Imprimir
Categoria: Domingos do Tempo Comum - Ano A
Visualizações: 374

Temas

de

fundo

1ª leitura (Is 5,1-7): Vou cantar ao meu amigo uma canção de amor à sua vinha. «O meu amigo tinha uma vinha numa colina fértil. Tinha-a cavado, tinha-lhe tirado as pedras e tinha-a plantado de bacelo escolhido. Tinha também construído uma torre de vigia e um lagar. Ficou, pois, à espera que lhe desse boas uvas, mas ela só produziu agraços. Ora bem, habitantes de Jerusalém e homens de Judá, sede vós juízes entre mim e a minha vinha. Que mais poderia eu fazer pela minha vinha que não tenha feito? Então porque é que, em vez de boas uvas, só produziu agraços? Agora, vou mostrar-vos o que vou fazer à minha vinha: vou destruir a vedação e assim será transformada em campo de pasto; vou derrubar-lhe a sebe para que seja pisada. Será como um deserto, porque não será podada nem cavada. Crescerão nela os espinhos e os abrolhos. Vou até ordenar às nuvens que não chovam sobre ela». A vinha do Senhor do universo é a casa de Israel e os povos de Judá. Ele esperava que produzisse frutos de justiça e produziu derramamento de sangue; esperava que fizesse o bem e eis que Eu ouço os gritos dos oprimidos.

 

* A vinha do Senhor é a casa de Israel.

   Dizem os estudiosos da matéria que o Primeiro Isaías (cc. 1-39) é uma das grandes obras da literatura universal. Eu não entro no mérito dessa questão, pois não sou especialista, mas esta canção de amor à vinha (que é também uma parábola) é uma metáfora, digamos assim, com uma carga fortemente emotiva e profunda, cujo objetivo é passar uma mensagem concreta e prática que é determinante e que é perfeitamente clara. Com efeito, não é preciso ser muito inteligente para perceber logo o seu significado imediato. E devo acresentar que, mesmo que algumas dúvidas houvesse, o próprio autor apressa-se a especificar o que quer dizer ao afirmar que a vinha do Senhor é Israel, ou seja, o chamado povo de Deus, que é infiel à missão que lhe é confiada. Agora, o que é importante reter é que esta parábola não nos é proposta só para ficarmos a saber que, afinal de contas, o antigo povo de Deus não se comportou bem e não correspondeu àquilo que o Senhor esperava dele. Não se trata apenas de um exercício de retórica, pois é uma proposta para todos os que fazemos parte do novo povo de Deus. Por outras palavras, també, nós temos que nos examinar quanto a um facto concreto: correspondemos ou não àquilo que Deus espera de nós? Não será que também nós, o novo povo amado por Deus, tantas vezes correspondemos com ingratidão aos seus projetos a nosso respeito?

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (Fl 4,6-9):  Em vez de vos inquietardes com tudo, em todas as vossas orações, dirigi ações de graças ao Semhor  Deus para pedir o seu auxílio nas vossas necessidades. Então, a paz de Deus, que ultrapassa toda a inteligência, conservará firmes os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus. De resto, irmãos, tende sempre em mente tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que possa ser virtude e seja digno de louvor. Ponde em prática o que aprendestes e recebestes de mim, tanto em palavras como em obras. E então, o Deus da paz estará convosco.

 

* O Deus da paz esteja convosco.

