Temas de fundo |
1ª leitura (Ex 22,20-26): Não molesteis nem oprimais o estrangeiro residente, porque também vós fostes estrangeiros e residentes na terra do Egipto. Não maltrateis nem a viúva nem o órfão. Se os maltratardes e eles clamarem por mim, ouvirei o seu clamor e a minha ira inflamar-se-á e far-vos-ei morrer à espada; e as vossas mulheres ficarão viúvas e os vossos filhos órfãos. Se emprestardes dinheiro a alguém indigente do meu povo, não procedais para com ele como o usurário: não exijais juros. Se receberdes de penhora o manto do vosso próximo, devolvei-lho até ao pôr do sol, porque a capa é tudo o que ele tem para se defender do frio. Com que é que ele se cobriria de noite? Senão, quando invocar o meu auxílio, ouvirei o seu clamor, porque eu sou misericordioso. * Se maltratais a viúva e o órfão, Deus não está convosco. Em linguagem cristã, costuma-se dizer, ainda hoje, que, no fundo, Deus nos deu apenas um mandamento: amar o Senhor Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças (cf. Dt 6,5). Mas a ideia não ficaria completa se não acrescentássemos que os outros mandamentos - sobretudo o amor ao próximo - são a explicitação de como se pode amar a Deus concretamente em todas as circunstâncias. No texto de hoje, temos uma espécie de «catálogo» de necessidades a que é preciso dar uma resposta concreta: o interesse e o amor aos estrangeiros, às viúvas, aos órfãos e aos indigentes. É o rol das pessoas miseráveis, quer jurídica, quer social, quer economicamente. E não é preciso recorrer a grandes raciocínios para descobrir que o favor de Deus vai para os que respondem a estas necessidades básicas. Ao contrário, quem não providenciar no sentido de que essas necessidades sejam satisfeitas, não terá o favor de Deus. Daí se poder afirmar que esta leitura, bem interpretada, é já uma espécie de exegese ou explicação do texto evangélico de hoje: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». E essa é também a «receita» que se aplica a nós. Acho perfeitamente inútil fazermos esforços para individualizar formas de ajudar o próximo, quando a resposta - quer desta leitura quer do Evangelho - está em dar ajuda aos que, de facto, são os mais necessitados da sociedade em que estamos inseridos. 2ª leitura (1Tes 1,5c-10): Vós sabeis como procedi convosco para o vosso bem. E vós tornastes-vos meus imitadores e do Senhor. Embora tendo que sofrer muitas tribulações, acolhestes a Palavra com a alegria do Espírito Santo. Assim, tornastes-vos um modelo para todos os crentes na Macedónia e na Acaia. E, com efeito, não só a palavra do Senhor ecoou, graças a vós, na Macedónia e na Acaia, mas também a fama da vossa fé em Deus se propagou por toda a parte; pelo que nem é preciso falar disso. De resto, eles próprios me falam do acolhimento que vós me fizestes e contam como, dos ídolos, vos convertestes a Deus, afastando-vos dos ídolos para servir o Deus vivo e verdadeiro e para esperar do céu o seu Filho, que Ele ressuscitou dos mortos, Jesus, que nos livra da ira que está para vir. * Deixai os ídolos e servi o Deus vivo. Prossegue o texto da I Carta aos Tessalonicenses iniciado no domingo passado. Se dos versículos então examinados já era bem visível o rosto duma comunidade bastante fervorosa, apesar de todas as dificuldades, hoje há praticamente um elogio rasgado aos cristãos de Tessalónica pelo papel desempenhado no capítulo da evangelização em outros lugares. Creio que é bom descobrir vivencialmente hoje o que é necessário para ser também uma comunidade fervorosa. Uma das condições parece-me evidente: acolher a Palavra de Deus na alegria do Espírito Santo. Em seguida, é necessário ser imitador do Senhor Jesus. E, em terceiro lugar, converter-se, afastando-se do mal e pondo-se ao serviço de Deus. Acho interessante e útil citar aqui uma nota da Bíblia dos Capuchinhos a este texto: «A evangelização realiza-se num dinamismo de imitação: os evangelizadores imitam o Senhor e as comunidades imitam aqueles ou outras comunidades. Ao acolherem a Palavra pregada pelos Apóstolos, eles fazem com que ela corra veloz, sendo assim palavra do Senhor para outros crentes». A conclusão é que os cristãos de todos os tempos devem, também eles, acolher a Palavra, imitar a Jesus Cristo e afastar-se do mal para, assim, poderem ser instrumentos da dinamização da missão de Cristo aos outros que com eles entrem em contacto. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO Evangelho (Mt 22,34-40): Tendo-lhes constado que Jesus tinha reduzido os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se entre si. Então um deles, um doutor da Lei, perguntou-lhe para o pôr à prova: «Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?». Jesus disse-lhe: «Ama o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo é semelhante: Ama o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas». * Amarás o Senhor teu Deus e ao próximo como a ti mesmo. Para entender melhor a astúcia e a capciosidade da pergunta dos fariseus, é conveniente saber que os «especialistas da Lei de Moisés» a tinham complicado de tal maneira que, em termos práticos, não era nada fácil saber o que era preciso ou não fazer para estar em ordem. Basta dizer que essa «versão» da Lei de Moisés (sem fundamento na Bíblia) se desdobrava - imagine-se - em 613 preceitos, dos quais 248 eram obrigações a cumprir e 365 proibições, tantas quantos os dias do ano. Daí se poder compreender que a pergunta «Qual é o maior mandamento da Lei?» era realmente capciosa e era para pôr Jesus à prova. A resposta que Ele lhes dá, baseada, de resto, na própria Bíblia (cf. Dt 6,5), vai ao essencial, como Jesus sempre faz. Para Jesus, não são as prescrições propriamente ditas e os «enquadramentos legais» que interessam; o que conta é o amor. E, já agora, seja-me permitido acrescentar que uma das coisas que pessoalmente mais me espanta é constatar que, ainda hoje, passados vinte séculos após a passagem terrena de Jesus, a nível de Igreja, continuemos por vezes a preocupar-nos mais com as regrazinhas, as leizinhas, a aderência literal ao estipulado do que ao amor a Deus e ao irmão. É espantoso como, na prática, continuamos a pôr em dúvida as palavras utilizadas por Jesus: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado». É espantoso - digo eu - como não temos problema de qualquer espécie em despachar e condenar seja quem for por uma questão de nada. |
* Se maltratardes a viúva e o órfão, Deus não estará convosco. * Deixai os ídolos e servi o Deus vivo. * Amarás o Senhor teu Deus e ao próximo como a ti mesmo. |
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DESTES DOIS MANDAMENTOS DEPENDE TODA A LEI. |
O texto de Paulo aos cristãos de Tessalónica é um exemplo bem demonstrativo de como a evangelização é um processo dinâmico: os evangelizadores imitam a Cristo; e os evangelizados, na medida em que acolhem e põem em prática a Palavra, fazem com que ela ecoe mais veloz a outros destinatários que, por sua vez, a transmitem a outros...
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Encontro de dois amores
Uma leitura apressada e superficial da liturgia da palavra deste domingo é susceptível de nos levar a uma conclusão falsa cujas consequências podem ser desastrosas: ou seja, colocar, dum lado, o amor a Deus e, do outro (completamente oposto), o amor ao próximo. Ora, não nos é permitido, de maneira nenhuma, pôr as duas «categorias» de amor de que elas falam em dois patamares distantes; como, por vezes, sucedeu com certos tipos de espiritualidade mal compreendida.
Quer dizer, em termos mais práticos, a questão põe-se assim: será necessário afastar-se dos homens para encontrar a Deus? E quem encontrou a Deus poderá ainda voltar para os homens e viver com eles, interessar-se por eles e trabalhar com eles e para eles? Por outras palavras, o amor a Deus e o amor aos homens serão compatíveis ou, ao contrário, serão antagónicos e um exclui o outro, de modo que é necessário absolutamente fazer uma opção em termos de alternativa? A resposta não pode ser senão negativa, porque o amor ao próximo não é alternativo ao amor a Deus, mas complementar.
Uma das grandes vantagens do amor é que se pode dar sempre cada vez mais, sem por isso o diminuir; antes pelo contrário. Amar a Deus e amar o próximo não são auto-exclusivos nem antagónicos. E, na perspectiva cristã, quanto mais se amar a Deus, mais se é capaz de amar o próximo por amor de Deus. Colocar, portanto, o problema em termos de oposição, parece não caber na lógica do Evangelho. E é verdade. Sabemos perfeitamente que uma coisa não tira a outra, como se costuma dizer. Mas precisamos de relembrar estes princípios com certa regularidade para os pormos em prática, tomando deles consciência mais nitidamente.
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Amar o homem para amar a Deus
A resposta evangélica às várias perguntas feitas nos parágrafos acima é duma clareza que eu diria meridiana: o primeiro mandamento é amar a Deus e o segundo (não oposto mas semelhante e complementar) é amar os homens. Não se pode, portanto, pensar que a entrada de Deus numa determinada consciência implique a expulsão do homem. O texto do AT e o do Evangelho de hoje são a prova precisamente do contrário. O que, aliás, é confirmado por vários textos de João e de Tiago, que muitos de nós se calhar sabemos de cor.
