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Categoria: Domingos do Tempo Comum - Ano A
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Temas 

de 

fundo

1ª leitura (Ez 18,25-28):  Vós dizeis: «O modo de proceder do Senhor não é justo». Casa de Israel, escuta-me: mas é o seu modo de agir que não é justo ou é o vosso que o não é? Se o justo se afasta do que é recto para praticar o mal e morre por causa disso, é por causa do mal que praticou que ele morre. Mas, se o pecador se afasta do pecado para praticar o bem e a justiça, então ele merece viver. Sim, se chegar à conclusão que o seu proceder é mau e se por isso se afasta do pecado, viverá certamente».

 

* O modo de proceder do Senhor é justo.

   Pensando bem, o espírito da liturgia da palavra de hoje é, claramente, a continuação do tema do domingo anterior. Esta passagem do capítulo 18 do  profeta Ezequiel recusa a ideia - prevalecente no seu tempo - de que os castigos que recebiam eram devidos aos pecados dos antepassados. Por isso, Ezequiel trata com bastante desenvolvimento o tema da responsabilidade individual. Por outras palavras, ele apela à liberdade de cada um: assim, o pecador pode converter-se e salvar-se e, por outro lado, o justo pode pecar e, por isso mesmo, perder-se. Eu diria que, em termos atuais, isso significa que não é pelo facto de se pertencer a um determinado grupo - mesmo religioso - que se tem garantida a «salvação». Dito doutra maneira, não basta constar nos registos de baptismo para se poder dizer que está tudo resolvido. Daí a preocupação que o profeta Ezequiel tem em fazer ver aos seus leitores e concidadãos que é necessária a conversão contínua. Neste campo, no que à responsabilidade moral diz respeito, os filhos não podem substituir os pais e os pais não podem substituir os filhos, sendo que cada um é responsável pelos seus atos e consequências que daí advêm. Lendo todo o capítulo dezoito, essa ideia é perfeitamente clara.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

2ª leitura (Fl 2,1-11):  A vossa vida em Cristo torna-vos fortes e o seu amor conforta-vos. Vós tendes familiaridade com o Espírito e em vós há sentimentos de afeto e de compaixão. Pois então fazei que a minha alegria seja ainda mais completa: procurai ter os mesmos sentimentos, partilhando o mesmo amor, unidos numa só alma e numa só mentalidade. Nada façais nada por ambição nem por vaidade, mas com humildade, considerai os outros melhores do que vós. Não tenha cada um em mira os próprios interesses, mas os de todos. Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus: Ele que, sendo de condição divina, não julgou uma desonra não ser considerado igual a Deus. Ao contrário, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornou-se semelhante ao homem. Ao viver sob a forma humana, Ele humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu um nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem, no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.

 

* Jesus Cristo é o Senhor.

  O núcleo da Carta aos Filipenses é perpassado por uma preocupação do apóstolo Paulo de que os fiéis vivam na harmonia, no entendimento e na comunhão fraterna. Nota-se, nas entrelinhas, uma ligação afetiva muito forte entre Paulo e esta comunidade. Isso, todavia, não quer dizer que, como acontecia noutras comunidades, não houvesse também dificuldades de entendimento. Para ultrapassar isso, Paulo não hesita sequer em sugerir aos Filipenses que considerem os outros melhores do que eles. E, para que a ideia fique bem vincada, ele dá o exemplo do próprio Jesus Cristo que, sendo de condição divina, não duvidou como que esvaziar-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Diria que, no fundo, tudo deve ser feito para garantir a unidade da comunidade, porque ela é sinal de que os fiéis não seguem necessariamente critérios humanos, mas sim critérios divinos.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Mt 21,28-32):  (Um dia) Jesus disse aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo: Que vos parece? Era uma vez um homem que tinha dois filhos. Foi ter com o primeiro e disse-lhe: «Filho, vai hoje trabalhar para a vinha». Mas ele respondeu: «Não quero!». Mas, mais tarde, arrependeu-se e foi. Então o pai foi ter com o segundo filho e falou-lhe do mesmo modo. E ele respondeu: «Vou, sim senhor!». Mas não foi. Qual dos dois fez a vontade ao pai? Responderam eles: «O primeiro». Jesus disse-lhes então: «Em verdade vos digo: os cobradores de impostos e as meretrizes vão preceder-vos no Reino de Deus. João veio para o meio de vós, ensinando-vos o caminho da justiça, e não acreditastes nele; mas os cobradores de impostos e as meretrizes acreditaram nele. E vós, que bem o vistes, não vos arrependestes, acreditando nele».