   Foi dito no comentário do domingo passado que a Carta aos Filipenses é perpassada de sentimentos de ternura e comoção que geralmente (essa a minha impressão) não é habitual atribuir a Paulo. Mas a verdade é que se trata de uma carta escrita com o coração nas mãos. Isso é, sem dúvida, patente nesta passagem, que é parte já da seção conclusiva. Para Paulo, é importante que os seus fiéis comecem a dar mais importância à ideia e necessidade de adequar o seu comportamento à forma como o próprio Jesus atuou. Ele veio inaugurar um novo reino e nova forma de pensar e de estar na vida e, por isso, os que O seguem devem estar dispostos a seguir o seu exemplo. Acho que aqui se encontra aquilo a que poderia chamar-se uma espécie de esquema de vida. Por isso, seja-me permitido repetir o que ele mesmo diz: «Tende sempre em mente tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que seja virtude e digno de louvor». Este, sim, é verdadeiramente um programa de vida cristã válido para todos os tempos.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Mt 21,33-43):  Escutai esta parábola. Havia um patrão que plantou uma vinha. Fê-la cercar com uma sebe, cavou nela um lagar e construiu uma torre. Depois, arrendou-a a uns vinhateiros e ausentou-se para longe. Quando chegou o tempo das vindimas, enviou os seus servos aos vinhateiros a buscar os frutos que lhe pertenciam. Mas os vinhateiros apoderam-se dos servos: espancaran um, mataram outro e apedrejaram o terceiro. O patrão voltou a mandar outros servos, ainda mais do que a primeira vez, mas eles trataram-nos da mesma forma. Por fim, mandou-lhes o próprio filho, dizendo: «Hão-de respeitar o meu filho». Mas os vinhateiros, ao verem o filho, disseram entre si: «Este é o herdeiro. Vamos matá-lo e ficaremos com a sua herança». Então, agarrando nele, lançaram-no fora da vinha e mataram-no. (E Jesus perguntou): «Quando vier o dono da vinha, o que fará àqueles vinhateiros?». Eles responderam: «Mandará matar sem piedade esses malvados e arrendará a vinha a outros, que lhe entreguem o fruto a tempo». Disse-lhes então Jesus: «Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular; tudo isto veio do Senhor e é admirável aos nossos olhos»? Por isso vos digo: «Ser-vos-á tirado o reino de Deus e dado a um povo que produza os seus frutos».

 

* O patrão da vinha dará a vinha a outros.

   O ministério de Jesus em Jerusalém, antes da prisão, paixão e morte, distingue-se pela disputa cerrada entre Jesus e os fariseus e os chefes do povo. As implicações desta disputa não dizem respeito apenas aos fariseus e aos chefes do povo. Dizem também respeito a todo o povo de Israel. Ora bem, a parábola dos vinhateiros homicidas insere-se precisamente neste contexto. À semelhança do texto da primeira leitura de hoje (no qual, de resto, o trecho evangélico se inspira), também a parábola de S. Mateus transmite uma mensagem clara por si mesma, por detrás da imagem da vinha e dos trabalhadores que cuidam (ou não) dela. Para entender esta mensagem, nem sequer é preciso dizer que o dono da vinha é o próprio Deus, que a vinha é o povo, que os arrendatários são os chefes do povo judeu, que os «cobradores» são os profetas e que o herdeiro assassinado é o próprio Jesus. Isso até claro no texto. Agora, o que, na verdade, mesmo na intenção do evangelista, interessa realçar é que esta mensagem se dirige, não única e exclusivamente, ao antigo povo de Deus, mas sim ao novo povo de Deus, que é a comunidade cristã, a quem o evangelista escreve diretamente. Não se trata apenas de criticar os antigos chefes do povo de Deus, mas também de pôr de sobreaviso os chefes do novo povo de Deus, para que não rejeitem a Jesus e não se sujeitem a que o Reino seja entregue a quem o faça frutificar. Por vezes, pode acontecer que estamos tão seguros dos «favores» de Deus que não ligamos nada à forma como tratamos a vinha do Senhor. Mas a verdade é que ela pode-nos ser tirada e entregue a outros que «produzam os seus frutos».

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

*A vinha do Senhor é a casa de Israel.  

 

*O Deus da paz esteja convosco.  

 

*O patrão da vinha dará a vinha a outros.

A VINHA SER-VOS-Á TIRADA 

E SERÁ ENTREGUE 

A OUTROS.

 

 

    Há já algumas semanas que temos vindo a reflectir, nestes comentários, sobre a forma gratuita (daí o termo graça) como Deus exerce a sua misericórdia. E, nessa perspectiva, há que admitir que os «critérios» da acção de Deus não têm a ver com os nossos critérios. Seja como for e como é facilmente compreensível, Deus não tem que dar conta das suas acções a ninguém. Nesse sentido, também não tem que dar contas a ninguém da «utilização» que faz da sua «vinha». O seu Reino não é propriedade seja de quem for, a não ser sua, e, quando alguém não lho «administra» como deve ser, Ele tem liberdade soberana para entregar o seu cuidado a quem quiser.