Por outro lado (e parece-me que não estou a escrever nenhuma «barbaridade» teológica) se Deus, para se revelar, utiliza as categorias humanas (senão o homem, como me parece óbvio, não entenderia nada), é natural que se revele como Pai, Filho e Espírito de amor com um mandamento cujo conteúdo é a obrigação de amar o homem. Se o homem é, como diz a Bíblia, logo de início,«imagem e semelhança de Deus», que melhor meio de chegar até Deus senão o próprio homem? O problema e o perigo residem só no facto de nós finalizarmos no homem toda a realidade, quando toda a realidade deve é ser finalizada em Deus...
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As dificuldades continuam
Ocorre aprofundar alguns problemas deixados em aberto por este texto evangélico e por outros. Por um lado, somos informados de que é preciso amar os homens, mas, por outro, também nos é sugerido que é preciso fugir do mundo; é-nos recomendado que é preciso saber deixar o pai, a mãe, os irmãos... Como compaginar expressões que, pelo menos à primeira vista, parecem tomar direcções diametralmente opostas?
Devendo, em absoluto, escolher entre Deus e o homem, que é que se deve fazer? O amor pelos outros não ameaçará com demasiada facilidade o amor de Deus? Bem, a questão não se coloca em termos de oposição, mas de «complementaridade», supondo sempre que Deus está no topo da pirâmide em termos absolutos. Mas nunca a Escritura e a Tradição cristã permitiram ao cristão desinteressar-se do homem com a desculpa de que era necessário interessar-se unicamente por Deus. E nunca deixaram de indicar no serviço aos homens a melhor maneira de servir a Deus.
Mas pode acontecer que, em circunstâncias especiais, os homens tenham pretensões que são contra a absoluta prioridade de Deus sobre tudo. Há circunstâncias em que a decisão de «dar a Deus o que é Deus» (texto evangélico do último domingo) se torna incontornável. É precisamente aí que está o cerne da questão. Trata-se de manter as prioridades, mais nada. Não se trata, pois, de desprezar ou de «odiar» os homens e o mundo, mas sim de pôr a Deus em primeiro lugar. Quando isso acontece, então somos capazes de pôr o homem no seu lugar, ou seja, acima de todas as coisas criadas...
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Questão da teoria e da práxis
«Cultivar a vida interior» é um valor cristão; e não só; é um valor permanente; é a necessidade de recolhimento e reflexão. Mas a vida interior, quando é realmente cristã, não só não é monólogo ou solilóquio, mas nem sequer é só falar com Deus. Encontrando Deus, o crente em geral e o cristão em particular encontram inevitavelmente os homens criados por Ele à sua imagem e semelhança.
O cristão, nessa perspectiva, não pode não subscrever estas linhas do P. Ricoeur: «A minha vida interior é fonte das minhas relações exteriores. Contrariamente às sabedorias meditativas e contemplativas do fim do paganismo grego e do Oriente, para além do Índico, a pregação cristã nunca opôs o ser ao fazer, o interior ao exterior, a teoria à práxis, a oração à vida, a fé às obras, Deus ao próximo». O que não quer dizer que alguns, excepcionalmente, o não tenham feito.
(Ao contrário) «É sempre no momento em que a comunidade cristã se desfaz ou a fé decai que se vê essa mesma comunidade abandonar o mundo e as suas responsabilidades e reconstruir o mito da interioridade. Nessa altura, Cristo não é mais reconhecido na pessoa do pobre, do exilado, do preso». É por isso que, nos raros casos em que os contemplativos são entrevistados, à pergunta «fatal» sobre qual o sentido do seu isolamento, a resposta tem sempre a ver com a preocupação que eles têm com os homens «lá fora».
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Contemplação e acção
De resto, afastar-se dos homens, mesmo que seja apenas por instantes, pode ser, em certas circunstâncias, uma necessidade para melhor perspectivar o rumo das coisas. Na vida cristã, como, aliás, em outras actividades, há normalmente ritmos que é necessário respeitar: da contemplação ou reflexão à acção e da acção à contemplação. Por vezes, é necessário como que afastar-se dos homens para se reencontrar consigo mesmo e com Deus; para depois estar em melhores condições de servir os homens.
Mas o afastamento dos homens é sempre provisório. O que sucede a nível individual, existe também a nível de estrutura de Igreja. Existem contemplativos e activos. O mistério de Cristo é vivido na Igreja na sua diversidade e complementaridade no conjunto de todos os seus membros: o contemplativo serve os homens servindo a Deus e o activo serve a Deus servindo os homens. Ambas as «categorias» de pessoas exprimem, «especializando-se» na imitação de Cristo, um mesmo e único mistério. Sempre assim foi na história da Igreja e assim continuará a ser: a exemplo do próprio Jesus Cristo.