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fundo

 

XIV DOMINGO COMUM

1ª leitura (Is 66,10-14c):  Alegrai-vos e exultai com Jerusalém, todos vós que amais esta cidade! Alegrai-vos com ela agora, todos vós que fizestes luto por ela! Gozareis da sua prosperidade, como a criança que se sacia da abundância do seio da sua mãe. O Senhor diz: «Conceder-vos-ei uma prosperidade imorredoura; as riquezas das nações chegarão a vós como um rio que nunca seca. Vós sereis como os bebés amamentados pela própria mãe, levados ao colo e tratados com carinho. Eu confortar-vos-ei em Jerusalém como uma mãe conforta o seu próprio filho. Quando virdes isto a acontecer, ficareis contentes e isso tornar-vos-á fortes e vigorosos. E chegareis então à conclusão de que Eu, o Senhor, ajudo os que me obedecem.

 

* Levados ao colo e tratados com carinho.

   Temos entre mãos um trecho da terceira parte do profeta Isaías. O exílio já passou - o que é algo positivo - mas a restauração da Cidade Santa - e particularmente do Templo - ainda não foi levada a cabo. Além do mais, as perspetivas não são lá muito promissoras. Instala-se um certo pessimismo e até ceticismo na «capacidade» de Deus no sentido de dar uma resposta aos problemas das pessoas. Não obstante isso, a lição é clara e também atual. Deus não se substitui a ninguém naquilo que é a responsabilidade de cada um. Ele intervém constantemente, é verdade, mas não como nós julgamos. Nós não vemos senão a curto prazo. Para Deus, as coisas são medidas de outra maneira, até porque não está sujeito nem ao tempo nem ao espaço. O que, para nós, num determinado momento da vida, não é senão sofrimento, escuridão e negatividade, para Ele, que «vê a longo prazo», é precisamente um percurso no caminho, podemos dizer um «acidente», ou, melhor ainda, uma oportunidade para crescer e apontar para o alvo que realmente interessa. Seja como for, e apesar de tudo, também não nos podemos esquecer que, em qualquer circunstância, Ele é para nós como uma mãe que nos leva ao colo. E, por isso, como muito cedo intuiu Sta. Teresinha (de Lisieux), dizendo-nos para não temos medo que Ele nos deixe cair.

 

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2ª leitura (Gl 6,14-18):  Irmãos, quanto a mim, glorio-me só na cruz do Senhor Jesus Cristo. É por causa da sua cruz que o mundo está morto para mim e eu estou morto para o mundo. Com efeito, o que interessa não é se alguém está circuncidado ou não. O que importa é ser uma nova criatura. Para os que seguem esta regra na sua vida, que a paz e a misericórdia estejam com eles, bem como com todo o povo de Deus! Concluindo, de agora em diante, não me causeis mais preocupações com estas coisas, porque as cicatrizes que trago no meu corpo demonstram como eu sou o servo de Jesus. Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja com todos vós, meus irmãos.

 

* O que importa é ser nova criatura.

   Esta é a parte conclusiva da Carta aos Gálatas. S. Paulo refere-se ainda a certas pessoas que anunciam coisas diferentes («um outro Evangelho») das que ele ensinou. E então, para proteger os seus cristãos, no seu escrito mais autobiografico, acusa estes falsos pregadores de viver segundo a carne, porventura não tendo a coragem de dar a própria vida por Cristo e pela sua autêntica mensagem. Em contrapartida e no que lhe diz respeito, Paulo diz que não quer outra glória senão a cruz de Jesus. Esta «posição» causará sempre estranheza a quem não é capaz de aceitar que a força de Deus se manifestou na fraqueza suprema duma cruz. Só um amor provado na nudez e na crueza duma cruz pode dar ao mundo uma vida nova, feita de unidade e de paz. Embora o nosso instinto nos continue a dizer que «quem não se sente não é filho de boa gente» (sinceramente nunca percebi muito bem esta frase) e que «não nos podemos ficar», a verdade é que o Deus encarnado em Jesus Cristo é um Deus que se deixa matar para nos convencer que, sem um coração grande, à semelhança de Deus, nada de profundo se modifica na nossa vida.

