VIAGEM ORGANIZADA

 

1.VISÃO DE CONJUNTO

1.1.  Métodos de reconhecimento

    Para entrar em contacto com a Bíblia, podem-se seguir vários métodos. Para explicar, vou dar um exemplo. Quando vou visitar um país estrangeiro, tenho várias hipóteses.

   Posso partir ao acaso. Paro em alguns lugares sem qualquer tipo de ordem e de preparação. Claro que tenho a vantagem de fixar o ritmo da viagem. Paro onde quero e quando quero. Nesse caso, há a hipótese de fazer encontros interessantes. Mas também corro o risco de passar por cima do essencial. E isso é uma pena muito grande.

   Há uma outra maneira de visitar um país. Posso decidir, por exemplo, passar o tempo todo numa cidade ou numa região que me tenham indicado como importante. Desse modo, tenho a possibilidade de obter informações completas e um conhecimento sério e aprofundado dessa cidade ou região. Só que não posso dizer que conheço o país todo. Não posso dizer, por exemplo, que conheço bem Portugal só por ter estado 15 dias em Lisboa. O máximo que posso dizer é que conheço bem Lisboa. Mais nada.

   Posso ainda participar numa viagem organizada. Nesse caso, sou levado aos pontos essenciais para ficar com uma visão geral desse país. Uma viagem dessas vale pelo percurso escolhido e pelos guias que tiver a sorte de encontrar. Ficarei a saber o que de mais importante há, embora não se possa dizer que conheço o país a fundo. Em todo o caso, irei visitar lugares muito interessantes que, provavelmente, ficarei com vontade de visitar de novo.

   Pois bem! A visita guiada ao planeta Bíblia é a viagem organizada que eu proponho.

   É certo que posso abrir a Bíblia ao acaso e certamente farei descobertas interessantes. Mas é provável que desanime por causa das dificuldades que se me depararam pelo caminho.

   Também posso estudar a fundo este ou aquele livro. Mas, muito provavelmente, não é o método mais prático, porque encontro também dificuldades quase intransponíveis. Voltando ao exemplo, assim como não posso dizer que conheço Portugal só porque estive 15 dias em Lisboa, assim também não posso dizer que conheço a Bíblia só porque estudei a fundo um dos livros que a compõem.

 

1.2.  Excursão organizada

   A Bíblia não é apenas um livro, mas muitos livros juntos. É por isso que eu proponho só um dos métodos: o método da excursão organizada pelo país que é a Bíblia. Isto já lhe pode dar uma ideia geral do que pode esperar. E também do que não deve esperar. Se quiser, pois, seguir a nossa excursão organizada, entrará em contacto com os grandes momentos da história de Israel e com os livros mais importantes. Depois desta excursão geral, então já será capaz de organizar outros itinerários particulares.

 1.3.  Viagem de reconhecimento

   Para não perder mais tempo, comecemos então por dar uma espécie de visão de conjunto. É como se tomássemos um helicóptero e fôssemos fazer uma primeira viagem de reconhecimento. Ver-se-ão as coisas do alto. Nesta viagem, apenas veremos algumas montanhas e alguns vales.

   Durante muito tempo, a Bíblia esteve como que escondida à maioria da gente. Era reservada a alguns peritos. Infelizmente, ainda é um pouco assim. Mas também é verdade que, hoje em dia, a Bíblia desperta cada vez mais o interesse do povo. Sobretudo após o último Concílio ecuménico, que é conhecido por Vaticano II, hoje já há muita gente que descobriu essa porta que esteve fechada durante tempo demais. Tanto é assim que já há muitos grupos de cristãos que se reúnem para a estudar e para rezar.

  Imaginemos então que fazemos uma viagem de reconhecimento. As primeiras impressões podem traduzir-se desde logo em perguntas como estas: De onde vem a Bíblia? Quem é que a escreveu? Quando? Duma só vez ou de várias vezes? Como? Por que motivo é assim um livro tão importante? Será importante também para aqueles que não acreditam? À medida que formos prosseguindo a viagem, irão surgindo outras perguntas; sobretudo a partir do momento em que descermos do helicóptero para percorrer o terreno a pé.

 1.4.  Folheando a «brochura»

   Vamos então às primeiras informações. A Bíblia surge no meio dum povo do Oriente, que aparece com bastante frequência nas primeiras páginas dos jornais e nos noticiários da rádio e da televisão. Não pelos melhores motivos. Trata-se do povo de Israel. Pois bem. Este povo, por volta do ano 1000 antes da nossa era, começa a criar toda uma literatura que relata a sua história, as suas reflexões, a sua sabedoria, a sua oração, a sua maneira de olhar para as coisas. Toda esta literatura é inspirada pela sua fé num único Deus, que se lhe revela através de grandes chefes espirituais, como, por exemplo, Moisés e os profetas.

 1.4.a. Chamada de Abraão

   Mas a história deste povo começa muito antes de Moisés. Como sabemos hoje, este povo da Bíblia mora perto do Mediterrâneo. Mas, nas suas origens, era um povo nómada, que teve como antepassado Abraão, é natural da Mesopotâmia – mais concretamente a pequena cidade de Ur – no atual Iraque. Este grupo de pessoas, após a primeira paragem como peregrinos, começou por se designar por hebreus. E a razão é simples. É que Abraão, depois das suas viagens dum lado para o outro, fixou-se numa localidade que ficava aos pés do Monte Hebron. Mais tarde, ficam a ser conhecidos também por israelitas e por judeus. Mas explicarei os motivos destas designações depois. A terra onde acabam por se fixar chama-se Palestina por ser habitada por uns povos chamados filisteus.

     É com Abraão que tem início a história do povo da Bíblia. E é por causa disso que a Abraão se chama o «pai dos crentes». Na zona de Hebron, Abraão vai morar, com a sua família, num local chamado Caná. Isto acontece sensivelmente por volta do ano 1850 a.C. Aí nascem os seus filhos, os seus netos e bisnetos. A família vai-se multiplicando. Isaac é o filho herdeiro de Abraão e Jacob o seu neto.

 1.4.b.  Papel dos Patriarcas

   Abraão, Isaac e Jacob são chamados Patriarcas por serem, digamos assim, os pais fundadores do povo da Bíblia. Jacob, um dia, passa a chamar-se também Israel (cf. Gn 32,29). Donde o nome de israelitas com que os hebreus também são conhecidos.

   Muitos anos depois e devido a um grande período de seca, muitos dos hebreus emigram para o Egipto, onde há abundância de alimentos, sobretudo nas margens do Rio Nilo. Aí, por circunstâncias especiais, encontra-se já um dos filhos de Jacob, chamado José. Tinha chegado ao cargo de administrador supremo do rei ou faraó do Egipto. Após muitas peripécias, que não vou aqui narrar, também Jacob e toda a sua família se estabelecem no Egipto.

