XXII DOMINGO COMUM - C
1ª leitura (Zc 12,10-11; 13,1): Derramarei sobre os descendentes de David e sobre os outros povos de Jerusalém o espírito de misericórdia e o espírito da oração. Eles hão-de olhar para aquele que trespassaram e farão luto por ele, como aqueles que choram pelo seu único filho. Hão-de fazer um luto a sério, como os que perderam o seu primogénito. Nesse dia, o luto em Jerusalém será tão grande como o luto por Hadad-Rimon na planície de Meguido. Nesse dia, jorrará uma nascente para a casa de David e para os habitantes de Jerusalém, a fim de lavar o pecado a impureza. Derramarei sobre todos o espírito de misericórdia e oração. Não se sabe exatamente a quem se refere Zacarias quando fala de um justo e inocente que é «trespassado» e pelo qual se faz luto a sério. Também nada se sabe das circunstâncias dramáticas em que isso terá acontecido. Ou não será que esta dificuldade nos sugere para ver nas palavras de Zacarias algo mais do que a simples leitura material? À primeira vista, não parece nenhuma possibilidade descabida. Mas, mesmo assim, é mera especulação. É que, mesmo que se soubesse, continuaria de pé a questão de saber por que motivo a leitura é escolhida para este domingo. De qualquer forma, a escolha óbvia parece-me dever-se ao facto de este trecho ter a ver com o texto evangélico. Sendo assim, há o propósito de associar, digamos, a profecia de Zacarias a Cristo trespassado na cruz pela lança dum soldado. Agora, uma outra coisa é certa: a leitura de Zacarias associa também a esta figura do justo trespassado a capacidade de ele ser como que uma nascente para Israel e para os habitantes de Jerusalém. Então, graças ao seu sofrimento, as pessoas receberem o espírito de graça e de oração. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTE, VEJA EM BAIXO. 2ª leitura (Gl 3,26-29): É pela fé que todos sois filhos de Deus em união com Cristo Jesus. Vós fostes batizados pela união com Cristo e agora, pela fé, estais revestidos com a vida do próprio Cristo. Por isso, não há diferença entre judeu e gentio, entre escravo e livre, entre homem e mulher. Todos vós sois um só em união com Cristo Jesus. Se pertenceis a Cristo, então sois descendentes de Abraão e, assim, recebereis o que Deus prometeu. É pela fé e em união com Cristo que somos filhos de Deus. Esta leitura está inserida num contexto em que S. Paulo polemiza contra os chamados judaizantes, que defendem que a salvação das pessoas depende do facto de as elas aderirem às prescrições da Lei de Moisés. Ora, embora respeitando essa Lei (até porque assim Paulo o confessa por ser, de facto, um fervoroso judeu), o que ele pretende é acentuar que, na base da construção cristã, deve estar claramente Cristo. Sem esse princípio, poderá ser o que quisermos mas não construção cristã. E então, nesse aspeto, talvez tenhamos que nos questionar nos dias de hoje quanto àquilo que na nossa vida cristã tem mais importância. Ou seja, não será que, hoje, como nos primeiros tempos, «ligamos» demais a uma série de prescrições e devoções que, embora dignas de todo o respeito, não têm sentido se se prescinde de Cristo na atuação de todos os dias? Por isso, é justo repetir com Paulo que «é pela fé que todos somos filhos de Deus em união com Jesus Cristo». PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Lc 9,18-24): Um dia, quando Jesus estava sozinho em oração, os discípulos foram ter com Ele e Ele perguntou-lhes: «Quem dizem as multidões que Eu sou?». «Há quem diga que tu és João Baptista» - responderam eles - «outros dizem que és Elias, e outros ainda que és um dos profetas de antigamente que ressuscitou». Disse-lhes Ele: «E vós quem dizeis que Eu sou?». Pedro respondeu: «Tu és o Messias de Deus». Jesus deu-lhes ordens severas para não falarem disto a ninguém. E disse-lhes também: «O Filho do Homem tem que sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei. Será condenado à morte, mas, três dias depois, ressuscitará». Depois, disse a todos: «Se alguém quer ser meu discípulo, tem que se esquecer de si mesmo, tomar a sua cruz todos os dias e