Temas de fundo |
1ª leitura (Gn 3,9-15.20): O Senhor Deus chamou pelo homem e disse-lhe: «Onde estás?». Ele respondeu: «Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me, porque estou nu». Deus perguntou: «Quem te disse que estavas nu? Porventura comeste do fruto do qual te proibi de comer?». O homem respondeu: «Foi a mulher que puseste ao meu lado que me deu o fruto e eu comi!». O Senhor Deus então perguntou à mulher: «Porque é que fizeste isso?». A mulher respondeu: «A serpente enganou-me e eu comi». Então, o Senhor Deus disse à serpente: «Só tu, entre todos os animais domésticos e selvagens, serás punida por teres feito isto: a partir de agora, rastejarás sobre o teu ventre e alimentar-te-ás de terra todos os dias da tua vida. Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás morder-lhe no calcanhar». Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes.
* Porei inimizade entre ti e a mulher. Ao ler esta leitura, que não deve ser levada à letra, tem de se ter algum cuidado, para não correr o risco de tomar em consideração apenas uma parte do «problema». Por outras palavras, não basta limitar-se a pensar e defender que à desobediência dos primeiros pais corresponde um castigo adequado. Ora bem, que a desobediência tenha consequências é uma constatação. Isto não se pode negar, mas é uma visão incompleta, pois a mensagem mais importante reside precisamente no facto de que, para lá da desobediência, há uma solução para a situação criada pela atitude de Adão e Eva: uma outra Mulher (a nova Eva) e o seu descendente são apresentados como vencedores do Mal, este simbolizado pela serpente. Eu não vou entrar na discussão de estudos exegéticos sobre este texto, que, aliás, não é esse o objetivo destas linhas. Todavia, o certo é que este trecho só pode ser interpretado em plenitude à luz de outros textos posteriores, em especial o texto de Is 7,14, que fala duma figura especial, de nome Emanuel, «Deus-connosco». No contexto da festa deste dia - a Imaculada Conceição - para nós é fácil identificar essa mulher com Maria, a Mãe de Jesus, o Messias prometido. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 2ª leitura (Ef 1,3-6.11-12): Demos graças a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo! Em união com Cristo, Ele abençoou-nos do alto dos céus com toda a espécie de bênçãos espirituais. Ele escolheu-nos em Jesus Cristo, mesmo antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele. Pelo seu amor, Ele predestinou-nos para sermos seus filhos por meio de Jesus Cristo, de acordo com o beneplácito da sua vontade. Louvemos a Deus pela sua graça gloriosa, que gratuitamente derramou sobre nós, no seu Filho bem amado... * Predestinou-nos para sermos seus filhos. Este trecho, tirado da introdução à Carta de S. Paulo aos Efésios, deixa bem claro o grandioso desígnio que Deus-Pai nos preparou desde toda a eternidade; ou seja, fazer de nós seus «filhos adoptivos» em Jesus Cristo. Nós, tantas vezes, passamos de tal maneira ao largo deste facto que nem nos damos conta de que - digamo-lo sem meias palavras - por Cristo passámos a fazer parte da família de Deus. É certo que Maria de Nazaré joga um papel único neste desígnio de salvação, porque sem o seu consentimento a história da salvação teria tomado outro rumo, mas isso não quer dizer que, ao sublinhar o papel de Maria, se esteja a subestimar o papel essencial de Jesus. É Ele o verdadeiro protagonista (não Maria) dessa história. Maria tem, no entanto e em todo o caso, um papel e um ação «insubstituíveis». É por isso que faz todo o sentido tributar a Maria uma honra especial com uma solenidade do género. É que, de facto, é precisamente através dela que nos vem Aquele que é a imagem visível do Deus invisível. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Lc 1,26-38): Ao sexto mês (da gravidez de Isabel), Deus enviou o anjo Gabriel a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, com uma mensagem a uma virgem desposada com um homem chamado José, que era descendente da casa de David. O nome da virgem era Maria. Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo». Ao ouvir estas palavras, ela ficou perturbada e inquiria dentro de si o que significaria tal saudação. Disse-lhe o anjo: «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus. Vais conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus dar-lhe-á o trono de seu pai David. Reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim». Maria então disse ao anjo: «Como será isso, se eu não conheço homem?». O anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus. Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice. Embora a considerassem estéril, está já no sexto mês, porque a Deus nada é impossível». Maria disse então: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra». E o anjo deixou-a. * Vais conceber e dar à luz Jesus. Este trecho de Lucas é também conhecido como a «Anunciação do Anjo a Maria». Poder-se-ia dizer que, de alguma forma, ele é como que o reverso da medalha relativamente à primeira leitura. Eva dialoga com a «serpente», que simboliza o Mal, ao passo que Maria, a nova Eva, dialoga com o Anjo Gabriel, para procurar compreender a vontade de Deus a seu respeito. Ao contrário de Eva, as palavras de Maria não são de desculpa, mas limitam-se a um pedido de esclarecimento. E, com efeito, logo depois de compreender o sentido da proposta que Deus lhe faz por meio do Anjo, Maria aceita a missão que se segue, embora não desconhecendo as dificuldades que isso acarreta. Ela, com certas dúvidas pelo meio, dá-se conta da desproporção entre as suas forças limitadas (pois não passa de criatura) e a obra transcendente que se vai operar no seu seio e no seu coração. E assim fica patente que a grande história que está para acontecer é obra de Deus, embora suponha e exija a aceitação por parte de Maria. Maria possibilitou, por assim dizer, que a «graça» invadisse o mundo, a fim de dar início àquela nova humanidade de que,,segundo a ótica cristã, ela é o mais perfeito e belo exemplar. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Porei inimizade entre ti e a mulher.
