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XVIII DOMINGO COMUM - A

1ª leitura (Is 55,1-3):  Vinde beber desta água todos vós que tendes sede. Vinde, vós que não tendes dinheiro, e comprai trigo para comer. Levai vinho e leite, que é de graça. Porque gastais o vosso dinheiro com aquilo que não alimenta? Porque gastais o vosso salário com o que não pode saciar? Escutai-me e fazei o que vos digo! Então, comereis do melhor e saboreareis pratos deliciosos. Prestai atenção e vinde a mim. Escutai-me e vivereis. Farei convosco uma aliança eterna e a promessa feita a David será mantida.

 

* Escutai-me e vivereis. Farei convosco uma aliança eterna.

   A passagem em exame pertence ao último capítulo da segunda parte do Livro de Isaías. É uma série de poemas e escritos «consolatórios», cujo tema principal é o regresso dos judeus do cativeiro da Babilónia. O seu autor parece querer dar a entender que o prodígio desta passagem do cativeiro para a liberdade é um fenómeno ainda maior que a primeira libertação do Egipto chefiada por Moisés. A linguagem é mais poética do que prosaica e, por isso, há que ter o cuidado de ter em conta os exageros linguísticos para a poder interpretar corretamente. Daí termos que dizer que, quando o autor se refere a bebida e comida, a intenção tem como objetivo, como é óbvio a uma ordem «superior». Em linguagem figurada, com o recurso a imagens concretas, o autor descreve o regresso dos exilados como a oportunidade para descobrirem a vida que importa. Quase que me atreveria a dizer que a ideia do autor é fazer ver aos seus concidadãos que as dificuldades e a escassez de tudo não devem ser motivo para perder a coragem e a determinação. Apesar das dificuldades, Deus não promete uma coisa qualquer; promete, isso sim, uma aliança eterna. Parece-me que nunca é demais insistir neste ponto. E digo isto referindo-o também aos leitores atuais. Por vezes, dá a impressão que as pessoas colocam em segundo plano esta dimensão da vida sem fim. E, no entanto, na ótica cristá, é essencial na vida das pessoas. Caso contrário, a própria vida deixa de ter sentido.

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2ª leitura (Rm 8,35.37-39):  Quem é que nos poderá separar do amor de Cristo? Porventura as tribulações, a angústia, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Não! Em tudo isso saímos mais que vencedores, graças àquele que nos amou. Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem outros seres celestes, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá jamais separar-nos do amor de Deus, em Cristo Jesus, Senhor nosso.

 

* Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?

   Esta espécie de hino ficaria mais claro se incluísse alguns versículos que o precedem, pois é através deles que ficamos a saber que ninguém nos pode condenar, porque é Deus quem nos justifica. É certo que as coisas não são assim tão simples como parecem, mas, a partir do momento em que estejamos verdadeiramente inseridos em Jesus Cristo, que intercede por nós junto de Deus (cf. Hb 7,26-27), então é mesmo um facto que nada nos pode separar do amor de Cristo. O texto de Paulo aos Romanos dá a entender que o apóstolo está absolutamente convencido disso e, por isso, não receia exagerar nas comparações utilizadas. Não sei precisamente se Paulo terá dito (ou escrito?) estas palavras após vencer alguma dificuldade ou prova. Agora o que sei é que ele não se contenta com uns pensamentos e «praticazinhas» e alguns ritos ou  gestos simpáticos para pôr em dia o seu relacionamento com Deus. O seu relacionamento é algo que nasce de dentro e que implica uma convicção de tal maneira forte e arraigada que nem os seres celestes ou as potestades estão em condições de abalar. A solução que Paulo sugere, em meu entender, é que, para que as coisas «funcionem», é preciso «agarrar-se» de forma absoluta e definitiva a Cristo Jesus. Por outras palavras, os paliativos não servem para nada.