seguir-me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por causa de mim ganhá-la-á». Quem perder a sua vida por minha causa salvá-la-á. Quando Jesus pergunta aos seus discípulos o que se diz da sua pessoa, trata-se, de alguma forma, de uma pergunta retórica. A sua intenção é claramente fazer-lhes uma pergunta mais pessoal, mais importante e mais empenhativa: «E, para vós, quem sou Eu»? Ora, há entre estas duas perguntas uma diferença que acho essencial: o que os outros pensam de Jesus faz parte da história, digamos assim; não tem a ver com a minha vida senão indiretamente. De alguma forma, a Jesus não interessa saber o que os outros pensam e dizem dele. O que lhe interessa é o que eu penso e digo dele. Ora, saber o que eu (e não só os outros) penso de Jesus, isso corresponde a dizer o que é que Ele é para mim hoje. Por outras palavras, isso significa conhecê-lo pessoalmente, como amigo, não só como uma «matéria» de estudo e do passado. Esta forma de pensar muda totalmente a perspetiva e significa pô-lo acima de todos os problemas e de todas as preocupações. Isso quer dizer também que devo levar a sério a resposta e profissão de fé de Pedro: «Tu és o Messias de Deus». Ora, não é possível pronunciar essa frase com superficialidade. Dizer que Ele é o Messias e o Filho de Deus é algo que empenha toda a vida. E então, nesse caso, entende-se que fiquemos habilitados a sacrificar tudo o que é a nossa vida pela causa de Jesus. E, nessa perspetiva, então «perder» a vida por Ele é o mesmo que ganhá-la de verdade. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Derramarei sobre todos o espírito de misericórdia e de oração. * É pela fé que todos somos filhos de Deus em união com Cristo Jesus. * Quem perder a sua vida por minha causa salvá-la-á. |
E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU? |
Por motivos imprevistos, são propostos, neste lugar, os comentários - algo complicados, devo admitir - do Messale dell'Assemblea Cristiana, sendo a tradução e a adaptação da minha responsabilidade, bem como os subtítulos.
* A morte como via para a vida
Jesus Cristo tem uma identidade pessoal a salvar e a revelar e uma missão a cumprir. Ora, para revelar a sua identidade e para cumprir a sua missão, para salvar a verdade da sua vida, Ele está disposto a tudo, até a perder a sua vida física. A decisão «incondicional» e absoluta de ser Ele mesmo e levar a cabo a sua missão a «todo o custo» é o ato supremo de fidelidade (obediência) a Deus.
* Cumprimento da promessa
O perder a própria vida física (morrer) é o «sinal», a verificação, a «prova» absoluta da fidelidade à própria identidade e à missão recebida do Pai. É, por isso, o ato com o qual a vida é salva. Ora, qual é a identidade de Cristo? Ele é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Jesus salva-nos por aquilo que «é». Ele é a «reconciliação» entre o homem e Deus, a comunhão «perfeita» do homem com Deus. Mas é preciso acrescentar de imediato: Jesus salva-nos com o que «faz». E o que faz (a missão) depende da aceitação ou recusa da parte daqueles que O escutam.
Jesus provoca os apóstolos a dizerem o que pensam dele, da sua identidade e missão (Evangelho). Pedro responde por todos: «Tu és o Cristo de Deus!». Há divergência entre como os apóstolos entendem o conceito de Messias e o que Ele é de facto. (Os apóstolos) refletem a mentalidade corrente, de cariz político, ao contrário de Jesus. Eles entendem o Messias como poder, e não Jesus como amor. Se Deus é amor, abertura, comunhão, a Ele, que é Homem-Deus, não resta outra via senão o amor. Só um homem-amor pode ser a revelação de Deus-amor.
* A economia do amor de Deus
Em termos rigorosos, Jesus poderia ter reconduzido o homem a Deus, levar a cabo a obra de «pacificação» do homem com Deus e dos homens entre si, também através do poder usado por amor. Mas o Homem-Jesus opta por cumprir a sua missão mediante o amor «puro», ou seja, unicamente com o amor, com o apelo às consciências, com a doação, o serviço, a paciência, a doçura, os meios pobres. Porque´esta é a única via para a transformação dos corações.