   É, portanto, pura e simplesmente, uma atitude tresloucada a daqueles que se arrogam o direito de julgar as acções de Deus. Seja-me permitido recordar o seguinte: os que admitem a existência de Deus nunca se esqueçam que o homem foi feito «à imagem e semelhança de Deus» e não que, ao contrário, Deus foi feito «à imagem e semelhança» do homem. Os que, partindo do suposto e da premissa que Deus não existe, não são para aqui chamados. Mas, mesmo arrogando-se o direito de julgar as acções de Deus, estão a perfilhar a posição ridícula de fazer juízos de valor sobre Alguém que, ainda por cima, eles dizem não existir. Julgar ou pôr em questão alguém para quê, se esse alguém não existe?

   Bem vistas as coisas, portanto, nesta reflexão, eu parto do princípio de que são válidas (e que as aceitamos como tais) as duas seguintes verdades: primeiro, a de que Deus existe; e a segunda a de que os pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos nem os seus caminhos são os nossos caminhos (como diz o profeta Isaías sem margem para dúvidas; cf. 55,8). E se admitíssemos duma vez por todas que, se calhar, Ele é que tem razão!

   Mais: dêmos um passo em frente aceitando de bom grado, segundo uma perspectiva religiosa em geral e cristã em particular, que só os pensamentos e os «critérios» de Deus são os autênticos e são realmente determinantes. E que, portanto, nessa perspectiva, tudo quanto na nossa vida foge a esses critérios está errado. Nesta ordem de ideias, isto parece-me um axioma imprescindível para fundar a possibilidade da vida religiosa no sentido mais genérico do termo.

 

   Nesta perspectiva, toda a simbologia da parábola da vinha (primeira leitura e texto evangélico) é indicativa de qual é a «opinião» de Deus sobre o seu povo. Se é verdade que Deus continua a amar e a fazer tudo para que o seu povo produza frutos, não é menos verdade que esse povo não corresponde de facto às expectativas; e então Ele como que se vê «obrigado» a entregar o cuidado dela a outros.

   Ora bem, como disse acima (logo a seguir à leitura), quando se aplica a simbologia da vinha ao povo de Deus, não podemos limitar-nos a aplicar essa noção a Israel. Essa espécie de deleite que sentimos em aplicar instintivamente a Israel as ameaças e os castigos de Deus (as coisas más, digamos assim) é apenas desculpa e um álibi para irmos esquecendo as nossas próprias misérias. Hoje em dia, supostamente, os que acreditam em Jesus Cristo também fazem parte do novo povo de Deus. Por conseguinte, não é só o antigo povo que é criticado. O que é dito a Israel (para o bem e para o mal) aplica-se também a nós.

   A «vinha do Senhor», nos dias que correm, não vamos descobri-la sabe-se lá aonde. O juízo que Deus, através de Jesus Cristo, emite sobre o seu povo hoje é um juízo que tem a ver com a Igreja, ou melhor, para sermos mais concretos, com a comunidade dos cristãos. É inútil querer descobrir bodes expiatórios que paguem as nossas próprias «asneiras» e aplaquem a «ira» de Deus. A lição da parábola da vinha destina-se a nós hoje e não às pessoas que viveram há dois mil anos. Esses, como deixaram de existir há muito tempo, já não precisam da parábola para nada.

   É demasiado fácil ilibar-nos de toda a responsabilidade culpabilizando os outros em geral e, no que diz respeito a este tema, ao antigo Israel. Numa palavra, a questão põe-se, pois, em termos de actualização da mensagem evangélica e bíblica em geral e não em termos de acusação e aplicação a pessoas que já não existem há muitos anos. Talvez seja por por revolvermos nostalgicamente apenas o passado que tantas vezes a mensagem evangélica permanece letra morta na nossa vida.

