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Categoria: Domingos do Tempo Comum - Ano A
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Temas

de

fundo

1ª leitura (Is 55,6-9):  Procurai o Senhor enquanto for possível encontrá-lo. Invocai-o enquanto está perto. Abandone o ímpio os seus caminhos e o criminoso os seus projectos. Volte para o Senhor, que terá piedade dele. Volte para o nosso Deus, que é generoso no perdão. Diz o Senhor: «Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos. Os vossos caminhos não são os meus caminhos. Tanto quanto o céu está acima da terra, assim os meus caminhos são mais altos que os vossos e os meus pensamentos mais altos que os vossos pensamentos».

 

* Os vossos caminhos não são os meus caminhos.

   Este é um dos belos textos do AT. É tirado da última parte do Segundo Isaías. Mas, mais do que a beleza propriamente dita, o que deve contar é a sua mensagem. Por altura do regresso da Babilónia, aqueles a quem o representante de Deus se dirige em primeiro lugar precisam de alento e ânimo. Eis que surge então alguém - este profeta, precisamente - que, com uma profusão de imagens extraordinária, lhes demonstra que Deus não segue os critérios dos homens e que, pelo contrário, é generoso no perdão. Muito possivelmente, os seus «leitores» tinham muita dificuldade em aceitar conceitos como os do amor e do perdão, perante todos os sofrimentos a que tinham sido sujeitos durante o cativeiro da Babilónia, mas o profeta sente-se na obrigação de insistir no tema. E o texto a nós diz-nos respeito, porque, Infelizmente, passados tantos séculos, é ainda como eles que nós costumamos reagir. É certo que, em termos teóricos, no que nos diz respeito, até somos capazes de admitir que os conceitos de perdão e amor propostos por Cristo são óptimos, mas, agora, quanto a pô-los em prática, a história muda de figura.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (Fl 1,20c-24.27a):  Quer eu continue vivo quer morra, Cristo será glorificado à mesma. Afinal, o que é a vida? Ora bem, para mim, viver é Cristo e, por isso, morrer até seria um lucro. Mas se, entretanto, continuando a viver, posso desempenhar um trabalho frutuoso, então não sei o que hei-de escolher, porque estou indeciso entre estas duas coisas: por um lado, sinto o desejo ardente de deixar esta vida para estar com Cristo, o que seria muitíssimo melhor; mas, por outro lado, por vossa causa, é mais necessário que eu continue vivo. Quanto a mim, estou convencido de que continuarei junto de todos vós, para o progresso e a alegria da vossa fé, de modo que a minha presença no meio de vós contribua para a consideração em que me tendes em Jesus Cristo.

 

* Para mim viver é Cristo.

  Nota-se, nesta passagem da Carta aos Filipenses, um tom de intimidade que não se encontra em outros escritos do apóstolo Paulo. Dá a impressão que Paulo está a passar por um momento de alguma tristeza, porventura pelo facto de estar preso (em Éfeso? em Roma?) e não ter a possibilidade de desenvolver o seu apostolado como antes. A situação para ele é difícil, mas, mesmo assim, não parece ter perdido a esperança de poder voltar a estar com os cristãos de Filipos. Em todo o caso, Paulo não deixa de ver, no que lhe está a acontecer, uma hipótese de continuar a sofrer e a trabalhar para que o anúncio do Evangelho seja levado o mais longe possível. Ao mesmo tempo, Paulo aproveita para alertar os seus cristãos para estarem atentos a algumas pessoas que, na sua ausência, não se coibiram de se apresentar como representantes da Igreja e como legítimos pregadores da mensagem de Cristo. Talvez seja por isso que diz que, por enquanto, é necessário que continue vivo. Mas, mesmo neste caso, é edificante a sua tolerância para com todos, desde que Cristo seja anunciado (cf. Fl 1,18).