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Evangelho (Mt 14,13-21):  Jesus retirou-se dali, numa barca, e foi para um lugar deserto. Mas o povo, quando soube disso, seguiu-o a pé desde as cidades. Jesus desembarcou e, ao ver uma grande multidão, encheu-se de compaixão por ela e curou os enfermos. Ao entardecer, os seus discípulos vieram ter com Ele e disseram-lhe: «Este lugar é deserto e a hora já vai avançada. Manda embora esta gente, para que possa ir às aldeias comprar alimento». Mas Jesus respondeu: «Não precisam de ir. Dai-lhes vós mesmos de comer». Responderam: «Mas tudo o que temos aqui são cinco pães e dois peixes». «Trazei-mos cá» – disse Ele. E depois ordenou à multidão que se sentasse na relva. Então, pegou nos cinco pães e nos dois peixes, ergueu os olhos ao céu e pronunciou a bênção. A seguir, partiu os pães e deu-os aos discípulos e estes distribuíram-nos pela multidão. Todos comeram a ficaram saciados. E, no fim, do que sobrou, encheram doze cestos. Ora, os que comeram eram uns cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças.

 

* Dai-lhes vós mesmos de comer.

   Os evangelistas (todos eles falam deste assunto, embora S. Lucas e S. João apenas façam referência a uma única multiplicação dos pães e dos peixes, ao passo que S. Mateus e S. Marcos falam de duas) não nos contam este episódio só pelo gosto de falar de comer. Por outro lado, o assunto tem tanta importância e simbolismo que, a não ser assim, não seria preciso insistir tanto. A fome (material) dos milhares de pessoas que foram saciadas, na mente dos evangelistas, pretende ir mais além da satisfação duma necessidade física, mas simboliza a longa espera de libertação total representada pelo povo faminto que escuta a palavra de Jesus. A ideia de que, nos tempos messiânicos, os pobres seriam saciados não é estranha a esta multiplicação dos pães e dos peixes. Não se pode esquecer, de facto (como, de resto, lembra também a primeira leitura deste domingo), que a plenitude messiânica é representada precisamente pela existência de pratos deliciosos. Não havia, pois, qualquer dificuldade, por parte dos leitores imediatos dos evangelistas, em tirar a conclusão de que a multiplicação dos pães e dos peixes tinha por finalidade referir-se à satisfação de outras fomes e de outras necessidades, que não apenas as materiais. Dá-se o caso que o texto evangélico aponta também, à sua maneira, para o milagre da Eucaristia como alimento do novo povo de Deus. Os apóstolos não são só aqueles a quem cabe a obrigação de distribuir aos presentes os pães e os peixes, mas também aqueles a quem cabe sobretudo a obrigação de fazer as honras da casa no banquete do Reino de Deus. A isso não será indiferente o facto de, significativamente, terem sobrado doze cestos de comida, o que parece ser a forma simbólica de dizer que aos doze compete o dever de continuar a matar a fome das pessoas (material e sobretudo espiritual) até ao fim dos tempos.

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 *   Escutai-me 

      e vivereis. Farei convosco 

      uma aliança eterna.

 

 *   Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?  

 

 *   Dai-lhes vós mesmos 

      de comer.

TODOS 

COMERAM

E FICARAM

SACIADOS.

 

   Uma leitura mais atenta da Carta aos Romanos, e mais precisamente do capítulo oitavo, contribuirá para tirar da mentalidade de alguns cristãos a noção aterradora que ainda têm de Deus.

 

  • Há fome e fome...

    O trecho evangélico de hoje conta-nos um episódio em que Jesus procede à multiplicação de cinco pães e dois peixes, matando a fome a uma multidão. O tema da fome e de como se sacia essa fome é dos que é susceptível de se prestar a uma leitura política, na medida em que pode haver quem queira inferir dos textos da liturgia da palavra argumentos para falar directamente dos eventuais deveres sociais que impendem sobre os cristãos no apoio que devem dar na esfera social e política. Todavia, parece-me que essa leitura política não só é restritiva como ultrapassa o âmbito do espírito específico deste domingo, se bem que, em algumas circunstâncias especiais, os agentes pastorais se vejam obrigados a fazer também considerações deste tipo. A este propósito, seja-me perdoada a insistência com que de vez em quando digo que a finalidade da Bíblia e dos Evangelhos em particular é transmitir uma mensagem de carácter prevalentemente religioso.