 

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Evangelho (Lc 10,1-12.17-20):  O Senhor escolheu outros setenta e dois e mandou-os dois a dois à sua frente a todas as povoações e lugares aonde Ele próprio havia de ir. Disse-lhes: «Há uma grande messe, mas poucos operários. Pedi ao dono da messe que mande operários para ceifar. Ide! Mando-vos como cordeiros para o meio de lobos. Não leveis nem bolsa nem alforge nem sandálias. E não cumprimenteis ninguém pelo caminho. Se entrardes em alguma casa, dizei primeiro: "Paz a esta casa". Se aí houver gente de paz, a vossa paz repousará sobre eles; senão, ficará convosco. Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem, já que o trabalhador merece o seu salário. Mas não andeis de casa em casa. Quando entrardes em alguma cidade e vos receberem,  comei do que vos derem, curai os enfermos que aí houver e dizei: "Está perto de vós o Reino de Deus". Mas, quando entrardes em alguma cidade e não vos receberem, ide até à praça pública e dizei: "Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés sacudimos contra vós. De qualquer forma, ficai sabendo: Está perto de vós o Reino de Deus". Garanto-vos que haverá mais tolerância naquele dia para Sodoma do que para esta cidade». Os setenta e dois voltaram cheios de alegria. «Senhor», disseram eles, «até os demónios nos obedeciam quando assim lhes ordenávamos em teu nome». Jesus respondeu-lhes: «Eu vi Satanás a cair do céu como um raio. Ouvi-me! Eu dou-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões e de vencer todo o poder do Inimigo. E nada vos poderá fazer mal. No entanto, não fiqueis contentes só porque os espíritos maus vos obedecem, mas antes porque os vossos nomes estarão escritos no céu».

 

* Uma grande messe e poucos operários.

   É um dado característico do Evangelho de S. Lucas o facto de não terem sido enviados em missão apenas os Doze, mas também outros setenta e dois discípulos (segundo alguns códigos, são só setenta). Segundo a opinião generalizada dos estudiosos (cf. comentários ao Gn cap. 10), este número, além do valor simbólico, referir-se-á ao número das nações pagãs (não judias) conhecidas de então e que simbolizariam a totalidade do género humano. Como primeira conclusão, isso indica não só que Lucas manifesta, também neste texto, a sua «vocação» universalista (a salvação é para todos), mas igualmente que a missão/evangelização não é uma tarefa só dos Doze (apóstolos). O que, por seu lado, justifica que haja necessidade de novos operários para a messe do Senhor, sendo que estes não são exclusivamente os «sacerdotes» ou sucessores desse grupo dos Doze. Por outras palavras, a evangelização é uma tarefa que a todos diz respeito (todos participam do único sacerdócio de Cristo). Mas, para poderem exercer bem a sua função, os enviados têm que ter algumas características essenciais: ser pacíficos e portadores de esperança e paz; e nunca de condenação; saber contentar-se com o mínimo e, por isso, não fazer exigências pelo serviço prestado; e também interessar-se pelos necessitados, bem como anunciar, mais do que tudo, o Reino de Deus, sabendo, porém, que o Reino não se constrói num dia e que o anunciador não é o dono do Reino.

 

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*  O Senhor ajuda aqueles que lhe obedecem.

 

 *  O que importa,

    não é a circuncisão,

    mas ser uma nova

    criatura.

 

 *  Exultai, antes,

    por os vossos

    nomes estarem

    escritos nos céus.

A MESSE É GRANDE,

MAS OS OPERÁRIOS SÃO POUCOS.

