige, preferindo, na circunstância, levá-las às boas (passe a expressão),
De resto, devo acrescentar que é essa a minha maneira pessoal de ver e perspetivar o tema da evangelização enquanto «passagem» do Evangelho àqueles que ainda o não escutaram. Por outras palavras, se é certo que se costuma citar o ditado «seja o vosso modo de falar: sim, sim; não, não» (que, aliás, está inserido num determinado contexto: cf. Mt 5,37), a verdade é que, mesmo na interpretação literal, nada nos permite concluir que seja lícito levar tudo à frente e à bruta. O problema está em como dizer «sim, sim» e «não, não». A evangelização é um processo, por vezes longo e doloroso, que exige muita paciência e sobretudo uma grande dose de mansidão e de ternura. Em qualquer caso, na minha opinião, é evidente que um contrasenso bíblico condenar e mandar tudo para as profundezas do inferno. Nesse caso, não é, com efeito, nenhuma «boa notícia».
Bom senso pastoral
Em Paulo e também no Evangelho (cf. precisamente as polémicas de Jesus contra o farisaísmo: Mt 23,1-36; Mc 7,1-23; 12,38-40; Lc 11,37-52; 20,45-47; e, de alguma forma, também Jo 10,24ss), há palavras frontais e talvez «duras de roer», mas são pronunciadas em circunstâncias bem concretas contra aqueles que se recusam a ver e a compreender que o coração é muito mais importante que os simples gestos exteriores.
Mas, mesmo assim, não me parece que a dureza e a «frontalidade» sejam a norma, pois o que mais ressalta é o desvelo e o carinho que Paulo, e sobretudo Jesus, nutrem pelas pessoas. De Jesus diz claramente o apóstolo Pedro, num dos seus discursos à multidão depois do Pentecostes, que «Ele andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo Maligno» (cf. Act 10,38).
Estou convencido que um dos grandes «pecados» que os pastores de todos os tempos estão sujeitos a cometer é julgarem não só que são donos do rebanho (que não são), mas também e sobretudo que a sua missão é passar um juízo condenatório à mínima infração. Na ótica evangélica, o grande perigo que correm constantemente é terem a pretensão de impor «fardos pesados» e obrigações que nem eles são capazes de mexer com um dedo.
Neste aspeto em particular, a atitude de fundo do apóstolo Paulo é duma clareza e duma transparência desarmantes, na medida em que ele tem até a preocupação (eu chamar-lhe-ia quase escrúpulo) de não ser pesado a ninguém. Neste mesmo contexto, Paulo explica que, «embora podendo fazer valer a sua autoridade como apóstolo de Jesus Cristo, foi afetuoso com os cristãos (Tessalonicenses), como uma mãe que nutre e acaricia os seus filhos» (cf. precisamente 1Tes 2,7, que faz parte da segunda leitura de hoje). Aliás, Paulo, na squência das exigências da parábola do Bom Pastor (cf. Jo 10,1ss; 10,11), acrescenta que está até disposto a dar a própria vida pelos seus fiéis, se for necessário.
O contrário: escribas e fariseus
No lado oposto estão aqueles que, não sendo verdadeiros pastores, só se preocupam com exercer o poder e, através dele, eventualmente explorar a boa vontade e a ignorância dos que lhes são confiados. Os bons pastores são aqueles cuja preocupação principal é fazer com que não falta nada ao rebanho (nem pastagens, nem água, nem segurança) e que, em caso de necessidade, estão mesmo dispostos a dar a vida por ele.
Não era esse o caso dos chefes espirituais do povo de Deus, que «não entravam nem deixavam entrar no Reino de Deus» (cf. Mt 23,13). No tempo de Jesus, caso típico era o que englobava não só os escribas e fariseus, mas também os saduceus. Os escribas ou doutores da Lei eram os estudiosos profissionais da Torá (Lei de Moisés) reconhecidos oficialmente como tais. Por sua vez, estreitamente ligados a eles, os fariseus constituíam um grupo que defendia de forma intransigente a observância de todos os preceitos da Lei. Os saduceus distinguiam-se dos fariseus por estarem mais preocupados com as implicações políticas da Lei, defendendo, na prática, tudo o que, pela Lei, justificasse a mudança para um regime de governo que conduzisse ao advento do Messias guerreiro e glorioso que esperavam e que os livraria do poder inimigo.