* Deus escolheu-nos em Cristo ainda antes da criação do mundo.
* Eu te saúdo, ó cheia de graça... Eis a serva do Senhor. Faça-se segundo a tua palavra. |
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Faça-se em mim segundo a tua palavra. |
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O sentido duma solenidade
Segundo os dados que pude apurar, a celebração da solenidade litúrgica da Imaculada Conceição de Maria teve origem no século VIII, no Oriente. Celebrava-se nove meses antes da festa da Natividade de Maria. Com efeito, como se sabe, o nascimento de Maria celebra-se a 8 de Setembro. Sto. André de Creta (740), numa oração litúrgica composta para essa solenidade, exprime-se nestes termos: «Nós celebramos hoje a tua conceição, ó pia Ana (segundo a tradição, os pais de Maria foram Ana e Joaquim, cuja festa se celebra a 26 de Julho), porque, livre dos laços da esterilidade, concebeste aquela que levou em si Aquele que nenhum lugar é capaz de conter».
O alcance desta oração consiste sobretudo em fazer lembrança do início da existência daquela que, sendo destinada para a maternidade divina, foi saudada pelos Padres (escritores eclesiásticos) do Oriente como a única toda santa, a única pura, a única imaculada (ou outras expressões semelhantes) em que está contido, de forma cada vez mais clara, o privilégio da Imaculada Conceição de Maria. De resto, já Sto. Efrém, no século IV, dirigira a Jesus e a Maria, em nome da comunidade Nisbi, estas palavras bastante explícitas: «Na verdade, Tu e a tua mãe sois os únicos que em tudo sois totalmente belos. Não há, de facto, em Ti, ó Senhor, mancha alguma, nem na tua mãe qualquer contaminação». É certo que Sto. Efrém não chega ainda a verbalizar a ideia com o termo de Imaculada Conceição, mas também seria demasiado exigir isso na altura em que este santo viveu.
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Desenvolvimentos posteriores
No Ocidente (tradição latina), mais concretamente, na Inglaterra e na Normandia, celebrava-se a solenidade da Conceição já no século XI no dia 8 de Dezembro. Não tardou muito a estendender-se de seguida ao continente europeu. Mas é Sto. Anselmo que verbaliza, por assim dizer, o conceito de «imaculada conceição» como preservação do pecado. Com o decorrer dos tempos, o magistério foi esclarecendo pouco a pouco a questão, até se chegar a 1439, altura em que o Concílio de Basileia considerou este mistério como uma verdade de fé. No entanto, só em 1854 é que Pio XI a proclamou como dogma de fé.
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A raiva infernal esmagada
Deus quis associar Maria à salvação da humanidade, porque quis que o Salvador fosse «filho do homem» (pessoa humana). Por isso, é aplicado também a Maria, em plenitude de significado, a realidade de ela ser também a «mãe de todos os viventes». Isso mesmo está implícito no contexto do que foi dito ao tentador: «Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. E esta esmagar-te-á a cabeça» (Gn 3,15). O descendente por excelência da mulher, na interpretação que em geral é dada a este texto, é Cristo que, com a sua vida, morte e ressurreição, esmagou a cabeça da serpente, saindo vencedor sobre a própria morte. Nessa perspetiva, Maria, mãe de Jesus, é reconhecida como a «nova Eva, mãe de todos os viventes», na medida em que ela acolhe no seu seio Aquele que é o novo Adão pelo qual veio a justificação que dá a vida (cf. Rm 5,18; 1ª leitura).