 

* Cumpre quem faz a vontade do Pai que está no Céu.

   Por vezes, deparamos com páginas evangélicas como a de hoje e então podemos dar connosco a pensar que Jesus, em certas circunstâncias, foi duro e implacável. Neste caso, acho que a primeira coisa a fazer é desistir de limar as arestas. Agora, a verdade é que Jesus é mais frontal e duro precisamente para com aqueles que, em princípio, teriam obrigação de compreender e aceitar melhor a sua mensagem;como eram, de facto, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo. Este trecho é claro quanto ao facto de eles não terem desculpas por não quererem entender e aceitar o que Jesus tem para lhes dizer. Agora, talvez possamos e devamos dar mais um passo em frente: aplicar essas palavras duras de Jesus também a nós próprios. Não será que também nós não aceitámos a mensagem de Jesus Cristo, quando tivemos todas as oportunidades para a entender e acolher? Estamos dispostos a admitir que outros - que porventura classificamos de «maus e pecadores» - acabem por acolher Jesus melhor do que nós? A imagem dos cobradores de impostos e das meretrizes, que precedem os sacerdotes do Templi e os ancião dos povo no Reino de Deus, não se poderá também aplicar à forma como nós (e não apenas os príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo) reagimos perante as propostas de Jesus?

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

*O modo de proceder do Senhor é justo.

 

*Jesus Cristo é o Senhor.  

 

*Cumpre (a Lei) quem faz a vontade do Pai que está no Céu.

NÃO 

BASTA DIZER. 

É PRECISO FAZER.

 

    Neste domingo, em termos práticos, se procurarmos descobrir o núcleo essencial das leituras propostas, somos convidados a refletir sobre o mesmo tema que já esteve presente no domingo passado. Insiste-se, com mais exemplos concretos, no facto de que o Reino de Deus não é algo que se possa «exigir» como direito natural ou, pior ainda, que se possa «comprar». E isso por um motivo que me parece muito simples: o Reino de Deus é algo a que não podemos aceder, digamos assim, pelos nossos próprios méritos, por maiores que eles sejam, já que o Reino é, acima de tudo, um dom (uma graça) de Deus e tem um valor (incalculável e infinito) que nenhum mérito humano pode alcançar.

    De resto, o tema vai ser tratado ainda nos domingos que se seguem. A parábola lida no trecho evangélico de hoje (bem como as dos dois domingos que se seguem) tem como finalidade veicular uma constatação e uma mensagem. Por um lado, o povo judeu recusa-se a escutar e a aceitar Jesus; por outro lado, como consequência, esse povo é substituído por um novo povo constituído maioritariamente por «pagãos». De resto, há que acrescentar o seguinte: a mensagem que dessa constatação se pode tirar também é simples: o que aconteceu naquele tempo aos judeus pode também acontecer em qualquer época, quer a nível individual quer a nível coletivo (como comunidade ou como nação). As várias comunidades correm sempre o risco de se assenhorearem de Deus, como se elas tivessem o exclusivo.

    Quando chegar o momento de «separar as águas», não haverá direitos adquiridos que se possam invocar em relação ao Reino de Deus. Por outras palavras, o facto de termos sido chamados por Jesus, primeiro que outros, não nos dá a garantia de que, no final, o mesmo Reino será averbado na nossa conta; ou, pelo menos, mais na nossa conta do que na dos outros. É que pode também acontecer que nós o delapidemos, na medida em que não formos fiéis às condições que nos são propostas para continuar a fazer parte dele. E isto não obstante o «esforço» que Deus faz sempre para ficar à espera que o filho pródigo regresse finalmente a casa, depois de ter experimentado a vacuidade da vida
(cf Lc 15,11-32).

 

    A parábola dos dois filhos que o pai manda para a sua vinha é conhecida praticamente de todos os que têm alguma familiaridade com os trechos evangélicos. Agora, o que é mais interessante é que toda a gente conclui com facilidade que quem fez a vontade daquele pai não foi o filho que disse palavras bonitas, mas sim aquele que, embora tendo protestado, acabou por ir trabalhar para a vinha, fazendo assim realmente a vontade do seu pai.

    Segundo o contexto que serviu de base a Jesus para contar a parábola, os que diziam belas palavras e não faziam nada eram representados, de forma direta, pelos anciãos do povo e pelos sacerdotes do Templo. Ao contrário, aqueles que, não sabendo embora dizer belas palavras, se reconheciam pecadores e, no fundo, se preocupavam por fazer aquilo que Deus queria deles, eram, apesar de tudo, publicanos considerados oficialmente como pecadores, «infiéis e impuros» e sem hipótese de salvação.