1.4.c. Experiência no Egito

   Mas, depois de muitos anos, os hebreus tornaram-se de tal maneira numerosos e influentes que os faraós do Egipto, temendo pela identidade do seu povo, começam a escravizá-los e até a dizimá-los. É nessas circunstâncias trágicas que surge um chefe, que é como que o fautor e organizador duma espécie de movimento de libertação. Esse chefe, Moisés, leva o povo a sair do Egipto. A libertação só termina quando esse povo, depois de 40 anos de travessia pelo deserto, regressa ao seu país de origem: Caná. A Moisés sucedem outros chefes, como Josué e os chamados Juízes. O último deles é Samuel.

 1.4.d.  Exigência de um rei

A determinada altura, julgando que assim se pode defender melhor, esse povo exige um rei; à semelhança dos povos vizinhos. O seu primeiro rei é Saul. O segundo, David, é considerado o mais importante que esse povo teve em toda a sua história. David vence os povos vizinhos, une o povo e aumenta a superfície do reino. Como capital, escolhe Jerusalém. A David sucede Salomão, por volta do ano 900 a.C. É no reinado de Salomão que surgem os primeiros escritos da Bíblia. Antes disso, as histórias do povo iam sendo transmitidas de boca em boca, de pais para filhos; como as nossas histórias de família.

 1.4.e. Lutas fratricidas

   Depois da morte de Salomão, começam as lutas políticas entre os pretendentes ao trono de Israel. Em consequência disso, não muitos anos depois, o país acaba por ser dividido em dois: o Reino do Norte (ou Israel propriamente dito), com a capital na Samaria; e o Reino do Sul (ou Reino de Judá), com a capital em Jerusalém.

   Mas também isso não vai durar para sempre. Os grandes impérios vizinhos não deixam o povo da Bíblia em paz. E assim, entre 724 e 721 a.C., a Assíria invade e toma o Reino do Norte. Uns 150 anos mais tarde, é a vez da Babilónia que vence a Assíria e toma também o Reino do Sul, pondo fim à sua existência. Os babilónios levam boa parte da população. É o tempo do exílio.

   Cinquenta anos depois, a Babilónia é, por sua vez, vencida pela Pérsia. É então que os israelitas podem voltar para a sua terra. Mas, a partir daí, são quase sempre dominados por povos estrangeiros. É, nesse período trágico, que surge a esperança dum novo David, do Messias, que salve o povo...

   Bom, para finalizar este ponto, deixo a seguinte informação complementar: os livros da Bíblia redigidos desde o tempo de Salomão até por volta do século II a.C., formam o chamado Antigo Testamento (AT), que é a parte da Bíblia que antecede a chegada de Jesus Cristo, a partir do qual a história toma outro rumo.

 1.5.   Necessidade de guia

   Para o estudo de qualquer matéria, é preciso sempre alguém que abra uma porta. Mas tem que ser a porta correta. Isto lembra-me o que aconteceu com Agostinho. Andando Agostinho a pensar seriamente em converter-se, após uma vida pouco recomendável, recebe do arcebispo de Milão, Sto. Ambrósio, o conselho de ler a Bíblia, a começar pelo livro de Isaías. Comentando, mais tarde, este facto, Agostinho escreve: «Creio que ele (Ambrósio) me aconselhou essa leitura por ser Isaías, de entre os autores do AT, aquele que mais claramente anuncia o Evangelho». Agostinho precisa de facto de quem lhe anuncie o Evangelho. Só que esse conselho de Ambrósio – bem-intencionado – produz um efeito contrário. Agostinho não entende nada e adia a leitura.

   Pois bem, o conselho de Ambrósio a Agostinho falha porque não tem em conta a situação concreta de Agostinho. É que Agostinho não sabe nada ou quase nada da Bíblia. O livro do profeta Isaías é muito claro para Ambrósio, que, por sinal, até é um estudioso da Bíblia. Mas Agostinho não o é. E aquilo que é claro para Ambrósio é obscuro para Agostinho. Não entendendo nada, Agostinho passa ao largo; fica em silêncio. Agostinho admira a ciência de Ambrósio, mas deixa o profeta Isaías para outra ocasião; ou seja, não o lê.

   Algo idêntico pode acontecer – e acontece – hoje também. Abre-se uma porta – ou seja, desperta-se o interessa pela leitura da Bíblia – mas as pessoas, ao tentar passar por essa porta, não entendem o que está lá escrito. É necessário então explicar-lhes tudo devagar, segundo a capacidade que têm de entender. Não se pode dizer logo tudo duma vez. Ninguém está em condições de entender logo tudo. A aprendizagem faz-se por etapas. É também assim a aprendizagem religiosa, a aprendizagem bíblica. Se, por vezes, as pessoas passam ao lado, é porque falha este aspeto importante.

 

 

 2.  A APRENDIZAGEM CUSTA

 2.1.  Dar tempo ao tempo

   Como qualquer outra matéria, também o estudo da Bíblia leva o seu tempo. E pode levar bastante, porque não é um livro assim tão pequeno como isso. De resto, à medida que a gente avança, vai descobrindo cada vez mais coisas. Já agora, uma observação a propósito: não tenhamos a pretensão de ficar a saber logo tudo sobre a Bíblia. Aliás, isso não seria apenas pretensão; seria também presunção! A aprendizagem, seja do que for, faz-se pouco a pouco. A aprendizagem faz-se por fases. Não nos devemos admirar se não conseguirmos descobrir logo tudo e ao mesmo tempo. A aprendizagem por fases é um fenómeno natural. Isso é verdade também no que se refere ao conhecimento da Bíblia.

 2.2.  Respeitar a linguagem

   Num livro, num romance, nem tudo pode ser dito ao mesmo tempo. A exposição do pensamento tem a sua ordem e a sua dinâmica. Os capítulos vêm uns atrás dos outros. É por isso que não se pode julgar um determinado livro só por uma página ou um capítulo. Se assim fosse, seria escusado que tivesse outros capítulos. A Bíblia, nesse aspeto, não é diferente de qualquer outro livro: não se pode, pois, ler como se fosse apenas um capítulo ou uma frase. Isso pode induzir em erro e forçar a Bíblia a dizer o que não está lá escrito.

2.3.  A pedagogia de Deus

    O estudo da Bíblia pode comparar-se à contemplação duma obra de arte: a gente para de frente, olha, depois vai um pouco atrás, para de novo, dá mais uma volta, olhando sempre para a mesma pintura. Aos poucos, vai descobrindo novos aspetos. É assim com a Bíblia. E é assim com qualquer outro assunto que nos interesse.