* Amor fiel ao Pai e aos irmãos
Jesus jamais poderá aceitar ser o que os seus co-nacionais querem que ele seja. Ele será o que Pai quer que seja, a verdadeira imagem de Deus e a verdadeira imagem do homem, o verdadeiro rosto de Deus e o verdadeiro rosto do homem.
Jesus sabe que a fidelidade a esta decisão, para atuar o projeto do Pai, num mundo dominado pelo pecado, lhe causará muito sofrimento, a recusa por parte do poder (anciãos do povo, sumos-sacerdotes e escribas) e, por fim, uma morte violenta. Todavia, Ele aceita livremente esta consequência da sua decisão para não trair o amor fiel ao Pai e ao homem.
Pode-se imaginar o drama de consciência de Jesus: Ele encarrega-se de cumprir uma vocação messiânica, e tem intenção de a levar até ao fim com doçura e com meios pobres e, ao mesmo tempo, vê que não poderá levar a bom termo a sua obra porque virá a morte antes da sua realização. E então? Sem dúvida, Deus quer que seja para além da morte que Jesus cumpra a sua missão messiânica. Sem dúvida, Deus não o abandonará na sua morte. A morte violenta de Jesus tem duas faces: por um lado, revela o poder do pecado e, por outro, o poder do amor mais forte que a morte. Paradoxalmente, a morte violenta de Jesus, enquanto ato de amor absoluto, é, ao mesmo tempo, a revelação de Deus ao homem e do homem a si mesmo.
* Morte de Cristo - ressurreição do homem
Enquanto ato de amor absoluto, a morte de Cristo é a «ressurreição do homem», é a fonte da vida. Porque a vida alimenta as suas raízes no amor. Uma fonte a que acorre, consciente ou inconscientemente, a humanidade. Jesus é o homem totalmente aberto, no qual as paredes da existência são totalmente abatidas, de modo que Ele é integralmente «passagem» (Páscoa)... O futuro do homem depende da cruz, a redenção do homem é a cruz. E o homem não se atingirá verdadeiramente a si mesmo de outra maneira; a não ser permitindo o derrube das paredes da sua própria existência, voltando o olhar para o «trespassado» (1ª leitura) e seguindo Aquele que, em vestes de trespassado, de homem de lado aberto, abriu a via do futuro (J. Ratzinger).
* Perseguição, distintivo do cristão
É um facto facilmente constatável que o Povo de Deus experimentou, durante toda a sua história, a violenta oposição e perseguição dos povos vizinhos. De resto, não era por ser povo eleito que se poderia achar com direito a outro tipo de tratamento. O mistério da perseguição, se bem que ligado ao problema do sofrimento, é distinto deste. Enquanto o sofrimento é próprio de toda a gente, a perseguição (que naturalmente implica, também ela, sofrimento) diz respeito apenas aos justos. Precisamente na medida em que são justos e, pela sua vida e atitude, representam uma acusação contra aqueles que não atuam em conformidade com o que os justos transmitem sobre Jesus.
No que se refere ao AT, a perseguição atinge especialmente os profetas, por causa da sua dedicação e amor a Javé, como consequência da fidelidade e rigor que devem à Palavra. O profeta Jeremias (que fornece abundante material para a reflexão de hoje) ocupa entre os perseguidos um lugar de destaque. A sua vida é a demonstração cabal da relação estreita entre perseguição e missão profética.
Ora bem, da mesma forma, a perseguição, bem como o sofrimento que dela deriva, será um distintivo do cristão realmente incorporado na dinâmica daquele «que fala em nome de Deus». Todo o cristão deve ter a noção clara da obrigação que lhe incumbe de falar em nome de Deus. Daí ter que se afirmar que todo o cristão deve ser profeta. E é certo e sabido que quem está de forma sincera comprometido na defesa dos interesses dos mais necessitados, bem como na difusão dos valores evangélicos, será objeto de oposição e, por vezes, de perseguição, «porque, assim como perseguiram o Mestre, assim também hão-de perseguir os seus discípulos» (cf. Jo 15, 20).