 

    É por isso que tem que se dizer que há fomes e fomes. O que me parece óbvio é que a intenção do Evangelho não é falar de fome material pelo simples gosto de falar. Como sempre, no que se refere à mensagem bíblica, a intenção que está por detrás do que é narrado vai sempre para além da simples significação material.


   Embora se possa admitir que o trecho evangélico de hoje faça parte dum «capítulo» que os especialistas chamam também «seção dos pães», no entanto, ele é um convite claro a ultrapassar a dimensão simplesmente terrena do alimento, representado, neste caso, pelo pão e pelo peixe (alimentos considerados naturais para pessoas que viviam à beira dum lago, o Lago de Tiberíades).


   Toda a seção é construída pelo evangelista Mateus de forma que Jesus apareça como o novo Moisés, que vem dar ao povo o «maná» definitivo, capaz de alimentar as pessoas até à chegada à verdadeira Terra Prometida. No que diz respeito aos «leitores» de Mateus (que escreve sobretudo para cristãos provenientes do paganismo), a novidade maior talvez esteja no facto de que deste «pão» podem parti
lhar não só os membros do «povo eleito», mas também os pagãos.


   A componente estritamente social, digamos assim, das estruturas eclesiais é importante, mas não é a mais importante. Pelo menos segundo a perspetiva do Evangelho. A dimensão religiosa é a que tem prioridade. Parece-me que é preciso acentuar esta ideia, mesmo correndo o perigo de ter que aceitar a acusação de espiritualismo. Por outras palavras, não é missão primordial e específica da Igreja matar a fome ou a sede físicas às populações (isso, claro, não se exclui, porque esse pode ser o caminho para chegar ao mais íntimo das pessoas) mas sim matar a fome e a sede de Deus, até porque «não só de pão vive o homem, mas também de toda a palavra que sai da boca de Deus» (cf. Mt 4,4: Lc 4,4; Dt 8,3).

 

  • A abundância é sinal de quê?

    Aos exilados da Babilónia, vistos como povo torturado pela fome e pela sede e, ao mesmo tempo, preocupados na procura do bem-estar, Isaías dirige um apelo a ultrapassar a situação material em que se encontram, convidando-os à conversão e à procura de Deus. Essa procura fará com que os exilados sejam os depositários da promessa que Deus fizera aos antepassados. É certo que os termos utilizados (de resto, segundo a mentalidade oriental) são os termos próprios dos convites para uma refeição: a água, o vinho, o leite, outras coisas boas, alimentos suculentos. Mas não é preciso ser génio (basta apenas um pouco de boa vontade) para perceber imediatamente que a linguagem do profeta é, antes de mais, simbólica, significando os bens espirituais e gratuitos de Deus.


    No que toca ao trecho evangélico, a abundância (simbolizada nas sobras com as quais se recolhem doze cestos) é uma imagem de como é generosa a revelação dos dons de Deus. Mas há que acrescentar que é através da Igreja, apesar dos seus defeitos e limitações, que se distribui a grande abundância que é característica dos tempos messiânicos.


   Não é minha intenção (nem isso interessa muito) afirmar ou negar a veracidade total dos factos narrados, ou seja, a exatidão de todos os dados e pormenores que acompanharam a multiplicação dos pães. Deixemos essa questão aos especialistas. O que acho que interessa nesta reflexão é não pôr de parte a lição moral e religiosa que é preciso tirar sempre dum escrito bíblico qualquer.

 

  • A abundância dos bens do Reino

    O evangelista Mateus, com alguns traços ligeiros, apresenta também a estrutura ideal da Igreja como comunidade que se realiza na fraternidade dos discípulos à volta de Jesus para o serviço da multidão, evocando assim a tensão escatológica. Neste episódio tão vivo e tão característico, é também sintomático notar como os termos utilizados na narrativa da multiplicação dos pães são exatamente os utilizados na narrativa da ceia eucarística. Não será isso o indício mais evidente de que tipo de fome o evangelista quer falar?