Penso que a celebração da Solenidade da Imaculada pode (e deve) assinalar para o mundo católico um passo avante no movimento de aprofundamento e purificação doutrinal, de modo que a devoção a Maria seja cada vez mais aquilo que deve ser: uma especial devoção a Maria, exatamente na medida em que ela é a mãe daquele que é o único salvador e redentor, Jesus Cristo. A importância do papel de Maria na chamada economia da salvação mede-se precisamente por ela ser a mãe do Salvador. Mas, de maneira nenhuma, se pode concordar com que ela se sobreponha ao próprio Salvador (como pode eventualmente acontecer em certos casos em que a ignorância religiosa é um facto).
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A posição de João Paulo II
Há um axioma dos escritores cristãos primitivos que diz que «sobre Maria nunca se diz o bastante» («De Maria numquam satis»). Bom, sem querer pôr em causa este facto, há, no entanto, que entender bem esta frase, dentro de proporções doutrinalmente razoáveis. Infelizmente, interpretações erróneas podem levar a exageros. Há que enaltecer Maria, como é evidente, mas nunca para além do que é devido a uma criatura, como de facto ela é. Por isso mesmo, o seu papel na «história da salvação» tem que estar sempre subordinado ao do seu filho Jesus Cristo. Por mais que se diga, ela não deixa de ser criatura.
Penso, pois, que a «doutrina» sobre ela nunca deve chegar ao exagero de dizer que é «única» entre todos os homens no sentido rigoroso do termo! Em todo o rigor, como se costuma dizer, todos somos únicos e, por isso, dizer que se é único, afinal de contas, não quer dizer muito. Embora sendo única, Maria é total e profundamente humana. Ou seja, também ela pertence ao género humano e, por isso, repito o que está escrito em cima: por mais que a louvemos, nunca deixará de ser criatura. Eu estou convencido que lhe desagradaria se alguém a considerasse como uma espécie de semi-deusa, que o não é. E, neste ponto, a nível do povo cristão e particularmente do povo católico, talvez haja ainda muitas «práticas» a corrigir e a purificar! De resto, é por aí que «pegam» os que ainda não ultrapassaram a fase da crítica pouco - ou nada - construtiva
Digo mais: é precisamente por ela ser também uma criatura que pode ser proposta como modelo no nosso caminho, convencendo-nos assim que é possível voltar a adquirir a «imagem e semelhança de Deus». E, a esse propósito, na já longínqua vigília de 8 de Dezembro de 1983, o então papa João Paulo II, durante a audiência geral em Roma, apresentou a Imaculada como imitável precisamente nestes termos: «A perfeição concedida a Maria não deve causar em nós a impressão de que a sua vida na terra tenha sido uma espécie de vida celestial, muito distante da nossa. Com efeito, Maria teve uma existência semelhante à nossa. Ela conheceu as dificuldades quotidianas e as provas da vida humana, viveu na obscuridade que comporta a fé...». E, mais adiante na sua intervenção, João Paulo II diz: «Podemos imaginar o que terá sofrido com o drama da Paixão do Filho. Seria um erro pensar que a vida daquela que era cheia de graça tenha sido uma vida fácil e cómoda. Maria partilhou tudo o que pertence à condição terrena, com o que essa implica de exigente e oneroso».
«Ocorre observar, de modo particular, que Maria foi criada imaculada com o fim de melhor poder agir em nosso favor. A plenitude da graça permitiu-lhe cumprir perfeitamente a sua missão de colaboradora na obra da salvação, dando o máximo valor à sua colaboração no sofrimento. Quando Maria apresentou ao Pai o Filho pregado na cruz, a sua oferta dolorosa foi inteiramente pura».
«E agora a Virgem imaculada, também graças à pureza do seu coração, ajuda-nos a tender para a perfeição a que ela chegou. É para os pecadores, ou seja, para nós, que recebeu uma graça excecional. Na sua qualidade de mãe, ela procura fazer participar da vida do Filho, de todos os modos, os seus filhos terrestres, a favor dos quais foi pessoalmente enriquecida. Maria intercede junto do seu Filho para nos obter misericórdia e perdão, inclina-se invisivelmente para todos os que estão em angústia espiritual, para os socorrer e para os conduzir à reconciliação. O privilégio único da sua Imaculada Conceição põe-na ao serviço de todos e constitui uma alegria para quantos a consideram como mãe».