* Figura profética: o Servo de Javé
Jesus, nesse aspeto, não foi exceção. Melhor dizendo, Ele é que é o paradigma do Justo que sofre por defender a justiça. Por isso se lhe aplica plenamente o título de «Servo de Javé». O Servo sofredor é tal na precisa medida em que cumpre os planos de Deus. Com efeito, como os planos de Deus são diferentes dos planos dos homens, isso causa «atrito» e, por isso, pode levar à perseguição. E os sofrimentos que dela derivam são uma situação «normal» em que se encontram envolvidos tanto os profetas como quem quer que procure fazer a vontade de Deus. Por isso, todo o profeta (e o cristão deve ser um profeta, ou seja, alguém que fala e, com a vida, é testemunha duma outra realidade em nome de Deus) tem a pagar como tributo à sua condição de testemunha de Deus a agonia duma vida cheia de contrariedades e perseguições. O drama do justo perseguido é descrito pelo profeta Isaías (Is 42,1-7; 49,1-6; 50,4-9; 52,13–53,12), e é também o conteúdo do livro da Sabedoria, segundo o qual o justo se torna insuportável para o ímpio só em vê-lo (cf. Sb 2,12-14).
Ao condenar Jesus ao supremo suplício da cruz, os judeus continuam a injustiça dos seus antepassados que, perseguindo os profetas e Jesus, se opõem ao plano de Deus. Mas, no fim, os cálculos do homem pecador revelam-se sem perspetiva. Os «príncipes deste mundo», ao crucificarem o «Senhor da glória», na realidade, tornam-se instrumentos da sabedoria divina (cf. 1Cor 2,8), porque a morte de Cristo é salvação para o mundo e glória de Deus, enquanto a fraqueza do mundo é a fortaleza de Deus.
* Perseguição é bem-aventurança
Nesse aspeto, segundo os ensinamentos de Jesus, a perseguição é inclusivamente tema, ou melhor, objeto das bem-aventuranças: «Felizes sereis quando vos insultarem e vos perseguirem...» (cf. Mt 5,11). A perseguição, como disse acima, é inevitável. É o próprio Jesus que o diz: «O servo não é maior que o seu senhor. Se me perseguiram a Mim, também vos hão-de perseguir a vós». Empenhar-se, pois, em viver segundo os caminhos do Senhor implica encontrar no próprio caminho uma série de dificuldades e problemas sempre novos e cada vez maiores. Num mundo dominado pelo egoísmo e pela procura do próprio interesse, quem prega o amor, a pobreza, o desapego e o perdão, será perseguido.
Todavia, quem é perseguido sabe que os perseguidores só têm o poder de matar o corpo, mas não têm o poder de matar a alma. Por isso mesmo, o cristão até é capaz de atingir um momento em que experimenta a capacidade de suportar a perseguição com alegria. Exemplo disso são os apóstolos, após o Pentecostes: «Eles saíram do Sinédrio contentes por terem sido ultrajados por amor do nome de Jesus» (cf. Act 5,41). S. Paulo diz o mesmo de forma bem clara na sua primeira Carta aos Coríntios: «Estou cheio de alegria em cada tribulação» (1Cor 7,4).
* Perseguição não é vitimismo
Até à realização do II Concílio do Vaticano, prevaleceu uma mentalidade bastante fechada a nível de Igreja em relação ao mundo. Aprendia-se que era necessário «odiar», desprezar e fugir do mundo. E muitos cristãos tomavam isso rigorosamente à letra (pelo menos no plano teórico e doutrinal), embora soubessem, ou pelo menos intuíssem, de alguma forma, que, tendo sido criado por Deus, o mundo era uma coisa boa. Infelizmente, há que reconhecer que dessa mentalidade restam ainda muitos sinais.
Ora bem, a expressão «mundo», particularmente na linha de pensamento do evangelista João, indica não uma realidade física, mas sim uma realidade moral, na medida em que significa o que no mundo há de mal. E isso, como parece óbvio, existe também dentro da Igreja e dentro de cada um dos seus membros. Mas a Igreja, digamos assim, não está propriamente em contraposição ao Mundo, mas sim em contraposição ao Mal. A Igreja, sobretudo nos tempos que correm (é fácil constatá-lo), como regra, já não é considerada como castelo encantado que é preciso defender de todas as investidas do «mundo» (antes pelo contrário).