    Só que, com a Bíblia, é preciso muito mais do que isso. A Bíblia não é só uma obra de arte da literatura mundial. A Bíblia é mais qualquer coisa. É algo de vivo, de palpitante. Não é possível contemplá-la só de longe. É preciso mergulhar dentro para a apreciar. É preciso lê-la, saboreá-la, voltar a lê-la e voltar depois à mesma página, para controlar alguma coisa que nos escapou da primeira vez que se leu. Como que é preciso saborear o perfume e o gosto dos seus episódios, para compreender como é que Deus vai levando, pouco a pouco, a termo o seu plano de salvação. Ao que acabo de dizer pode chamar-se tecnicamente «pedagogia de Deus».

    O homem, por natureza, tem o seu ritmo próprio de apreensão das coisas e, por isso, há que respeitar esse ritmo. E Deus faz precisamente isso: respeita o ritmo do homem; o ritmo de cada homem. Imaginemos uma pessoa sedenta. Se quiser saciar-lhe a sede, tenho de calcular a sua capacidade de absorção de líquidos. Claro que isso depende de indivíduo para indivíduo. Agora, o que nunca me passaria pela cabeça era pôr à frente dessa pessoa, por exemplo, cem litros de água para os beber todos duma vez. Seria uma quantidade exagerada. Seria um absurdo. Mas o que já não é absurdo é que possa beber esses cem litros de água, por exemplo, sei lá, em cinquenta ou sessenta dias. Ou seja, tudo tem a sua medida. Assim, para beber da água da Bíblia, também há que dosear a quantidade de líquido que se toma.

2.4.  Repartir em pedaços

   Os entendidos têm obrigação de dar a Palavra de Deus ao povo de maneira que ele a entenda. Ora, se a Palavra de Deus continua a ser algo de estranho ao povo, de quem é a culpa? Os estudiosos da Bíblia – também conhecidos por exegetas – devem ter em conta essa circunstância. Talvez custe mais aos estudiosos aprender com a ignorância do povo do que ao contrário. Mas o que é facto é que, segundo a própria Bíblia, muitas vezes, Deus desfaz a sabedoria com a ignorância e a força com a fraqueza (cf. 1Cor 1,27-28).

   Salvo honrosas exceções, não me parece que, em geral, os estudiosos já tenham aprendido a distribuir a Palavra de Deus ao povo. Continuam, em vez disso, a utilizar uma linguagem complicada. E, por isso, o povo desinteressa-se do que lhe dizem. Os entendidos falam em altas teologias, partindo do suposto que todas as pessoas os entendem. Mas não é verdade.

2.5.  A Bíblia é vida

A Bíblia merece todos os estudos científicos. Mas a sua explicação não se pode reduzir a isso. É que a Bíblia, mais do que um tratado de ciência, é um romance de amor; é a história dum Deus que, pouco a pouco, através dos tempos e das pessoas, se vai revelando. Mas os romances de amor têm conteúdo e ação. Se não é isso o que acontece com as explicações dos entendidos, então há algo que não está a funcionar. A Palavra de Deus que não seja infalível, que não produza frutos, é palavra que não está a ser bem explicada.

 2.6.   «Atualizar» a Bíblia

    Já mais que uma vez ouvi o seguinte: tentei ler a Bíblia, mas desisti. É um livro confuso, aborrecido e incompreensível para mim, sobretudo o AT. Pois é! Quem não descobre a porta certa nunca chega a entrar em casa. Poucos conseguem acertar com essa porta. É certo que hoje já há mais gente com alguns conhecimentos da Bíblia. Mas as noções técnicas – e é isso que abunda – de pouco adiantam. Uma das queixas mais frequentes é a de que, dentro da Bíblia – e do AT em particular – não há nada ou quase nada que diga respeito à vida de todos os dias, com os seus problemas e as suas tensões.

   Muitos pensam que a Bíblica está irremediavelmente soterrada sob uma linguagem que já não se usa. E, em muitos casos, têm razão, porque as traduções que por aí andam, com frequência, são arrevesadas. Mas, neste capítulo, já alguns progressos foram feitos, sobretudo a partir do momento em que se começaram a fazer traduções interconfessionais e em língua corrente, a partir dos originais. Outros ainda queixam-se que a Bíblia fala de costumes, culturas e tradições que hoje em dia não interessam. E, assim, a própria Bíblia como tal passa a figurar apenas na prateleira dos objetos de decoração.

   Mas também é um facto que, de vez em quando, chegam aos ouvidos do grande público, quer na televisão e na rádio, quer nos jornais, alguns estudos avançados – e, por vezes, polémicos – sobre pesquisas históricas e literárias da Bíblia. E então as pessoas voltam a interessar-se. Só que não têm instrumentos de análise suficientes. Temas como o paraíso terrestre, o pecado original, Adão e Eva, anjos e demónios, criação, etc., começam a ser assuntos de conversa ordinária. Mas causam também não poucos problemas ao povo. É que o povo não está preparado para isso, porque os que o deviam ter informado não o fizeram convenientemente.

   A complicar ainda mais as coisas, aparece sempre alguém a dar uma interpretação de tal modo literal da Bíblia que a gente ou acaba por assumir uma atitude de desconfiança ou então assume uma atitude de medo pelos castigos que supostamente a Bíblia comina contra as pessoas. Mas nem a Bíblia é um manual de desgraças nem ela deixa de ser um livro escrito com palavras humanas. Ora, sendo a Bíblia um livro escrito com palavras humanas, é preciso interpretá-la com os mesmos instrumentos com que se interpreta qualquer outro livro.

    Por isso se pode concluir que ainda há muito a aprender sobre a leitura da Bíblia. A Bíblia não é ainda o livro de estudo que deveria ser. Uma leitura mais livre de preconceitos e de ideias fixas é um ótimo método para não fazer dela interpretações erróneas. Estas não têm nada a ver com o que está lá escrito.

    Seja como for, fizeram-se muitos progressos. Hoje, já não é só o cristão que lê a Bíblia. Ela é lida por todo o tipo de pessoas. A Bíblia é impressa por editores, cujo objetivo principal não é certamente a defesa dos princípios cristãos. Todos temos que reconhecer isto sem falsos pudores. O motivo por que a Bíblia é impressa ou por que é passada para a tela, com alguma frequência, é pura e simplesmente o motivo financeiro. E é um facto que a Bíblia está sempre entre os livros mais vendidos, embora isso nem sempre conste das estatísticas. Qual é o livro que tem mais de mil milhões de exemplares vendidos no mundo e que está traduzido em mais de mil línguas? Nesse sentido, a Bíblia deixou de ser um livro exclusivo da Igreja para se tornar num livro da humanidade. Há, pois, necessidade de promover a sua correta compreensão. E uma coisa é certa: quanto mais se conseguir entender o tipo de linguagem que utiliza, tanto mas correta será a interpretação daquilo que lá está escrito.