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A garantia da derrota do mal
Ao lado do novo verdadeiro Adão, foi criada a nova verdadeira Eva: Maria faz parte do mistério de Deus criador e pai. Onde o pecado abundou, a graça superabundou (cf. Rm 5,20). A Imaculada é o «sinal retroativo», digamos assim, de que, com a ressurreição de Cristo, o mal já está vencido na raiz: se houve uma criatura que pôde ser cheia de graça deste o primeiro instante da sua existência - e essa criatura foi Maria -, então não custa admitir que a graça de Deus possa ser e seja derramada sobre as outras pessoas. Maria, livre do pecado «original», é a garantia de que no mundo o bem, apesar das aparências, afinal, é mais forte e mais «contagiante» do que o mal. Com ela, a primeira redimida, tem início uma história de graça «contagiante».
O autor do trecho do Génesis (1ª leitura) parte duma premissa que hoje qualquer um de nós pode constatar: o mal existe no mundo. Para o explicar, esse autor recorre a uma história (a da serpente), que poderá parecer a uma mentalidade que se orgulha de ser científica uma «história da carochinha». Na minha maneira de ver, não é assim tão difícil comprender que se trata de uma «história», cua principal finalidade é passar uma mensagem. Pretender que o autor do livro do Génesis nos desse uma explicação científica seria uma pretensão realmente inaceitável. A intenção do autor não foi apresentar ou propor uma teoria científica. O que, de resto, é perfeitamente compreensível, mesmo nos dias que correm, porque as «histórias da carochinha» continuam a existir e têm a sua validade, na medida em que delas se souber tirar uma «lição moral». Só nesse sentido é que se está a fazer uma interpretação correta das histórias para crianças (e não só!). A intenção do autor do Génesis era constatar o mal e levar as pessoas a que se afastassem dele. E, nesse aspeto, essa história conserva toda a sua originalidade e atualidade.
Mas o autor do texto em questão não se contenta apenas com isso. Ele não se limita a constatar a existência do mal. O que ele deixa muito claramente expresso é que é possível vencer o mal. E é nesse contexto que se insere o texto que a 1ª leitura nos oferece no dia de hoje. Ora bem, para vencer o mal definitivamente, têm importância fundamental um Homem e uma Mulher, apresentados pela mesma leitura...
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Um sinal dos tempos
O capítulo terceiro do Génesis, cuja redação, segundo os especialistas, possivelmente tem de se datar do tempo do exílio na Babilónia, no século IV a.C., dá a impressão de descrever a convicção que corria em Israel de que a condição humana (de sofrimento e de morte) fosse uma participação na punição merecida pela primeira transgressão. Mas será que se pode tirar essa conclusão sem mais nem menos? Seja como for, o texto não se fecha na punição, mas acima de tudo centra-se na promessa de salvação. Não é de estranhar que, na data em que é escrito, o texto tenha em mente precisamente a mãe do Messias esperado (embora sem lhe conhecer o nome), como, de resto, é convicção da tradição cristã.
A celebração da Imaculada Conceição é, pois, um sinal dos tempos novos. Este tema é central no período do Advento, pois nos prepara para reviver o «mistério da Redenção», o tempo novo em que irrompe a graça de modo superabundante. Tempo novo que se exterioriza na congregação do novo povo de Deus, disponível para pôr em prática o seu projeto primitivo de salvação. Ela, Maria, é, por assim dizer, o «paradigma» da criatura que está sempre disponível para o projeto de Deus. E, por isso mesmo, é a criatura que mais perto está de se assemelhar à imagem de Deus.
Essa disponibilidade traduz-se no «sim» de Maria à proposta que lhe é feita de ser a mãe de Jesus. Pois bem, também o «sim» da Igreja deve ser uma aceitação da proposta para que aceite ser a portadora de Jesus ao mundo em todos os tempos e latitudes. E como o «sim» de Maria, que não foi apenas um ato pontual, mas o início duma série de «sins» que durou para toda a vida, assim também os «sins» que o novo povo de Deus deve dar têm que cobrir todo o arco da existência da humanidade.