   Assim, podemos dizer que o episódio da multiplicação de Cafarnaum (justamente o que temos entre mãos) é visto à luz da Última Ceia, como antecipação e promessa. A própria recolha dos fragmentos que sobraram em doze cestos parece conter um aceno simbólico a uma outra realidade. O «banquete» de Cafarnaum ultrapassa a ressonância histórica própria dum prodígio localizado para satisfazer uma multidão esfomeada. Ou seja, é também o símbolo da comunidade dos «últimos tempos» que se senta à mesa com Cristo e é, ao mesmo tempo, sinal da sua presença permanente entre nós. A própria comunidade deve ser o local e o «sacramento» através dos quais Cristo se dá à humanidade de todos os tempos como verdadeiro pão da vida.


    Hoje (no hoje da salvação), a comunidade reunida à volta do banquete de Jesus é a Igreja. A Igreja é, portanto, o local, e a Eucaristia o momento privilegiado onde se descobre o poder que Cristo tem para matar a fome e a sede dos homens. Aí se adquire a capacidade de, à semelhança dos apóstolos, repetir o mesmo gesto prodigioso da distribuição dos bens do Reino a todos.

 

  • O sinal do pão da vida eterna

    Será sempre difícil compreender só com a maneira de raciocinar humana como é que o Reino de Deus, cujo advento foi proclamado por Jesus Cristo, não é deste mundo, mas está intimamente relacionado com ele. Tem, portanto, também uma dimensão terrena e humana, mas é muito mais do que isso.


    É evidente, como foi frisado atrás, que a realização desse Reino também se manifesta na resposta efetiva que se dá às necessidades fundamentais de pão (materiais) que o homem tem. Mas não podemos esquecer que Mateus, e dum modo particular o evangelista João, dizem que as multidões vão atrás de Jesus para ouvir a sua palavra. E a prova disso é que, quando, depois do milagre, deixa de prevalecer essa reta intenção, Jesus se recusa a atender as pessoas: «Vós procurais-me não por terdes visto milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados. Trabalhai não pela comida que perece, mas pela que dura até à vida eterna e que o Filho do Homem vos dará» (cf. Jo 6, 26-27).


   A Boa Nova que Jesus prega nunca poderá, pois, reduzir-se a uma mera operação de saciedade corporal. O prioritário, o essencial, é outra coisa. A multiplicação dos pães é o sinal dum pão que sacia para a eternidade. Todavia, não devemos cair numa conclusão oposta, ou seja, que o pão espiritual não tem nada a ver com o pão terreno e com o que é humano. Não é verdade. O pão «espiritual» produz, nos que o tomam, uma tal solicitude pelos irmãos e um tal dinamismo que os leva a procurar o pão material para aqueles que o não têm. E então o milagre da multiplicação do pão material pode realmente conduzir os outros à descoberta de que há um outro pão: o que constrói não só a humanidade, mas que conduz até à eternidade...

 

  • O nosso pão quotidiano...

    Bem, afinal, de alguma forma, acabamos por fazer também nós uma leitura política da liturgia da palavra. É que a participação no pão da vida, na prática corrente, traduz-se necessariamente numa actuação tendente a fazer com que haja cada vez menos fome no mundo, e também a fazer com que as carências sejam cada vez menos deprimentes. A participação no banquete eucarístico torna-se para o cristão a ocasião de aprofundar o seu empenho e responsabilidade na promoção integral da pessoa humana e no respeito da sua dignidade fundamental de igualdade perante Deus por intermédio de Jesus Cristo.


    O pão que não perece é distribuído, sem cedência a privilégios ou importâncias humanas, sob aparências muito modestas, como um verdadeiro alimento de pobres. Os que participam neste banquete são, de resto, convidados sempre a ultrapassar o significado puramente material do alimento que se distribui em ordem à descoberta dum alimento que não perece.


    Este pão é o alimento novo para ajudar o povo na caminhada da escravidão para a liberdade, da sujeição a tudo quanto é passageiro e lesivo da dignidade própria dos filhos do Reino, inaugurado com a instituição da Igreja de Cristo. O pão eucarístico é realmente o novo maná que é preciso recolher e consumir todos os dias, sem guardar nada para o dia de amanhã, tendente a convencer os homens de que não têm aqui a sua morada permanente.