 

3. EMBRENHAR-SE NA FLORESTA

3.1.  Ignorância não é solução

   O estudo da Bíblia pode criar dificuldades. Mas pelo menos tem uma vantagem: desperta o interesse por ela. Promover, pois, o estudo da Bíblia é uma coisa importante. O estudo pode levantar problemas? Claro que pode. E é natural que levante. Mas isso não quer dizer que não contribua também para os resolver. É certo que, quanto mais se estuda a Bíblia – o que vale para qualquer livro – mais problemas vão surgindo. Mas não é motivo para deixar de fazer esse estudo.

    No caso da Bíblia, a solução aparentemente óbvia para evitar problemas seria manter o povo na ignorância. Só que a fuga nunca foi solução. A dor de barriga provocada por hortaliça não se cura com a simples proibição de comer hortaliça. A hortaliça é boa e, como regra, faz bem à saúde. O que acontece é que ela acaba por revelar uma doença de estômago que é preciso tratar. O problema não está, pois, na hortaliça, mas sim no estômago.

   O que eu gostaria de dizer, com esta comparação, é que, no que se refere à Bíblia, as dificuldades que vão surgindo são apenas o sinal de que há algo na vida das pessoas que não está a correr bem. O problema não está propriamente na Bíblia, mas na pouca capacidade que as pessoas têm de a assimilar como deve ser. As dificuldades são apenas um sintoma do mal que está por de trás.

   O povo tem dificuldades em entender a Bíblia? Claro que tem. Mas, de quem é a culpa? Será só do povo ou será também e sobretudo dos que têm obrigação de expor a Bíblia ao povo? Será que o povo precisa de ser atulhado de informações? As informações, como é óbvio, são necessárias, mas, se calhar, não é isso o mais importante. O importante não é tanto dar as respostas certas aos problemas que se levantam, quanto ajudar o povo a entender essas respostas e a aplicá-las à vida. O que interessa ao povo é realmente o que a Bíblia diz para a sua vida concreta do dia-a-dia. O importante é ensiná-lo a encontrar por si mesmo na Bíblia a resposta certa para os problemas com que se debate todos os dias.

3.2.  Tiro ao alvo

   Os estudiosos da Bíblia, às vezes, parecem-se com um atirador que se treinou durante muitos anos a atirar ao alvo. De tanto atirar, chegou mesmo à conclusão que bastava fixar num tripé a espingarda virada para o alvo. Feito isso, já nem sequer era preciso tirar a mira. Bastava colocar as balas na espingarda, manter a arma em perfeito funcionamento e carregar no gatilho. Só que, entretanto, o atirador esqueceu-se de que o alvo mudou de local. E continuou a atirar na mesma direção, sem compreender a razão por que todos diziam que já não acertava no alvo. Como é que podia ser? Podia ser, podia. Podia e pode. Ele é que continuava desatento ao facto de o alvo ter sido mudado.

   A primeira reação desse atirador foi verificar se havia munições na arma e se a arma stava a funcionar. Depois de examinar as munições e a arma, viu que tudo estava em ordem; tudo funcionava às mil maravilhas. Não havia, pois, nada a corrigir. Só depois de muito tempo é que levantou os olhos e percebeu o engano. O alvo tinha mudado de lugar. Teve então que desmontar a espingarda do tripé e apontá-la de novo, mas agora na direção certa. Só que, infelizmente, essa mudança ainda não foi feita senão por poucos atiradores.

   É isso mesmo que acontece com o modo de ler e interpretar a Bíblia. Foi montado todo um método de interpretação que se julgou perfeito. E, se calhar, durante algum tempo, as coisas até funcionaram. Depois de fixada a direção certa, os estudiosos preocuparam-se apenas com as verdades a serem transmitidas, sem perceber que, entretanto, o alvo tinha saído do lugar. Não se deram conta que se verificou uma mudança profunda na maneira de pensar e de viver dos homens. E os tiros deixaram de acertar no alvo. É isso mesmo. Há qualquer coisa que não funciona. Apesar de a crítica literária e a história da Bíblia estarem muito bem-feitas, não se está acertar no alvo. Ou seja, não se está a atingir o homem concreto na sua vida concreta.

 

 

4. VOO DE RECONHECIMENTO

4.1.  Detrás da paisagem

   Vamos agora fazer um voo de reconhecimento pela Bíblia. No caso, é uma espécie de resumo da história sagrada. Acho isso importante. Com muita frequência, as pessoas desconhecem o essencial. Para fazer o resumo dessa história, vamos partir do suposto que a Bíblia é uma espécie de romance do amor de Deus para com os homens.

   Deus dirige a história por dentro. Não é como o operário que opera uma máquina a partir do exterior, que mexe nos botões e mais nada. Deus dirige a história fazendo-se Ele mesmo parte dessa história. Mais: Deus adapta-se à maneira progressiva de as pessoas aprenderem. E então Ele respeita o ritmo de aprendizagem do homem.

    Pouco a pouco, Deus vai ensinando os caminhos que conduzem à felicidade. O homem pe com Deus continuamente. Mas Deus continua a chamar uma e outra vez, de todos as maneiras e feitios que o homem seja capaz de entender. E também através dos erros e calamidades naturais, e sobretudo sociais e políticas. Tudo serve a Deus para ir demonstrando ao povo que o que Ele quer é o bem do povo.

4.2.  Alguns dados do romance

   Fixemos algumas datas deste romance. Por exemplo, a data da origem do povo de Deus. Isso dá-se com o chamamento de Abraão. Terá sido por volta do ano 1850 a.C. «Deixa a tua terra – diz Deus a um semita originário de Ur – e vai para uma terra que Eu te vou indicar». E Abraão parte. Deus fala e Abraão escuta.

   a. Diálogo de amor

   O código da Lei que distinguirá esse povo de todos os outros ainda não existia. Só aparecerá muito mais tarde. Há, entre Deus e o seu amigo, um diálogo de amor, em que Deus empenha para sempre a sua fidelidade. Abraão faz o mesmo e é fiel a essa amizade, mesmo que isso lhe custe, como se costuma dizer, os olhos da cara.

   b. Chefe e legislador

   Cerca de 600 anos depois, aparece a figura de Moisés. Os descendentes de Abraão estavam escravos no Egipto. Mas Deus recorda-se da sua promessa. E, a uma dada altura, intervém. Servindo-se de Moisés, arranca o seu povo da servidão, para o conduzir para o seu serviço. Deus é sempre pai e conduz Israel pelo deserto, «como um homem conduz o seu filho». Guia-o de noite e de dia, ardendo de cólera quando o povo é rebelde. Às vezes, pune-o, mas é para o corrigir. E perdoa-lhe sempre. Deus está sempre disposto a recomeçar a sua obra de reeducação do povo. É uma constante da história do povo nascido do patriarca Abraão.