 

   A imagem da vinha e do dono da vinha é muito semelhante à imagem (também utilizada pelos profetas) do esposo e da esposa. Aos desvelos tanto do vinhateiro como do esposo (que representa Deus), contrapõem-se os maus produtos da vinha ou a má conduta da esposa (o povo de Deus). Por sua vez, a decisão que o dono da vinha toma de a entregar a trabalhadores que a façam frutificar é comparável à atitude que o esposo podia tomar de acusar publicamente a esposa, quando se provasse que tinha sido infiel, para a rejeitar.

   De qualquer forma, há uma diferença substancial - que não se deve escamotear - entre as duas parábolas hoje em questão: enquanto na primeira, a do profeta Isaías, Deus acaba por arrancar a vinha que não produz uvas, na parábola contada pelo evangelista, o cuidado da vinha é entregue a outros vinhateiros. Em linguagem actual, a Igreja é esse novo povo de Deus, encarregado de dar frutos de santificação. E o que se espera é que realmente dê frutos. Mas isso não é automático nem garantido. É que, na verdade, o facto de alguém ter sido escolhido para ser novo vinhateiro não garante que as coisas fiquem realmente a posto. Ou seja, os novos vinhateiros não têm, digamos assim, o emprego garantido para sempre, porque também eles, em vez de darem fruto a quem é devido, podem maltratar os enviados do patrão.

 

   O dono, perante estes factos, entrega a vinha a outros. Como se vê daí, portanto, a mensagem é semelhante à do domingo anterior: quem somos nós para nos julgarmos no direito de emitir um juízo de valor sobre a forma como Deus actua? A verdade é que Deus não se deixa enclausurar em esquemas determinados pelo homem; Deus não é monopólio de ninguém. Mas, para além disso, a mensagem adquire uma nova dimensão ou perspectiva cristológica. Já não se trata apenas de aceitar a Deus na própria vida (isso pode fazê-lo qualquer pessoa), mas trata-se de aceitar também que esse Deus seja representado «integralmente» por Jesus, que é Filho, a que a parábola faz referência. Segundo a perspectiva do evangelista, que seja Deus a exigir o fruto da sua vinha ou que seja o seu filho (Jesus) é a mesma coisa.

   Embora não o queira fazer explicitamente, a parábola ensina-nos que Deus se manifesta através de Jesus Cristo (que O «representa» integralmente). A parábola também diz do «representante» do dono da vinha que é seu filho. Isso significa, por conseguinte, que Ele é Filho de Deus e é como tal que se torna necessário acolhê-lo. O que também está implícito é que a «disposição» do dono da vinha se manifesta através do mistério de Cristo morto e ressuscitado. Sendo assim, o cristão só se distinguirá dum outro qualquer, incluindo um hebreu, na medida em que acolhe e aceita este Jesus Cristo, enviado como Filho pelo patrão da vinha que é Deus.

 

   Por ocasião da apresentação de Jesus no Templo de Jerusalém, o velho Simeão tinha predito que Jesus seria «um sinal de contradição» e que tinha vindo para ser «queda e ressurgimento de muitos em Israel» (cf. Lc 2,34). Pois bem, em certo sentido, a parábola deste domingo é uma espécie de interpretação dessa profecia. E, por sua vez, é um anúncio dos acontecimentos pascais, em que o «vinhateiro» por excelência é tomado, preso e morto.

   O povo eleito rejeita Jesus como Messias, continuando a tradição dos seus antepassados que rejeitavam e assassinavam os profetas. Nem a mensagem dos profetas nem a maneira de actuar de Jesus correspondem, por assim dizer, aos anseios e interesses de bem-estar e de poder que os contemporâneos de Jesus acalentam. A história da salvação, chegada a este ponto (a vinda e a missão de Jesus), sofre mais uma interrupção, uma pausa; parece desmoronar-se. O povo eleito rejeita a Deus e, por seu lado, Deus «vê-se obrigado» a aceitar essa rejeição do povo eleito e, por isso, de alguma forma, também Ele rejeita o povo eleito, na medida em que, não podendo contar com ele e muito menos contra vontade, «se vê obrigado» a dirigir-se a outros vinhateiros para ver se eles fazem frutificar a sua vinha.