É por isso mesmo que eles são objecto de duras críticas por parte de Jesus.
O farisaísmo é que é perigoso
A propósito, pode causar-nos um certo espanto e embaraço encontrar páginas tão duras no Evangelho, que parece escolher como alvo algumas pessoas ou grupos de pessoas em particular. E possivelmente, nós até nem nos importamos muito com que haja esse tipo de linguagem. Talvez achemos tudo «muito bem feito!» e reconheçamos nesse texto uma possível resposta aos nossos instintos que ficam satisfeitos por ouvir alguém dizer «uma data de coisas» a certa gente, que bem está a precisar de ouvir umas tantas.
Corremos mesmo o risco de nos regozijarmos por esse facto, mas devo acrescentar que isso não é propriamente uma virtude. E eu acho que é mesmo uma tentação, pois enquanto e na medida em que vemos que são zurzidos os outros (passe a expressão), nós sentimo-nos uns tipos fenomenais (passe também esta expressão), na medida em que, assim, podemos orgulhar-nos de não sermos como eles. Só que esta é também uma outra história que está contada no Evangelho (cf. Lc 18,9-14=Parábola do Fariseu e do Publicano) e a verdade é que o protagonista que se orgulha de ser cumpridor escrupuloso dos preceitos da Lei não sai lá muito bem «tratado», não faz grande figura.
Esquecemo-nos com facilidade (e com um certo deleite, devo acrescentar) de que o capítulo 23 de Mateus (bem como os outros capítulos, naturalmente), foi escrito não diretamente para os supostos «escribas e fariseus», mas sim para os cristãos. Acresce o facto de que possivelmente, quando o Evangelho começou a circular entre os cristãos (nos anos 80), essas classes de pessoas já teriam desaparecido do mapa, porque, como está registado historicamente, por volta do ano 70, Israel e o Templo deixaram de existir como tais e, por isso, terá deixado de ter razão de ser tudo aquilo que se movia ao seu redor, a começar pelos escribas e fariseus.
O que me parece mais provável é que o evangelista, ao transmitir estas «polémicas», tenha tido em mente contribuir para combater, isso sim, a mentalidade «farisaica» que continuava a persistir nas comunidades cristãs, apesar de todo o ensinamento em contrário. E isso é tanto mais possível e provável, no caso específico de Mateus, quanto é sabido que o evangelista escreveu dum modo particular para cristãos de «extração» judaica, mais sujeitos, portanto, a deixarem-se enredar por essas excrescências farisaicas.
Sabe-se, por outro lado, que um dos primeiros e mais graves problemas que surgiram na Igreja primitiva se prende justamente com a «pretensão» que alguns (também chamados judaizantes) tinham de impor a todos os que aderiam à nova fé os usos e costumes e as tradições herdadas dos antepassados. Algumas dessas imposições, como confessa Pedro, «nem os nossos pais nem nós tivemos a força para as levar» (cf. Act 15,10).
Um jugo insuportável
Nesta perspetiva, para o evangelista Mateus, as críticas feitas aos escribas e fariseus têm, pois, por destinatários diretos não propriamente os referidos escribas e os fariseus, mas sim a multidão e os discípulos e, através deles, todos os seus leitores. De resto, é ele próprio que o diz no versículo 1 do capítulo 23 em questão. Com efeito, o versículo soa assim: «Jesus falou à multidão e aos discípulos».
No fundo, Mateus quer dizer a todos tão simplesmente isto: não façais como eles fazem. Por outras palavras, na altura em que ele escreve (os escribas e os fariseus ainda contam?), quem pode correr o risco de ser fariseu são os próprios discípulos e os novos crentes. E é esse também o risco que corremos nós hoje que lemos o texto em questão. Sim, porque o espírito legalístico não é exclusivo dos tempos em que Mateus escreveu este texto. De resto, bem vistas as coisas, a liturgia da palavra de hoje tem por objetivo despertar os corações das pessoas de hoje para a necessidade de corrigir os defeitos que continuam a desfear o rosto da Igreja no capítulo do comportamento farisaico.