   c. Na Terra Prometida

   Cinquenta anos depois, ou seja, por volta do ano 1200 antes da nossa era, Israel entra, finalmente, em Caná, a terra que Deus lhe tinha prometido. Israel infiltra-se aos poucos entre as colinas de cidades fortificadas e vence algumas batalhas. Conquista a Terra Santa e faz a partilha do país. O período de instalação é muito longo. Com efeito, a instalação das doze tribos leva cerca de dois séculos. Ou seja, mais ou menos até ao ano 1000 a.C., altura em que é implantada a monarquia. Entretanto, até lá, a organização do povo é relativamente simples e precária, sendo a ordem social, política e jurídica assegurada pela autoridade de vários Juízes que dirimem as questões mais importantes.

   d. Auge da unidade

   Deus aceita que Israel peça um rei. O primeiro escolhido é Saul, mas as coisas não correm lá muito bem. Com David e com o seu filho Salomão, as coisas correm relativamente bem. Mas só até Salomão. Porque, logo a partir dele, o povo esquece-se mais uma vez do seu Deus e vai organizar a sua vida sozinho. Só quando o inimigo se aproveita da sua fraqueza para o oprimir é que grita por socorro. E então lá vem Deus – passe a expressão – para salvar o povo. Mas é apenas por uns instantes, porque o povo volta de novo a pecar e a desviar-se.

   É no tempo de Salomão que começa o período da literatura bíblica. Há de tudo na corte. Incluindo numerosos escribas encarregados de anotar a história do povo e tudo o que ia acontecendo; incluindo todas as coisas em que eles iam refletindo.

   e. O início do fim

   Mas é também o início do pior pecado: o povo julga-se de tal maneira independente que pensa que nem sequer de Deus precisa. O resultado não se faz esperar: em 953 a.C., dá-se a cisão. Logo depois da morte de Salomão, Israel fica dividido em dois: o Reino do Norte, também chamado Israel propriamente dito, com a capital na Samaria; e o Reino do Sul, com a capital em Jerusalém. Este era também conhecido por Reino de Judá, por ser governado pela tribo de Judá. A isso se deve também o facto de esse território ser conhecido por Judeia.

Mas nem isso leva muito tempo. Apenas 15 anos mais tarde, o Reino do Norte é atacado e desfeito. A sua capital, Samaria, é tomada pela Mesopotâmia ou Babilónia (que ficava no atual Iraque), cuja capital era Nínive. O exército do Reino do Norte é dizimado, muitos são passados a fio de espada e os elementos mais válidos são deportados para a Babilónia. O Reino do Sul ainda consegue resistir uns 136 anos. Mas em 587-586 a.C., dá-se a capitulação definitiva de Jerusalém. Também neste caso, o rei é deposto e a população mais válida é deportada para a Babilónia.

4.3.  Experiência do exílio

   O exílio demora cerca de 50 anos. É um dos períodos mais dolorosos da história de Israel. Mas é também um dos mais fecundos; pelo menos a nível de literatura bíblica. Deus manda ao seu povo uma série de profetas que lhe anunciam uma nova aliança e a vinda do Messias. No ano 538 a.C., dá-se o regresso do exílio. A Babilónia é vencida pela Pérsia. E o rei Ciro liberta o resto de Israel. Mas a reintegração na própria terra, depois desses anos, é difícil.

   Este é um período muito obscuro para Israel. Apesar de estar de volta ao seu país, não há rei, não há profetas, não há sequer chefes à altura. A única riqueza que resta ao povo é a Palavra de Deus, que os antepassados lhe tinham legado. O ano 63 a.C. marca a entrada em cena duma nova superpotência: Roma. E a experiência do povo de Israel continua a ser de exploração e de sofrimento. A única forma de os israelitas manterem a unidade e alguma esperança continua a ser a Palavra de Deus. E é sob o domínio da autoridade romana que, «quando a noite ia a meio, a Palavra todo-poderosa se lança do trono de Deus» e, criancinha nos braços da Virgem Maria, o Filho eterno de Deus aprende da nossa humanidade as palavras necessárias par orar a Deus!

 

 

5. SABER LER A BÍBLIA

5.1.  Bíblia: história de amor

   O assunto que gostaria de abordar agora pode resumir-se assim: «Não procure na Bíblia o que lá não pode encontrar». Explico-me. Se quiser encontrar na Bíblia a teoria científica do aparecimento do homem sobre a terra e há quantos milhões de anos, esqueça. Não encontra lá isso. Se quiser encontrar na Bíblia a confirmação da teoria de Galileu, não se mate a procurar, porque não está lá. Se procura na Bíblia a confirmação da teoria da relatividade, está a perder tempo. O que deve procurar na Bíblia, isso sim, é o verdadeiro sentido da vida das pessoas. Nessa perspetiva, a Bíblia é uma caminhada com o Deus que nunca abandona o homem que criou. Essa história de amor encontramo-la em quase todas as páginas da Bíblia. Ao lê-la, descobriremos que também nós somos descendentes desses homens com quem Deus estabeleceu uma aliança de amor.

   Costuma-se dizer que não se pode amar aquilo que não se conhece. E é verdade. Mas também é verdade que não se pode conhecer bem senão o que se ama. Ou seja, quanto mais se conhece alguém, mais se ama. Mas também quanto mais se ama alguém mais se conhece. Esta ideia aplica-se também à Bíblia. Por isso, é preciso lê-la com outro espírito. Quer dizer, amar o que se lê. E, quanto mais se ama o que se lê, mais se acabará por ler. Por isso, é necessário conhecer o mais possível dessa grande obra que é a Bíblia.

5.2.  Atenção ao original!

    Ao pegar na Bíblia, uma das primeiras coisas que temos que saber é que não podemos ler a Bíblia como se tivesse sido escrita originalmente na nossa língua. A língua em que foi escrita é outra; ou melhor, são outras. Por isso, a mentalidade que está por detrás é outra. E isso é importante para a entender melhor. Há que estudá-la então como qualquer outro livro antigo que tenha chegado até nós através de traduções.

   Mas há mais uma coisa: a Bíblia é um livro diferente, porque, segundo a visão cristã, ela não contém apenas palavras humanas. A Bíblia é, de alguma forma, um pouco da história da vida de Deus e dos homens com os quais Ele faz amizade. Por outro lado, foi escrita por homens como nós. Daí que seja necessário estudá-la como se faz com qualquer outro livro.