 

  • Mensageiros da salvação

    Nas reflexões relativas ao domingo anterior, descobrimos que Jesus é alguém que não tem onde reclinar a cabeça. Segui-lo é, pois, exigente e terrivelmente duro. Donde se segue que a sua radicalidade nos desinstala de todas as seguranças humanas e insere-nos num contexto de vida que conduz ao Calvário. A ideia que os apóstolos tinham de Messias, mesmo depois de bastante tempo com Jesus, é ainda demasiado «politicizada» e de cariz mais social que religiosa. Mas a verdade é que Ele é um Messias que, não obstante venha a ressuscitar ao terceiro dia, tem que passar pela ignomínia, pelo ódio dos cheges do povo e pelos príncipes dos sacerdotes e tem que se morto (em Jerusalém).

 

    Ora bem, depois de ser posta em realce essa dureza, facilmente chegamos à conclusão de que a finalidade e missão principal desse caminho, mais que libertar da escravidão dos romanos, é libertar da escravidão do mal, que é isso o que quer dizer levar a salvação aos homens. Nesse sentido, como diz o texto evangélico, essa missão não é exclusiva do grupo dos doze apóstolos, mas estende-se também aos outros discípulos de Jesus, representados, segundo o texto em exame, pelo grupo dos setenta e dois (alguns arredondam o número para setenta). Estes são os representantes, digamos assim, de todos os operários que o Senhor ressuscitado envia no tempo da Igreja. Através deles, a missão de Jesus chega a todas as fronteiras da história, até à plenitude da ceifa escatológica. 

 

    Nesta perspetiva, é evidente (como já ficou referido no comentário anterior) que ser discípulo de Jesus Cristo não é uma espécie de prenda e não é fonte de seguranças e privilégios. Jesus chama não para oferecer qualquer coisa, digamos assim, mas sim para enviar. Jesse aspeto, ser seu discípulo não é um privilégio, mas antes uma missão. Por outras palavras, ser apóstolo ou discípulo de Jesus não é uma dignidade ou honra, mas sim um serviço em prol do crescimento do Reino. Ou seja, Jesus manda os seus discípulos não para serem considerados grandes homens ou para exercerem o «poder» junto dos outros, mas pura e simplesmente para «anunciar» que o Reino de Deus está próximo. E, para exercer essa tarefa, por vezes, é preciso passar pela paixão e pelo martírio.

 

  • Missão: anunciar a esperança

   Anunciar o Reino de Deus não passa, em primeiro lugar, por propor realidades de tipo terreno ou político-social. Mas, em todo o caso, isso não quer dizer que não tenha que se  anunciar a esperança, que faz parte da experiência humana também da pessoa. Todavida, não obstante essa componente «humana», a verdade é que o homem, no seu íntimo, aspira à paz, à solidariedade, à justiça, à igualdade. E, no entanto, por outro lado, constata-se que o que se vê é que o homem faz a guerra, luta pelos seus próprios interesses, comete atos de injustiça e produz estruturas opressivas. Mas, repito, apesar de tudo isso, no fundo, o homem continua a acalentar esses ideais, com a esperança de que um dia cheguem a realizar-se como deve ser. 

 

    Em linguagem cristã, diz-se que o homem, na profundidade do seu ser, anda numa procura constante de Deus, embora, por vezes, O ignore e, por vezes, O combata também. O homem quer a vida a todos os níveis, em plenitude, embora se veja a braços com a doença, o sofrimento e a morte. Então, o discípulo de Jesus é aquele que, sem garantias humanas de qualquer espécie, anuncia que as contradições mais amargas da existência serão um dia resolvidas e que as aspirações mais profundas do homem serão realizadas «pela intervenção gratuita de Deus», mesmo que não saiba dizer como. 

 

    Esta contradição entre o homem que aspira para o infinito e cai no abismo mais abjeto, é algo que tem que se dizer algo de impossível Mas o que ao homem é impossível, a Deus é possível. Ou seja, a salvação que conta será possível. Mas é uma salvação que não será realizada em conformidade com critérios humanos nem de repente. O mal não é vencido imediatamente como que por um golpe de varinha mágica, não é combatido com armas poderosas, como julgavam os judeus e como julgam ainda muitos dos que põem na força das armas e dos exércitos toda a sua confiança.