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Mt 20,1-16a):  O Reino do Céu é semelhante a um proprietário que, ao romper da aurora, saiu para contratar trabalhadores para a sua vinha. Combinou então com eles um denário por dia e enviou-os para a sua vinha. Saiu depois, por volta das nove horas, e, vendo na praça outros que não estavam a fazer nada, disse-lhes: «Ide vós também para a minha vinha e tereis o salário que for justo». E eles foram. Saiu de novo por volta do meio-dia e por volta das três da tarde e fez o mesmo. Saindo pelas cinco da tarde, encontrou ainda outros que ali estavam ociosos e disse-lhes: «Por que estais aqui todo o dia sem trabalhar?». E eles responderam: «Porque ninguém nos contratou». Ele disse-lhes: «Ide vós também para a minha vinha». Ao entardecer, o dono da vinha disse ao capataz: «Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário, a começar pelos últimos até aos primeiros. Vieram os das cinco da tarde e receberam um denário cada um. Vieram, por seu turno, os primeiros e julgaram que iam receber mais, mas receberam, também eles, um denário cada um. Depois de o terem recebido, começaram a murmurar contra o proprietário, dizendo: «Estes últimos só trabalharam uma hora e deste-lhes a mesma paga que a nós, que suportámos o cansaço do dia e do seu calor». Então o proprietário respondeu a um deles: «Em nada te prejudico, meu amigo. Não foi um denário que combinámos? Leva então a tua paga e segue o teu caminho. Se eu quero dar ao último contratado tanto como a ti, não me será permitido dispor dos meus bens como eu entender? Ou tu tens inveja por eu ser generoso?». E Jesus concluiu: «Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos».

 

* Os últimos serão os primeiros.

   Trata-se de uma parábola e, como em todas as parábolas, mais do que a história em si e da forma como ela está construída, o que interessa é a intenção com que Jesus a conta e, portanto, a sua mensagem. Para já, não é prioritário sabermos se o patrão generoso representa o próprio Deus, se os operários são todos os homens convidados para trabalhar na vinha; também não é preciso saber se a paga (um denário corresponderia naquela altura a um dia de trabalho), igual para todos, não obstante a hora a que são convidados, representa o reino da salvação. É curioso que esta parábola em concreto seja apresentada por Mateus, cujo evangelho se destina, em primeiro lugar, aos cristãos provenientes do judaísmo. A mensagem direta parece ser muito clara: a salvação não se destina apenas aos trabalhadores da primeira hora - no caso, os israelitas - mas também aos das outras horas e até aos da última hora - os gentios ou pagãos. Todos têm lugar no reino da salvação; para isso, basta que aceitem o convite de ir trabalhar para a vinha. Mais: não se deve esquecer a última parte da parábola: que ninguém tenha inveja dos que acedem ao Reino de Deus, mesmo que isso aconteça à última da hora, no fim da vida. Por outras palavras, esse é um convite feito a todos nós, a fim de que, em vez de sentimentos de inveja (que, por vezes alimentamos), nos alegremos por até os chamados à última da hora poderem ter a hipótese de receber a recompensa por inteiro.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *    Os vossos caminhos não são os meus caminhos.  

 

 *    Para mim viver é Cristo.  

 

 *    Os últimos serão  os primeiros.

A JUSTIÇA DE DEUS NÃO É A JUSTIÇA DOS HOMENS.

 

 

    Para encurtar caminho, comecemos por uma pergunta preliminar: quem são os últimos e quem são os primeiros do Evangelho? Antes de mais, há que constatar que o conteúdo desses conceitos no Evangelho é diferente daquilo que nós pensamos. Acho que, pois, nesse sentido, são conceitos relativos que por vezes são difíceis de enquadrar. Antes de mais, há que relevar que os critérios para classificar alguém de primeiro ou último não são unânimes, mesmo só a nível humano. Tudo depende dos interesses e das prioridades das pessoas. Isso é tanto mais assim quanto mais se reportados à liberdade e originalidade de Deus! Daí se poder concluir que o que para nós é primeiro possa ser para Ele último e vice-versa.


    Em segundo lugar, tenhamos cuidado em nos colocarmos sempre lá no primeiro lugar, como o fez um dos protagonistas da parábola do «Fariseu e Publicano». É verdade que, como se costuma dizer, presunção e água benta cada um toma a quer, mas isso não significa necessariamente que a opinião positiva que temos acerca de nós próprios seja exata. A ideia que Deus (e mesmo os outros) possa ter de nós pode não ser essa.