    Ora bem, para que não restassem dúvidas, Jesus esclareceu os que se escandalizavam pela predileção por Ele manifestada pelos pecadores, que, com frequência, são estes os que estão mais perto da verdade. Exemplos desses temos vários: quando entra em casa dum chefe dos publicanos e salva Zaqueu que «limpou» dinheiro a toda a gente (cf. Lc 19, 1-9); quando deixa que uma prostituta lhe lave os pés (cf. Lc 7,36-50); quando livra a adúltera de ser apedrejada até à morte pela populaça e sobretudo pelos que se retinham «puros» (cf. Jo 8, 1-11). A vida desses últimos da sociedade como que deixa a Deus a liberdade de se manifestar com todo o seu poder e bondade...

 

    É claro que, com tudo isto, não estou a dizer que ser bom e «puro» é algo a evitar; claro que não. E, por isso, também não se pode chegar a uma conclusão contrária e exagerada, como seja a de que, afinal de contas, a condição para ser aceite por Deus seria, ao contrário, levar uma vida pouco digna ou até dissoluta. Não, «os publicanos e os pecadores» não são aceites e salvos pelo facto de levarem uma vida pouco digna, mas sim por fazerem o possível, de maneira sincera, apesar de tudo (cf 1ª leitura), para seguir os caminhos de Deus.

    O realce (não se pode esquecer) é posto nas disposições do coração e na sinceridade com que as pessoas decidem mudar de vida. Então, a fidelidade para com Deus não se define nem se mede pela capacidade de dizer «sim, sim», mas pelos factos que traduzem esse desejo de mudança. Mais: o que conta não é agir ritualmente como a tradição indica e ensina. Isso não basta. Tem que se ter a coragem de sujar as mãos e arriscar a própria vida na procura de novos valores mais próximos da liberdade, do amor, da solidariedade e da fidelidade ao homem.

    É através de «opções operativas» - passe a expressão - que se medem e julgam as intenções das pessoas. É por isso que também hoje começa a notar-se um certo cansaço das ideologias, sejam elas quais forem, que não se traduzem em concretizações humanas e humanizantes. «Não é quem me diz "senhor, senhor" que entra no Reino dos Céus, mas sim quem faz a vontade do Pai que está nos céus» (cf. Mt 7,21). Há que ter presente que as palavras, as ideologias, podem enganar; podem ser uma ilusão ou um fogo-fátuo. A verdade do homem descobre-se nas suas obras: «Pelos frutos se conhece a árvore», assegura Jesus (cf. Mt 12,33).


    As obras são inequívocas. Só através do que faz é que o homem demonstra realmente o que é. O auto-elogio, a auto-complacência e a auto-justificação não «pegam», não têm valor de qualquer espécie diante de Deus. Pelo contrário, quando a gente procura auto-promover-se e atribuir-se méritos que, se calhar, até nem tem, está a querer enganar quem não pode ser enganado. Por outro lado, bem vistas as coisas, isso representa uma recusa de Deus, na medida em que, implicitamente, se está a querer dizer que não se tem necessidade dele, pois bastaria apresentar os próprios méritos para exigir por direito o paraíso. Quão longe estamos da justiça de Deus!

 

    Para sermos claros e simples, ponhamos a questão nestes termos, embora perdendo em pureza de linguagem: há obras que realmente o são e há obras que não passam de show-off. Infelizmente, está ainda muito arraigada uma concepção exterior e meramente quantitativa da religiosidade dos grupos ou dos indivíduos. Por outras palavras, sacrifica-se facilmente a qualidade à quantidade. Nesse sentido, supostamente, quantos mais items houver na lista das nossas «boas» obras, mais «santos» somos. Como se fosse possível medir o grau de pertença a um determinado grupo pelo número de presenças em certos ritos ou práticas facilmente verificáveis: missas, novenas, sacrifícios, sacramentos, procissões, terços, orações, devoções, esmolas, etc!

    Infelizmente, para alimentar este equívoco, contribui o que se costuma designar por estatística, ou melhor dizendo, por relatórios, que codificam convencionalmente a pertença eclesial pelo número de comunhões ou de associações formalmente constituídas. Uma coisa são os números e outra coisa bem diferente é a vida que esses números podem ou não representar. Quando se conclui das estatísticas que pelo menos 95% dos portugueses são católicos, isso pode transmitir a sensação agradável de que, afinal, não estamos tão mal como se pensa. Mas, por outro lado, isso pode significar pouco ou nada, se essa percentagem não passa dum simples número. É que, se calhar, no concreto, a maioria deles vive como se pagãos fossem.