 

   E a verdade é que a rejeição de Jesus Cristo como enviado de Deus e Messias, por parte dos seus compatriotas judeus (e pelos chefes religiosos em particular) não representa o fim da história. A história da salvação sofre, pois, uma paragem, digamos assim, uma interrupção momentânea. Mas, mais do que isso, é uma inflexão, porque ela continua duma maneira nova. A vinha do Senhor é, de facto, entregue a outros trabalhadores e vai produzir frutos abundantes, aumentando de proporções e fronteiras até, espalhando-se pelo mundo inteiro.

   Não basta fixarmo-nos na imagem da história de Israel, como acima ficou dito. Há que saber tirar a lição dela. O destino misterioso e doloroso de Israel pode ser também o nosso destino. Também em relação a nós, se faltar a correspondência, o mistério da eleição pode mudar-se em mistério de reprovação, enquanto vão surgindo no horizonte da história novos «eleitos» a quem é entregue o cuidado da «vinha do Senhor». Que nenhum cristão se sinta fora do dinamismo desta «dialéctica» do mistério salvífico!

 

   É um facto que, segundo a promessa de Jesus Cristo, o novo povo eleito não será em definitivo rejeitado em bloco e que as forças do mal não prevalecerão contra a Igreja (cf., por exemplo, Mt 16,18). Aliás, devo acrescentar que o próprio povo eleito antigo, na visão de S. Paulo, acabará por ser «repescado» (cf. dum modo particular Rm 11,11ss) - passe a expressão pouco elegante. Mas isso não quer dizer que a zona de circunscrição da vinha, digamos assim, seja sempre a mesma. Continuando a utilizar a imagem, a vinha pode ser arrancada num determinado local, para ser replantada num outro, pois a Igreja de Jesus Cristo pode muito bem ser «replantada», seja em que parte for.

   A este propósito, é-me sempre doloroso e ao mesmo tempo impressionante pensar como a grande maioria das comunidades mais missionárias e florescentes da Igreja primitiva (mais em concreto as Igrejas do Norte de África e sobretudo da Ásia Menor, estas situadas na sua grande maioria na actual Turquia) tenham sido praticamente «canceladas» da face da terra. Delas parece já não restar praticamente quase mais nada senão alguns vestígios e a ténue lembrança de alguns monumentos históricos em estado quase deplorável.

 

    Ora bem, nesta perspectiva, parece-me que há perguntas frontais a fazer com coragem e que são do seguinte teor: O que sucederá, por exemplo, às comunidades ou Igrejas cristãs do Ocidente daqui a alguns anos ou, para sermos mais generosos, daqui a um século? Serão, nessa altura, ainda Igrejas florescentes, comunidades fervorosas e vivas ou então a chama da fé cristã passará para as mãos da Igreja africana ou da Igreja latino-americana ou mesmo asiática? No futuro, falar-se-á ou não (e de que maneira) das nossas actuais Igrejas? Suceder-lhes-á porventura o mesmo que sucedeu às Igrejas de Éfeso, Pérgamo, Filadélfia ou Hipona? Não quero ceder a um estéril pessimismo, mas, no futuro, não se falará das nossas actuais Igrejas do Ocidente apenas como de Igrejas do passado, cuja recordação por acaso vive ainda (mas unicamente) na memória de alguns textos históricos ou na majestade (ou não) de alguns monumentos?

   O processo de secularização, e até hostilização directa do religioso (um facto do qual há muitos anos se escreve e que infelizmente continua actuante no mundo chamado ocidental) reduziu, na prática, as comunidades cristãs, em várias partes do mundo (e em particular na velha Europa, que parece ter vergonha da sua matriz original), a um estado de diáspora ou então a uma presença tão pouco significativa que acabará por cancelar das nossas regiões quaisquer vestígios de tradição e cultura cristãs? Ou, ao contrário, ainda se espera que tudo isso seja ocasião para a redescoberta de novos modos de ser cristão e de viver o Evangelho em toda a sua radicalidade? Espero que sim...