    Por outro lado, a chave de leitura para a parábola dos trabalhadores que foram enviados para a vinha a várias horas do dia encontra-se no versículo 16. Aí se afirma que os últimos serão os primeiros e que os primeiros serão os últimos. Então o que interessa não é tanto o trocadilho como a ideia de fundo! E a ideia de fundo é precisamente esta: a opinião que Deus tem acerca dos homens (de mim, e não só dos outros) é muito diferente da nossa.

    A ideia que Deus tem de justiça é também muito diferente da nossa. De resto, pensando bem no assunto, mal de nós se a justiça de Deus fosse como a nossa! No que se refere à salvação, mal de nós se Deus nos tratasse segundo os nossos méritos! É que, por mais méritos que possamos ter (o que, como é óbvio, é preciso provar) nunca teremos os suficientes para poder fazer exigências a Deus, como seja, por exemplo, exigir de nos dê «por direito» o seu Reino.

 

     Eu diria que a leitura do profeta Isaías e o trecho evangélico deste domingo sintetizam a proposta dum tipo diferente de justiça e de recompensa. A justiça, à maneira dos homens, que se consubstancia em «dar a cada um o que lhe pertence», é precisamente justiça humana (e que justiça, há que acrescentar!). Mas essa forma de justiça, aplicada a Deus, não tem sentido nenhum. Na óptica do crente, o que é que nós temos que não tenhamos recebido dele? Como se disse acima, o homem não pode exigir de Deus o que quer que seja como corolário de qualquer direito. Por outro lado, como se disse também, a «recompensa» de Deus supera sempre tudo quanto possamos merecer. A justiça de Deus, nesse sentido, não é certamente um conceito relativo como o é o da justiça do homem. Se quisermos, é um comportamento de misericórdia e, por isso mesmo, não se enquadra no princípio «a cada um o que lhe pertence».

    A tendência do homem é, quase sempre, pôr em prática apenas o mínimo indispensável. Em certo sentido, é o tal «olho por olho, dente por dente» do domingo anterior. Mas a esta maneira mesquinha de conceber a justiça, Jesus responde (não textualmente, claro!): O patrão da vinha é justo para com os que foram chamados em primeiro lugar, porque lhes dá o que tinha combinado de antemão. Mas é também justo com os últimos a serem chamados, porque não tinha, na verdade, combinado com eles coisíssima nenhuma e,
portanto, podia dar-lhes o que lhe apetecesse, já que os bens eram seus.

    Jesus afirma, pois, o primado da bondade de Deus. A maneira de agir de Deus contrasta com a maneira como os homens aplicam a justiça. Transcende-a totalmente. De resto, o pacto estabelecido entre o patrão da vinha e os operários não é propriamente um contrato em que a determinado serviço prestado corresponda um determinado salário. Trata-se de um contrato especial, em que o patrão dá aos operários não o que lhes «pertence» por direito, mas o que ele livremente tinha «combinado» com eles (independentemente das horas de trabalho que eles fizessem).

    Enfim, mais que um contrato propriamente dito, à maneira humana, na parábola em questão, trata-se de um dom de alguém que viu aquela gente para ali sem fazer nada e se compadeceu dela e, no fim do dia, deu, até aos primeiros a serem chamados (há que acrescentar isto), mais do que eles teriam o «direito» de esperar.

 

    Com esta parábola, Jesus quer pôr em alerta os seus co-nacionais contra a orgulhosa atitude de quem pretende impor condições a Deus. Ninguém tem o direito de julgar a bondade de Deus, a sua misericórdia e as decisões que Ele toma. Mas por que será que continuamos a alimentar esta mania constante de fazer sempre Deus à nossa imagem e semelhança e não o contrário?

    Deus é bondoso e fiel à sua própria bondade, e não à justiça dos homens. E encontra sempre motivos para distribuir gratuitamente os seus dons e benefícios, muito para além do que se possa esperar. De Deus ninguém pode pretender seja o que for, mesmo que seja a salvação. Porque a própria salvação é qualquer coisa que se não merece e à qual, portanto, não se tem propriamente direito, mas é qualquer coisa que nos é oferecida. A nós compete, isso sim, recebê-la, atuá-la e sermos agradecidos; por outras palavras, a nós compete aceitar o convite do patrão e ir trabalhar para a sua vinha; seja qual for a hora em que formos chamados.