 

    Eu poderia dizer, nesse aspeto, que, se calhar, Deus não liga muito a números; talvez não seja muito bom em estatísticas e em contas dessas (passe a expressão!). A Ele interessa-lhe muito mais a pessoa no seu todo, o coração e a interioridade da pessoa, a intensidade da sua actuação.

    Por vezes, com os números e as estatísticas, conseguimos ludibriar os outros e, se calhar, ainda mais, iludirmo-nos a nós próprios, por julgarmos que, tendo alguns números em ordem, estamos também em ordem com Deus. Nessa circunstância, quem sabe se não caímos na alçada dos «anátemas» que Jesus dirigiu aos fariseus e aos chefes religiosos do povo judeu! É claro que se, num perfeito esforço para agradar de verdade a Deus, for possível cumprir até ao último pormenor a Lei, como se costuma dizer, ninguém tem nada a criticar; antes pelo contrário. O mal está em julgar que, quando se puseram os «is» em todos os «tês», já está cumprida toda a nossa obrigação! Não nos podemos contentar com o mínimo.

 

    Também é capaz de não deixar de ser verdade que, para além e, se calhar, até mesmo fora da prática religiosa e da pertença exterior e jurídica, há uma presença e uma clara influência cristã e evangélica, sob a forma de fermento que leveda a massa, em estratos da população aparentemente «marginais» e estranhos ao cristianismo. Talvez vá sendo tempo de admitir que quem não é contra Jesus é por Ele (cf. Lc 9,46), se bem que seja também verdade o contrário: «Quem não é por mim é contra mim» (cf. Mt 12, 30; Lc 11,23). Enfim, afinal, o que importa saber é que Jesus é por todos os homens, mesmo que não façam parte do nosso grupo.

 

    A religião, como é vivida pelos cristãos, apresenta vários níveis e modalidades de experiência. Pode ser vivida (como o é, de facto, em muitos ambientes ainda) como um conjunto de ritos, devoções e práticas que parecem ser apreendidos como fins em si mesmos, quando não se trata senão e apenas de meios. Se perguntarmos a muitos que se dizem cristãos o que é ser realmente cristão, responderão, de maneira quase automática, que é ir à missa (mesmo assim, não demasiado), confessar-se de vez em quando (o menos possível), jejuar umas tantas vezes (de má vontade) e ter em dia umas quantas devoções. Só que não é bem isso o ser cristão. O máximo que se pode dizer é que esses podem ser meios úteis para ser cristão.

 

    Ora, a religião pode - e deve - ser vivida também como uma visão do mundo e das coisas, ou seja, como critério de valor sobre pessoas e acontecimentos. E este nível, com frequência e na prática, não está, rigorosamente falando, do estrito cumprimento de certos ritos. Há um nível em que ser cristão é procurar ter um código moral ou normas de ação, em todas as circunstâncias da vida, que adiram à mensagem evangélica, sendo como que uma síntese entre aquilo em que realmente se acredita e aquilo que se faz como consequência dessa fé.

   A vida de prática cristã que não tenha influência não apenas na visão do mundo e das coisas, mas também na vida diária (ou seja, para além dessas mesmas práticas), é incompleta e, com muita frequência, contraproducente. Como o era a religião dos fariseus que, apesar de escrupulosos no cumprimento literal dos mínimos pormenores estipulados pela Lei, eram um contratestemunho para toda a gente, porque as normas da Lei, no seu caso, não passavam duma máscara para encobrir as misérias pessoais e para impor regras aos outros. Como dirá Jesus, eles eram como «túmulos caiados de branco e por dentro cheios de podridão» (cf. Mt 23,27).

   O verdadeiro cristão é então o que consegue operar a integração entre fé e vida. Ou seja, o que faz do «sim» da sua fé o «sim» da sua vida. O testemunho dos seus lábios torna-se, assim, ação e gesto nas suas mãos e no compromisso do seu trabalho. A discriminação entre o «sim» e o «não» não passa só pela observância da letra das leis, mas sim através do espírito da vida. «Feliz é aquele que escuta a Palavra de Deus e a põe em prática» (cf Lc 11,27-28), mas fá-lo como sinal de respeito, familiaridade e amor por Aquele que quer ser nosso Pai, nunca esquecendo que a letra mata e o espírito é que dá vida (cf 2Cor 3,6).