   Ora bem, quando lemos um livro, nem sempre percebemos tudo logo à primeira. E, às vezes, é natural que não percebamos algumas coisas, pelo simples facto de termos já esquecido o que vem de trás. É normal que isso aconteça. É normal que não percebamos tudo o que estamos a ler, se não estivermos dentro do contexto. Isso dá-se em relação a todos os livros. Naturalmente, também em relação à Bíblia. Tratando-se da Bíblia, há mais um motivo de sobra. Ela é Palavra de Deus e, por isso mesmo, temos que procurar saber o que Deus quer de nós.

 5.3.  Pedagogia de Deus

   Deus, para se fazer entender, «adapta-se» ao homem. Não por deficiência própria, mas em razão das limitações do homem. Aí entra aquilo a que se pode chamar a «pedagogia de Deus». Pois bem, vamos ver se me faço entender. A Bíblia foi escrita para os homens, não é assim? Então, tem que usar os métodos dos outros livros. Então, como qualquer outro livro, na Bíblia, as letras estão uma atrás das outras, umas frases atrás das outras, uns capítulos atrás dos outros e assim por diante. E não esteja já a dizer: «Este tipo está a gozar comigo!». Longe de mim tal intenção! Seja como for, é natural que as coisas nos livros sejam assim. Os capítulos, e as frases e as palavras têm que ter uma determinada ordem, sob pena de já não serem nem livro nem nada, mas apenas um amontoado de letras ou palavras sem sentido.

   Tudo isto é muito claro. Mas o que acontece é que, às vezes, nos esquecemos disso quando se trata de aplicar as mesmas regras à Bíblia. Se em qualquer livro não se pode dizer tudo ao mesmo tempo, por que razão é que exigimos isso da Bíblia? Não podemos dizer que o romance está completo enquanto não chegarmos ao último capítulo. O mesmo há a dizer do livro que é a Bíblia.

   Em termos simples, a Bíblia é o livro de Deus para os homens. Ora bem. Se Deus quer falar aos homens, tem que seguir – passe a expressão – também Ele certas regras. E a primeira regra é que também Ele «não pode» transmitir tudo ao mesmo tempo. Claro que, absolutamente falando, até poderia (porque a Deus nada é impossível). Sim, em termos rigorosos, poderia dizer tudo ao mesmo tempo. Mas para quê, se o homem seria incapaz de O escutar e de compreender fosse o que fosse? Sendo assim, o que acontece? Acontece que o Deus infinito tem que se adaptar ao homem que é finito e limitado. Se Ele decidiu comunicar alguma coisa ao homem – e decidiu – então tem que o comunicar gradualmente, segundo as capacidades de apreensão do homem.

5.4.  «Palavra de Deus em palavras humanas»

   As pessoas que vão escrevendo sob a inspiração de Deus, vão-no fazendo à medida que elas próprias compreendem um pouco mais esse Deus que está com elas; e também, claro, à medida que os seus leitores os compreendem a eles. É, pois, natural que o que dizem reflita essa maneira progressiva de ir compreendendo. Dou um exemplo. As primeiras páginas da Bíblia não podem ser iguais às páginas do Evangelho. Estaríamos a exigir demais se o Génesis dissesse coisas tão claras como os Evangelhos. Com isto, fica no ar uma ideia a não esquecer: a Bíblia é Palavra de Deus, mas através de palavras humanas. Para entender, portanto, a mensagem de Deus, temos que começar por compreender e interpretar corretamente as palavras humanas que estão na Bíblia. E, para compreender as palavras humanas que compõem a Bíblia, há que, primeiro, tê-la em nosso poder, e, depois, estudá-la, de forma a descobrir o que ela queria dizer no momento em que foi escrita. Daí a importância do papel dos estudiosos para descobrir o verdadeiro sentido das palavras que foram escritas há tantos e tantos anos.

5.5.   Deus ao nosso lado

    Deus ama-nos gratuitamente. Isso quer dizer que nos ama não pelos nossos méritos, mas pura e simplesmente porque quer. Em todo o caso, Ele nunca recusa a sua ajuda, a sua companhia e a sua proteção àqueles que o queiram aceitar. Aos que Ele ama – diz a própria Bíblia – Deus fará compreender coisas que a inteligência não compreende e ouvir coisas que os ouvidos nunca ouviram e que os sentidos nunca sentiram (cf. 1Cor 2,9; Is 64,3 combinado com Jr 3,16). Esta é uma experiência possível a todos. Mas só através de algo que não tem necessariamente a ver com a inteligência, mas sim com a interioridade.

   É graças a essa interioridade que o povo chega a certas descobertas a que outros não conseguem chegar. A história desse povo, aparentemente, não é muito diferente da história de outros pequenos povos da mesma altura. Mas há coisas únicas nesse povo e é isso que o torna aquilo que é; é isso que o distingue dos outros povos. Pois bem, a grande característica que distingue o povo de Israel é o facto de ter descoberto que Deus é único e pessoal.

   Nessas circunstâncias, com esse povo acontece o que acontece também com as pessoas singularmente consideradas. Antes de a gente conhecer outra pessoa, essa pessoa não passa de uma pessoa como outra qualquer. Mas, a partir do momento em que a gente a descobre como alguém especial, dá-se então um «choque». Há dentro de nós como que um clique. Há dentro de nós algo que faz com que essa pessoa seja vista a uma luz toda diferente. Será por causa do amor! Será por causa da amizade! Será por um mero interesse! Seja o que for. Mas a verdade é que, a partir desse momento, ela é uma pessoa toda especial...

   O povo da Bíblia faz a descoberta de um Deus pessoal. A partir dum determinado momento, como que se dá o tal clique. Na mente de algumas pessoas e do povo como tal, dá-se um choque, acende-se uma luz. E essa luz faz reconhecer a presença de Deus não como algo confuso, mas como Alguém pessoal e único; como Alguém muito especial. Por outras palavras, a história desse povo modifica-se por chegar a esta conclusão: «Agora, não estamos sós. Deus caminha connosco. Estamos na sua mão. Há uma relação de amor entre Deus e nós. E por isso somos protegidos. E por isso somos um povo especial!».

5.6.  Fenómeno da revelação

   À descoberta da relação entre Deus e o homem os cristãos chamam «revelação». É Deus que, através da história, se manifesta e se revela. Fala ao povo através de algumas pessoas que Ele escolhe para serem seus mensageiros. Fala através dos acontecimentos. No caso do povo de Israel, podemos citar como mensageiros de Deus Abraão, Isaac, Jacob, Moisés, os profetas e tantos outros. O próprio Deus revela a esse povo uma realidade muito consoladora: Ele protege esse povo, interessa-se por ele, ama-o. E a Deus – como, de resto, a todas as pessoas – não se pergunta porque é que amam.