 

  • A vitória passa pela derrota/luta

    Então, perante esse sentimento de contrariedade, o mensageiro da salvação é apertado entre as forças do mal. É como «um cordeiro no meio de lobos». A vitória que conta, a vitória definitiva, passa, tantas vezes, por derrotas contingentes. Mas disso esquece-se facilmente o cristão e também o missionário no sentido estrito da palavra. Mas temos que recordá-lo sempre, sob pena de não nos compreendermos a nós próprios. 

 

    Assim, no que nos diz respeito, não há missão sem perseguição, sem sofrimento, sem cruz. Sabia-o perfeitamente S. Paulo e tiveram que o aprender à sua própria custa todos os que quiseram um dia dedicar a vida a esta tarefa. Para o cristão, a certeza da ressurreição está no facto de ele estar crucificado na prova e na contestação. Nesse sentido, não se pode queixar, porque ele é realmente objeto de luta, contestação e perseguição. Aliás, ele deve saber que não tem melhor sorte que o Mestre, pois ninguém pode julgar que pode ser mais que o Mestre. Por seu lado, acrescente-se sem margem para dúvidas que os perseguidores, ao fim e ao cabo, correm o risco dum insucesso escatológico, pois a salvação por que nós esperamos não é precisamente o que estão a combater. A salvação, sim, é que será de signo definitivo e escatológico.

 

  • Sinais do mundo novo

    Os discípulos opõem a lógica de Deus à lógica do mundo velho. Num «mundo de lobos», dominado pela agressividade e pelo ódio, a presença deles representa uma condenação radical da violência bruta. Num mundo em que o homem é identificado com «o dinheiro que possui e com os vestidos que endossa», os cristãos devem ser os que se apresentam vestidos de pobreza, sem carteiras e bagagens, contentes da hospitalidade de que são objecto. 

 

    A proximidade do Reino dispensa os cristãos de se preocuparem demasiado e muito menos em exclusivo com os afãs terrenos. Isso não significa que se desinteressem da humanização e do progresso do mundo (também essa tarefa lhes diz respeito). Mas o facto é que, para além disso, devem apontar numa outra direcção, para outros valores e para uma outra realidade. 

 

    O texto evangélico diz-nos claramente quais são os sinais que os discípulos de Jesus hão-de levar ao mundo: a bondade, a pobreza ou desapego dos bens materiais, o ser construtor de paz e harmonia, o interesse pelos necessitados, o anúncio do Reino de Deus, a persistência perante os fracassos, porque sabem (e manifestam-no) que o Reino não se constrói num dia.

 

  • Fidelidade a Jesus é essencial

    A humanidade está dividida em vários blocos (talvez lhes possamos chamar ideologias) que possuem uma visão própria da história, possuindo meios extraordinariamente eficazes para levar a todos a sua mensagem. A Igreja tem que apresentar a sua mensagem com meios pobres (até porque, curiosamente, se o faz dando a impressão de poderio, não é aceite pelo mundo moderno). A mensagem da Igreja é sobretudo de carácter religioso e tem que lutar contra uma mentalidade que julga o recurso a Deus como uma alienação. Na melhor das hipóteses, o homem moderno aceita a Igreja como um ideal moral de fraternidade universal tendente ao estabelecimento dum mundo mais justo e pacífico e nunca aceita que ela se faça «respeitar» pela força. 

 

    Esta situação pode causar dúvidas e embaraço em muitos cristãos, mas estes devem saber também que o cristianismo não é apenas uma «ideologia» (mesmo que seja a da fraternidade universal), mas a confissão de que a salvação do homem não se pode atingir senão por intermédio de Jesus Cristo.