 

*********************************************************************************************************************************

Nota: leia a mensagem do papa Francisco para o Dia Mundial das Missões antes da data

 

MMENSAGEM DE SUA SANTIDADE
PAPA FRANCISCO
PARA O DIA MUNDIAL DAS MISSÕES DE 2023

[22 de outubro de 2023]

 

Corações ardentes, pés ao caminho (cf. Lc 24, 13-15)

Queridos irmãos e irmãs!

Para o Dia Mundial das Missões deste ano escolhi um tema que se inspira na história dos discípulos de Emaús, narrada por Lucas no seu Evangelho (cf. 24, 13-35): «Corações ardentes, pés ao caminho». Aqueles dois discípulos estavam confusos e desiludidos, mas o encontro com Cristo na Palavra e no Pão partido acendeu neles o entusiasmo para pôr os pés ao caminho rumo a Jerusalém e anunciar que o Senhor tinha verdadeiramente ressuscitado. Na narração evangélica, apreendemos a transformação dos discípulos a partir de algumas imagens sugestivas: corações ardentes pelas Escrituras explicadas por Jesus, olhos abertos para O reconhecer e, como ponto culminante, pés ao caminho. Meditando sobre estes três aspetos, que traçam o itinerário dos discípulos missionários, podemos renovar o nosso zelo pela evangelização no mundo de hoje.

1. Corações ardentes, «quando nos explicava as Escrituras». A Palavra de Deus ilumina e transforma o coração na missão.

No caminho de Jerusalém para Emaús, os corações dos dois discípulos estavam tristes – como transparecia dos seus rostos – por causa da morte de Jesus, em Quem haviam acreditado (cf. 24, 17). Perante o fracasso do Mestre crucificado, a esperança de que fosse Ele o Messias, desmoronou-se neles (cf. 24, 21).

E eis que, «enquanto conversavam e discutiam, aproximou-Se deles o próprio Jesus e pôs-Se com eles a caminho» (24, 15). Como no início da vocação dos discípulos, também agora, no momento da frustração, o Senhor toma a iniciativa de Se aproximar dos seus discípulos e caminhar a par deles. Na sua grande misericórdia, Ele nunca Se cansa de estar connosco, apesar dos nossos defeitos, dúvidas, fraquezas e não obstante a tristeza e o pessimismo nos reduzam a «homens sem inteligência e lentos de espírito» (24, 25), pessoas de pouca fé.

Hoje como então, o Senhor ressuscitado está próximo dos seus discípulos missionários e caminha a par deles, sobretudo quando se sentem frustrados, desanimados, temerosos perante o mistério da iniquidade que os rodeia e quer sufocá-los. Por isso, «não deixemos que nos roubem a esperança!» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 86). O Senhor é maior do que os nossos problemas, sobretudo quando os encontramos ao anunciar o Evangelho ao mundo, porque esta missão, afinal, é d’Ele e nós somos simplesmente os seus humildes colaboradores, «servos inúteis» (cf. Lc 17, 10).

Em Cristo, expresso a minha proximidade a todos os missionários e missionárias do mundo, especialmente àqueles que atravessam um momento difícil: caríssimos, o Senhor ressuscitado está sempre convosco e vê a vossa generosidade e os vossos sacrifícios em prol da missão evangelizadora em lugares distantes. Nem todos os dias da vida são cheios de sol, mas lembremo-nos sempre das palavras do Senhor Jesus aos seus amigos, antes da Paixão: «No mundo, tereis tribulações; mas tende confiança: Eu já venci o mundo!» (Jo 16, 33).

Depois de ouvir os dois discípulos no caminho de Emaús, Jesus ressuscitado, «começando por Moisés e seguindo por todos os profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que Lhe dizia respeito» (Lc 24, 27). E os corações dos discípulos inflamaram-se, como no fim haviam de confidenciar um ao outro: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» (24, 32). Na realidade, Jesus é a Palavra viva, a única que pode fazer arder, iluminar e transformar o coração.