   Ao início, o povo de Deus é apenas um punhado de gente. Depois, vai crescendo e multiplica-se. Acontecem coisas extraordinárias na sua história: a mudança para o Egipto; a opressão sob a tirania dos faraós; a saída do Egipto sob a chefia de Moisés; a passagem do Mar Vermelho e a vida no deserto durante quarenta anos. Tudo isso vai fortalecendo o povo e vai contribuindo para que ele reflita sobre aquilo que lhe vai acontecendo. E então, pouco a pouco, vai descobrindo a mão de Deus. Como resposta, vai expressando o seu agradecimento e amor a Deus com celebrações festivas, com cantos e com orações. Vai-se assim formando também uma tradição.

   Israel é um povo que se considera diferente por ter a consciência de ter uma missão diferente de todos os outros. Em poucas palavras, é a nação onde nasce a ideia dum só Deus. Israel é, digamos assim, a nação onde nasce o monoteísmo. Ora bem, a Bíblia é um pouco o reflexo de tudo isso. É a história dum povo concreto que descobre que só há e só pode haver um único Deus. A Bíblia é a história da vida desse povo com Deus e de Deus com esse povo. E é também a história dum povo que é continuada por outros povos. Nós, cristãos, somos também herdeiros dessa história.

 

 

6.  OLHANDO PARA O ÍNDICE

6.1.  Voltando ao início

   Depois da viagem aérea de reconhecimento sobre o país que é a Bíblia, é tempo de nos metermos pela estrada à descoberta. Comecemos então pelo princípio, ou seja pelo nome: Bíblia.

  A palavra Bíblia não é mais que o plural duma palavra grega que quer dizer «os livros». Essa palavra, traduzida do grego para latim, deu uma palavra feminina. Em grego, diz-se «Ta Bíblia» (os livros). E, na realidade, a Bíblia não é só um livro, escrito duma vez, pela mesma pessoa, no mesmo período de tempo. São vários livros que foram sendo escritos por mais do que uma pessoa, ao longo de vários séculos, embora pertençam ao mesmo povo e deem sequência à mesma história.

  Nós, hoje, temos esses livros todos reunidos num só volume. Eventualmente, também se podem obter em separado. Assim, por exemplo, quando vamos a uma livraria e pedimos o Novo Testamento (NT), estamos a pedir apenas uma parte da Bíblia. A outra grande parte da Bíblia é o Antigo Testamento (AT). Este último reporta-nos à aliança feita entre Deus e o seu povo por meio de Moisés. O NT reporta-nos à aliança entre Deus e o seu povo feita através de Jesus. Por isso, segundo a visão cristã, o AT é a preparação do povo para a vinda de Jesus e o NT é a história do povo de Deus a partir de Jesus; história que ainda não chegou ao fim e da qual nós também fazemos parte.

 6.2.  As várias divisões

   Quantos são os pequenos livros que compõem o AT e o NT? O Antigo comporta 46 livros nas Bíblias católicas, ao passo que as protestantes, por exemplo, têm menos. Eles acham que alguns livros e algumas passagens que estão nas Bíblias católicas não são autênticos. Mas o facto é que esses livros, que eles não aceitam, na verdade, chegaram até nós não na versão hebraica mas sim na versão grega. Eles chamam a esses livros «apócrifos». Trata-se dos livros de Baruc, Judite, I e II dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Tobias. Estes livros foram escritos originalmente em grego. Para os católicos, também estes livros são autênticos, embora tenham sido aceites como tais só depois dos outros. Os católicos não lhes chamam apócrifos, mas sim deuterocanónicos, por terem entrado no «cânone» (lista) numa segunda fase.

  Segundo a divisão católica, os livros da Bíblia são, ao todo, 73; e das mais variadas índoles. Para entender isto, podemos imaginar que, em vez de termos a Bíblia num único volume, como estamos habituados, a tínhamos livro por livro. Poderíamos agrupá-los segundo várias categorias. Por exemplo: os Profetas num grupo; as Epístolas noutro, etc. Ou poderíamos utilizar outros critérios, como, por exemplo, o critério usado pelas Bíblicas ecuménicas que colocam no fim do AT ou noutro local os chamados livros deuterocanónicos.

a. Vista de olhos sobre NT

   Mas, em termos de classificação por parte dos estudiosos católicos, há um critério de ordenamento já estabelecido e em geral utilizado nas edições da Bíblia. Sem ser uma classificação absolutamente rígida, é, no entanto, uma ajuda muito útil para facilitar a localização de qualquer texto ou livro. Assim, se pegarmos numa Bíblia qualquer, em relação ao NT, a ordem de classificação dos livros é sempre a mesma; tanto nas Bíblias católicas como nas protestantes: os quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), os Atos dos Apóstolos, várias epístolas (segundo uma certa ordem) e, por fim, o livro do Apocalipse.

   Não tenho a pretensão de que fixem já todas estas coisas. Mas é bom ouvir falar disso. Agora, que é possível fixá-las, lá isso é. Só que é preciso repetir para fixar. Pode parecer fácil dizer a ordem e o nome dos evangelistas, mas é fácil para quem sabe. Quando não se sabe, é tudo difícil. Ainda em relação ao NT e quanto às Epístolas, há duas espécies: as doutrinais e as pastorais. As doutrinais são atribuídas a Paulo e são dirigidas a várias comunidades cristãs concretas. Das pastorais, algumas são atribuídas a Paulo e outras aos discípulos Tiago, Pedro, João e Judas Tadeu.

   Já agora, e correndo o risco de parecer aborrecido, eis o nome de todas as cartas de Paulo: aos Romanos, duas aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, duas aos Tessalonicenses, duas a Timóteo, uma a Tito e outra a Filémon. As dos outros apóstolos são: uma de Tiago, duas de Pedro, três de João e uma de Judas Tadeu. Há ainda uma epístola especial que se chama Carta aos Hebreus.

b. Vista de olhos sobre AT

Q   uanto ao AT, as nossas Bíblias seguem geralmente a ordem utilizada nas antigas traduções gregas. As categorias são quatro:

   1.   A primeira é formada por um conjunto de cinco livros que, por isso mesmo, leva o nome de Pentateuco, que à letra significa precisamente «cinco rolos» ou livros. Nesta categoria, estão incluídos os primeiros 5 livros da Bíblia: o Génesis que, como o nome indica, trata das origens do universo, da vida e do nascimento dum povo especial.

    2.   Depois, vem o Êxodo que, como o nome indica, trata das dificuldades por que passou o povo hebreu no Egipto e como conseguiu sair para a liberdade, atravessando o deserto até à Terra Prometida...