    Nesse aspecto, podemos efetivamente ser chamados em primeiro lugar (quer dizer, a salvação pode ser-nos oferecida em primeiro lugar, porque somos, por exemplo, batizados de crianças). Esse, porém, é um facto que não justifica qualquer pretensão, até porque pode acontecer que, embora chamados à primeira hora, talvez não sejamos os primeiros a fazê-la frutificar ou nos fiquemos pelo caminho ao longo da jornada. Foi precisamente o caso dos judeus, aos quais a salvação foi oferecida antes de a qualquer outro povo. E, no entanto, não souberam aproveitar esse dom de Deus, acabando, como diz a parábola claramente, por ficar em último lugar.

 

    Este subtítulo, se não estou em erro, já apareceu num comentário anterior e parece-me que não é há motivo para não o repetir aqui. Diz Isaías: «Os meus pensamentos não são vossos pensamentos; os vossos caminhos não são os meus caminhos» (1ª leitura). Ou seja, a «lógica de Deus», se me é permitida esta maneira de me expressar, é diferente da lógica e da maneira de raciocinar dos homens. Por vezes, é até oposta e irreconciliável.

    Com frequência, aquilo que, para o homem, é um ganho e um grande negócio, para Deus é uma perda; aquilo que para o homem está em primeiro lugar, para Deus vem em último lugar. O julgamento de Deus, descrito através da parábola do trecho evangélico de hoje, implica uma completa mudança de valores. Aliás, já antes de esta parábola ser contada, sabíamos isso: «Felizes os pobres, os que choram, os que sofrem...» (cf. Mt 5,3ss). Mais: verdadeiramente ricos são os que abandonam tudo, porque quem quiser salvar a própria vida perdê-la-á e quem a perder por amor de Deus então é que a salvará (cf. Mc 8,35-36).

    Para complementar esta reflexão, talvez não seja descabido citar o conteúdo de passagens inequívocas: Deus escolhe as coisas fracas e desprezíveis deste mundo para confundir os fortes e as pessoas importantes. Ele não escolhe necessariamente os primeiros e os mais qualificados, mas os últimos (cf. 1Cor 1,25-28). De alguma forma, pode-se dizer que Ele prefere os pecadores aos justos; faz mais festa por uma ovelha tresmalhada do que por noventa e nove que não fugiram do redil (cf. Lc 15,7). Enfim, como diz Karl Rahner, o Deus cristão é «Absolutamente Outro», sempre imprevisível, incapturável; foge a toda a tentativa de definição e vai revelando continuamente novos aspectos do seu mistério.

 

    Ninguém conhece o Filho, Jesus Cristo, senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho (cf. Mt 11,27). Tudo quanto possamos aprender, digamos assim, de Deus é sempre relativo. Não por culpa de Deus, porque nele tudo é absoluto; mas por culpa nossa, que somos limitados. Contudo, caso seja possível dizê-lo assim, se há algum «aspeto» de Deus que Jesus nos revelou mais claramente e com mais insistência foi o das preferências que Ele tem relativamente aos pobres, aos humildes, aos últimos.

    Os «últimos», em contacto com a misericórdia divina, são destinados a ser os primeiros, os verdadeiramente ricos, os eleitos. A propósito, não se pode esquecer a aventura do povo de Israel que, de último, se tornou o primeiro e que, depois de eleito, se tornou rejeitado. É esta a «tese», digamos assim, dos densos capítulos 9 a 11 da Carta de Paulo aos Romanos. No entanto, há que acrescentar que, como Paulo afirma nesta mesma Carta, de maneira muito clara, que também o povo de Israel está destinado à salvação final.


    O mesmo pode acontecer, e acontece, com os indivíduos. Há sempre o perigo de tomar a atitude dos que, considerando-se os primeiros chamados, acham que tudo lhes é devido e acabam por rejeitar as propostas de Deus, que, com frequência, são muito diferentes das propostas dos homens. A garantia da salvação não é a pertença seja a que grupo for, mas sim a conversão contínua, ou seja, a adequação da mentalidade e do comportamento à palavra de Deus. De resto, não basta saber coisas; é preciso pô-las em prática. É por isso que, segundo a minha maneira de ver, talvez todas as Bem-aventuranças estejam sintezidas nesta: «Feliz aquele que escuta a Palavra de Deus e a põe em prática» (cf. Lc 11,27-28).