Assim compreendemos melhor a afirmação de São Jerónimo: «A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo» (Commentarii in Isaiam, Prologus). «Sem o Senhor que nos introduz na Sagrada Escritura, é impossível compreendê-la em profundidade; mas é verdade também o contrário, ou seja, que, sem a Sagrada Escritura, permanecem indecifráveis os acontecimentos da missão de Jesus e da sua Igreja no mundo» (Francisco, Carta ap. sob forma de Motu Proprio Aperuit illis, 1). Por isso, o conhecimento da Escritura é importante para a vida do cristão e, mais ainda, para o anúncio de Cristo e do seu Evangelho. Caso contrário, que iríamos transmitir aos outros senão as próprias ideias e projetos? E poderia alguma vez um coração frio fazer arder o dos outros?

Portanto, deixemo-nos sempre acompanhar pelo Senhor ressuscitado que nos explica o sentido das Escrituras. Deixemos que Ele faça arder o nosso coração, nos ilumine e transforme, para podermos anunciar ao mundo o seu mistério de salvação com a força e a sabedoria que vêm do seu Espírito.

2. Olhos que «se abriram e O reconheceram» ao partir o pão. Jesus na Eucaristia é ápice e fonte da missão.

Os corações ardentes pela Palavra de Deus impeliram os discípulos de Emaús a pedir ao misterioso Viandante que ficasse com eles ao cair da noite. E, encontrando-se ao redor da mesa, os seus olhos abriram-se e reconheceram-No, quando Ele partiu o pão. O elemento decisivo que abre os olhos dos discípulos é a sequência de ações efetuadas por Jesus: tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu-lho. São gestos comuns de qualquer chefe de família judia, mas, realizados por Jesus Cristo com a graça do Espírito Santo, renovam para os dois comensais o sinal da multiplicação dos pães e sobretudo da Eucaristia, o sacramento do Sacrifício da cruz. Mas, precisamente no momento em que reconhecem Jesus n’Aquele-que-parte-o-pão, «Ele desapareceu da sua presença» (Lc 24, 31). Este facto faz compreender uma realidade essencial da nossa fé: Cristo que parte o pão, torna-Se agora o Pão partido, partilhado com os discípulos e depois consumido por eles. Tornou-Se invisível, porque agora entrou dentro do coração dos discípulos para fazê-los arder ainda mais, impelindo-os a retomar sem demora o seu caminho para comunicar a todos a experiência única do encontro com o Ressuscitado! Assim, Cristo ressuscitado é Aquele-que-parte-o-pão e, simultaneamente, o Pão-partido-para-nós. E, por conseguinte, cada discípulo missionário é chamado a tornar-se, como Jesus e n’Ele, graças à ação do Espírito Santo, aquele-que-parte-o-pão e aquele-que-é-pão-partido para o mundo.

A propósito, é preciso ter presente que, se o simples repartir o pão material com os famintos em nome de Cristo já é um ato cristão missionário, quanto mais o será o repartir o Pão eucarístico, que é o próprio Cristo? Trata-se da ação missionária por excelência, porque a Eucaristia é fonte e ápice da vida e missão da Igreja.

Assim no-lo recordou o Papa Bento XVI: «Não podemos reservar para nós o amor que celebramos neste sacramento [da Eucaristia]: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar n’Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária» (Exort. ap. pós-sinodal Sacramentum caritatis, 84).

Para dar fruto, devemos permanecer unidos a Ele (cf. Jo 15, 4-9). E esta união realiza-se através da oração quotidiana, particularmente na adoração, no permanecer em silêncio diante do Senhor, que está connosco na Eucaristia. Cultivando amorosamente esta comunhão com Cristo, o discípulo missionário pode tornar-se um místico em ação. Que o nosso coração anele sempre pela companhia de Jesus, suspirando conforme o ardente pedido dos dois de Emaús, sobretudo ao entardecer: «Fica connosco, Senhor!» (cf. Lc 24, 29).