Houve sempre (e continua a haver) a tentação e também a tentativa de interpretar e aplicar de modo rigoroso as normas (que não devem ser senão instrumentos), acontecendo que, em vez de facilitar a prática religiosa, a tornam impossível. Infelizmente, continua a haver muita gente que, em vez de ajudar as pessoas a descobrir e a ir ao encontro de Jesus Cristo, as afasta dele, sendo, como se costuma dizer, mais papistas que o Papa. Como diz o mesmo evangelista, «não entram nem deixar entrar quem deseja entrar» (cf. Mt 23,13).
O Mestre é só um
Uma operação que, neste contexto, me parece «higiénica», espiritualmente falando, é tomar com coragem e a decisão de aplicarmos esta página evangélica (e não só esta, como é evidente) a nós próprios, abandonando a tentativa de estar sempre à procura de alvos (que naturalmente são sempre os outros). Se calhar, esses escribas e fariseus não são senão a personificação, digamos assim, das minhas próprias manias de superioridade sobre os outros.
Não estarei eu a desempenhar o papel de escriba e fariseu quando tudo faço para me impor como «mestre» incontestado de doutrina e moralidade? Não estarei eu a impor aos outros uma série de normas rígidas que, se calhar, não só são pouco evangélicas, e que eu ponho em prática pessoalmente? Não será que, apesar da minha exposição de princípios, na prática do dia a dia, eu não sobrevoo com ligeireza por cima de normas e leis supostamente evangélicas que à força pretendo, no entanto, impor aos outros ameaçando-os com a pena da condenação eterna? Expor a pessoa e a doutrina de Jesus não será outra coisa?
Os escribas e os fariseus tinham complicado de tal maneira a vida das pessoas com um elenco tão extenso de normas (proibições e deveres) que muita gente tinha uma dificuldade enorme em distinguir o essencial e fundamental do secundário. Tanto era assim que, um dia, Jesus se viu obrigado a identificar e a resumir o essencial da Lei, quando alguém (já a isso foi feita referência no comentário do domingo anterior) lhe perguntou qual era o principal mandamento da Lei. Para isso, basta ler alguns versículos antes do capítulo 23 de Mateus para comprovar o que estou a dizer.
Título de nobreza: a «escravidão»
Gostaria de realçar ainda um ponto. Existe a tendência de procurar sempre fazer uma adaptação e acomodação das palavras de Jesus para não ter que dar de caras com a sua proposta de que «quem quer ser o maior tem que se fazer o escravo de todos». As várias expressões utilizadas pelo evangelista não parecem deixar lugar a dúvidas. Termos como «Mestre», «Pai», «Doutor» ou títulos semelhantes são abusivos, sobretudo quando os seus «titulares» se atribuem competências que são exclusivas de Jesus Cristo e de Deus.
É óbvio que não é proibido exercer as funções de «mestres» e «doutores» (alguns são mesmo chamados a isso e ai deles se o não fizerem!), mas obviamente desde que seja como «assistentes» (passe o termo) do único que é Mestre e Doutor. E quantas vezes acontece que, ao contrário, nos substituímos a Deus, «instalando-nos na cátedra de Moisés», não propriamente para ensinar, mas para julgar quem, no nosso entender, não cumpre os requisitos evangélicos!
Pois bem. Caso tenhamos a pretensão de ensinar os outros (ensinar significa sobretudo ajudar os outros a chegar ao conhecimento de algo ou de alguém, e não a julgar ou, pior ainda, a condenar) então lembremo-nos, mais uma vez, daquilo que nos ensina o texto evangélico: «O maior entre vós seja o vosso servo». O que significa, inequivocamente, que Jesus certamente não aprova quem quer dominar os outros, pois há um só Deus e Senhor e Pai de todos.