Nem é preciso que continue a alimentar uma semelhante pretensão. Ela é considerada, isso sim, como o fermento que quer permear com os valores evangélicos a grande massa da humanidade. Espero bem que já tenha sido ultrapassada a convicção - que parecia comum e indiscutível - de que toda a massa se deve tornar fermento. Não, a massa será sempre massa e o fermento será sempre apenas uma pequena parte inserida na massa. Isso talvez evite muitos mal-entendidos e muitas ilusões alimentadas de maneira incorreta. Uma atitude negativa neste campo conduz a um estado de vitimismo que não resolve os problemas e não é nada saudável.
Mais do que uma doutrina ou um conjunto de regras, que é preciso defender contra todas as investidas dos «inúmeros» inimigos que andam por aí à solta, o cristianismo deve ser um fermento que leveda a massa, deve ser uma vida vivida, deve ser uma mudança constante de mentalidade segundo as teses evangélicas: um fermento para o mundo (passe a expressão!) sem excluir, naturalmente e antes de mais, os cristãos.
* A ação não é guerra defensiva
Em todo o caso, por mais que se queira dourar a pílula, é um facto que «pregar» e pôr em prática as bem-aventuranças (Sermão da Montanha) a favor da evangelização e da autêntica promoção humana conduz necessariamente à perseguição. A oposição entre a sabedoria mundana e a sabedoria divina é inevitável. Disso, acho eu, não nos deveremos admirar.
Mas devo acrescentar que nem sempre as perseguições de que a Igreja é objeto são devidas à sua fidelidade ao Evangelho. Oxalá fosse só por isso! Espero que isto não cause estranheza, mas, por vezes, a Igreja é também perseguida e obstaculizada por não ser fiel ao Evangelho (também pode acontecer e, infelizmente, acontece) e por não corresponder aos anseios dos tempos. Por vezes, a atitude dos cristãos denota alguma preguiça, o que se traduz em falta de fé, coragem e abertura ao sopro do Espírito. É doloroso verificar como ideias originalmente cristãs, tais como, por exemplo, a liberdade, a igualdade, os direitos da pessoa, e mesmo a democracia, tenham encontrado, em certos momentos e em certos setores da Igreja, quer na cúpula quer na base, opositores inflexíveis contra algo que, afinal, são valores; resistências incompreensíveis e até mesmo uma luta declarada.
Os limites humanos da Igreja e dos cristãos são visíveis assim nas conivências (conscientes ou inconscientes) com situações de injustiça e de poder, de medo, de hesitações, de silêncios, de falta de coragem e confiança. É certo que, em mais que um caso, as perseguições contra a Igreja têm a sua origem numa conceção errada que os perseguidores têm de religião. Mas é verdade também que se trata de uma conceção que, com alguma frequência, é induzida, senão mesmo provocada, justamente pelos que deviam vivê-la com muito mais autenticidade. Enfim, por outras palavras, às vezes, a hostilidade contra a Igreja parece nascer dum «amor desiludido» para com ela...
* Não é só essa perseguição
Mas, isso não significa uma super-simplificação das coisas? Até a um certo ponto, é isso mesmo. Nem sempre a perseguição é o resultado de uma atitude pouco autêntica da Igreja. É que há, sem sombra de dúvida, também uma outra perseguição que podemos classificar de «satânica». O agente do Mal continua a ser um facto e o fermento negro do mundo continua a difundir-se e ramificar-se como um cancro que corrói o tecido da humanidade. É assim como que uma espécie de «corpo místico do mal», com o qual, apesar de todos os gestos de boa vontade, não se pode entrar em diálogo, porque se trata de um inimigo irredutível, do inimigo por excelência, que luta contra Cristo e contra o seu Reino. As suas vítimas preferidas são naturalmente aquelas que, na construção dum mundo mais humano, procuram seguiros passos traçados por Jesus e trilhados pelos seus discípulos.
Seria uma atitude de menoridade não estar consciente de que o Mal existe realmente e que se consubstancia em todas as tentativas, declaradas ou não, de combater, de todas as formas, mesmo ilegítimas, os valores veiculados pelos adoradores da divindade e, de modo especial, por aqueles que se dizem cristãos. Há claramente indivíduos e grupos apostados em combater e neutralizar os valores que, na ótica de Cristo, devem ser fermento da humanidade, a começar pelos valores da vida e da dignidade humana.