3. Pés ao caminho, com a alegria de proclamar Cristo Ressuscitado. A eterna juventude duma Igreja sempre em saída.

Depois de abrir os olhos ao reconhecerem Jesus na fração do pão, os discípulos partiram sem demora e voltaram para Jerusalém (cf. Lc 24, 33). Este sair apressado para partilhar com os outros a alegria do encontro com o Senhor, mostra que «a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 1). Não se pode encontrar verdadeiramente Jesus ressuscitado, sem se inflamar no desejo de o contar a todos. Por isso, o primeiro e principal recurso da missão são aqueles que reconheceram Cristo ressuscitado, nas Escrituras e na Eucaristia, e que trazem o seu fogo no coração e a sua luz no olhar. Eles podem testemunhar a vida que não morre jamais, mesmo nas situações mais difíceis e nos momentos mais escuros.

A imagem de pôr os «pés ao caminho» recorda-nos mais uma vez a validade perene da missio ad gentes, a missão confiada pelo Senhor ressuscitado à Igreja: evangelizar toda a pessoa e todos os povos até aos confins da terra. Hoje, mais do que nunca, a humanidade, ferida por tantas injustiças, divisões e guerras, precisa da Boa Nova da paz e da salvação em Cristo. Por isso, aproveito esta ocasião para reiterar que «todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível» (Ibid., 14). A conversão missionária permanece o principal objetivo que nos devemos propor como indivíduos e como comunidade, porque «a ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja» (Ibid., 15).

Como afirma o apóstolo Paulo, o amor de Cristo conquista-nos e impele-nos (cf. 2 Cor 5, 14). Trata-se aqui do duplo amor: o de Cristo por nós que apela, inspira e suscita o nosso amor por Ele. E é este amor que torna sempre jovem a Igreja em saída, com todos os seus membros em missão para anunciar o Evangelho de Cristo, convencidos de que «Ele morreu por todos, a fim de que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou» (2 Cor 5, 15). Todos podem contribuir para este movimento missionário: com a oração e a ação, com ofertas de dinheiro e de sofrimento, com o próprio testemunho. As Pontifícias Obras Missionárias são o instrumento privilegiado para favorecer esta cooperação missionária a nível espiritual e material. Por isso, a recolha de ofertas no Dia Mundial das Missões é destinada à Pontifícia Obra da Propagação da Fé.

A urgência da ação missionária da Igreja comporta naturalmente uma cooperação missionária, cada vez mais estreita, de todos os seus membros a todos os níveis. Este é um objetivo essencial do percurso sinodal que a Igreja está a realizar com as palavras-chave comunhão, participação, missão. Seguramente tal percurso não é um fechar-se da Igreja sobre si mesma; não é um processo de sondagem popular para decidir, como num parlamento, o que é preciso, ou não, acreditar e praticar segundo as preferências humanas. Pelo contrário, é pôr-se a caminho como os discípulos de Emaús, escutando o Senhor ressuscitado que não cessa de vir juntar-Se a nós para nos explicar o sentido das Escrituras e partir o pão para nós, a fim de podermos levar avante, com a força do Espírito Santo, a sua missão no mundo.

Assim como aqueles dois discípulos narraram aos outros o que lhes tinha acontecido pelo caminho (cf. Lc 24, 35), assim também o nosso anúncio há de ser uma jubilosa narração de Cristo Senhor, da sua vida, da sua paixão, morte e ressurreição, das maravilhas que o seu amor realizou na nossa vida.

Portanto saiamos também nós, iluminados pelo encontro com o Ressuscitado e animados pelo seu Espírito. Saiamos com corações ardentes, olhos abertos, pés ao caminho, para fazer arder outros corações com a Palavra de Deus, abrir outros olhos para Jesus Eucaristia, e convidar todos a caminharem juntos pelo caminho da paz e da salvação que Deus, em Cristo, deu à humanidade.

Santa Maria do Caminho, Mãe dos discípulos missionários de Cristo e Rainha das missões, rogai por nós!

Roma – São João de Latrão, na solenidade da Epifania do Senhor, 6 de janeiro de 2023.

FRANCISCO

 
 

Copyright © Dicastero per la Comunicazione - Libreria Editrice Vaticana