   3.   O terceiro livro do Pentateuco chama-se Levítico. Em poucas palavras, este livro fala da organização do culto. E, como a organização do culto estava a cargo da família sacerdotal por excelência, que era descendente de Levi, daí o nome de Levítico. O quarto livro do primeiro grupo é o livro dos Números. Como o próprio nome indica, é a relação dos nomes e números de todas as famílias do povo eleito. E, finalmente, temos o Deuteronómio, que à letra significa segunda lei. É um livro em que está consignada, digamos assim, a segunda edição (mais completa) das leis que regem o povo de Deus.

   4.   Ainda em relação ao AT, temos, logo a seguir, uma segunda categoria, que é a dos livros históricos. Nela estão incluídos os seguintes livros: Josué, Juízes, I e II de Samuel, I e II dos Reis, I e II das Crónicas, Esdras, Neemias, Tobias, Judite, Ester e I e II dos Macabeus. Levam o nome de históricos não porque sejam livros de história como nós hoje entendemos os manuais de história, mas sim porque tratam de coisas realmente acontecidas. Neles pode haver exageros e descrições apoteóticas de acontecimentos, mas nem por isso deixam de ter valor histórico.

   5.  A terceira categoria leva o nome de livros sapienciais. Trata-se de livros de reflexão sobre os problemas da vida. São eles Job, os Salmos, os Provérbios, o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, a Sabedoria e o Eclesiástico ou Ben Sirah.

   6.   E, finalmente, temos os profetas, que me dispenso de citar. Basta abrir a Bíblia e ver os nomes deles.

6.3.  Coisas práticas

   Agora, vou referir-me à maneira de localizar uma passagem ou uma frase na Bíblia. Falo disso porque tenho notado que há muita gente completamente a leste destas coisas. Não só porque nunca ouviram falar deste ou daquele autor bíblico, mas também porque não são capazes de encontrar seja o que for na Bíblia. Para facilitar esse trabalho, de facto, é bom ter uma visão de conjunto. Se, por exemplo, quero tratar do tema da origem das coisas, se souber que isso está tudo no primeiro livro da Bíblia, então já não demoro quase nada a procurar.

   Ora bem, suponhamos que pegamos na Bíblia e queremos saber onde se encontra o Evangelho de S. João. Do que foi dito antes, já sabemos que é um livro que pertence à segunda grande parte da Bíblia, ou seja, ao NT. Então, o que há a fazer? Muito simples: ir ao NT. Aí encontramos vários livros – mais precisamente 27. Por outro lado, já aprendemos também que os Evangelhos pertencem ao primeiro grupo de livros. E então, facilmente, verificamos que o de S. João é o último deste grupo. Ou seja, o Evangelho de João é, nem mais nem menos, o quarto livro do NT.

   Demos mais um passo. Cada livro que compõe a Bíblia, como qualquer outro livro, tem poucas ou muitas páginas e frases. Ora bem. Como é que podemos localizar esta ou aquela passagem que mais nos interessa? Hoje, há maneira de o fazer. É claro que quem escreveu a Bíblia não teve a preocupação de classificar o que ia escrevendo. Nem sequer se preocupou por dividir em capítulos, como hoje os temos. Nessa altura, não havia esse costume. E é por isso que houve necessidade, mais tarde, de colocar certos marcos ou pontos de referência. É como se os autores tivessem feito uma estrada e se tivessem esquecido de colocar os marcos de tantos e tantos metros. Vieram depois outros fazer esse trabalho.

6.4.  Capítulos, versículos e siglas

   Cada livro da Bíblia foi dividido em capítulos e cada capítulo, por sua vez, foi dividido em versículos. Os versículos, como regra, correspondem a frases completas; mas nem sempre, sobretudo por causa das traduções que nem sempre se podem fazer segundo a numeração original. Pode inclusivamente acontecer que as divisões não tenham sido bem-feitas. Sei lá, em determinadas circunstâncias, algumas passagens deviam pertencer a outro capítulo ou a outro versículo. Mas, como é óbvio, não é isso que tem mais importância. Esta divisão tem só o objetivo de nos ajudar a situarmo-nos. Assim, quando eu cito um capítulo e um versículo qualquer da Bíblia, outra pessoa pode ficar a saber, sem margem para dúvida, ao que me estou a referir.

   Quanto à consulta da Bíblia, há um pormenor importante. As citações são feitas por iniciais, para não ter que estar a escrever a palavra toda. Por exemplo, façamos de conta que deparamos com uma citação assim: «Gn 9,8-15». Pois bem, Gn é a abreviatura do livro bíblico chamado Génesis, que, como já sabe, é o primeiro da Bíblia. O número que vem a seguir corresponde ao capítulo. Por isso, depois de encontrarmos o livro em questão, vamos à procura do capítulo nono (no caso em exame) e, depois, aos versículos. Nas atuais edições da Bíblia, é muito fácil encontrar a abreviatura e a indicação do capítulo. Basta olhar para o cimo da página; quer se trate de edições católicas, quer protestantes.

   Depois do primeiro número, aparecem outros, separados por uma vírgula. No caso que dei como exemplo, são os números 8 a 15. Isso quer dizer que o que queremos encontrar é o livro do Génesis, no capítulo novo e nos versículos 8 a 15. Devo acrescentar que, nas edições da Bíblia, é fácil distinguir os capítulos dos versículos. Os números maiores, mais grossos e, por vezes, a negrito, que aparecem ao longo do texto, referem-se ao capítulo, ao passo que os números mais pequenos se referem aos versículos. Estes últimos encontram-se como que semeados pelo texto, metidos entre as frases.

   Não nos devemos, pois, esquecer: primeiro, procura-se o livro, depois o capítulo e, encontrado o capítulo, vai-se à procura dos versículos. Quando citados vários seguidos, os versículos estão unidos por um hífen. Assim, por exemplo Mt 5,12-17 significa: capítulo quinto do Evangelho segundo S. Mateus, versículos 12 a 17. Se, em vez disso, tivermos, por exemplo, Mt 5,20-6,13, já significa que a citação é Mateus, capítulo cinco, a começar no versículo 20, até ao capítulo sexto, a terminar no versículo treze. Mas, quando, por exemplo, são citados vários versículos no mesmo capítulo, mas separados por um ponto, isso significa que devem ser lidos salteados, digamos assim. Assim, Mt 5,20.22.24 significa que nos interessa ver os versículos vinte, vinte e dois e vinte e quatro do capítulo quinto de S. Mateus.

   E se quisermos citar vários capítulos do mesmo livro? Nesse caso, os vários capítulos são separados por um ponto e vírgula. E então não é preciso estar a repetir a abreviatura do livro. Assim, por exemplo Mt 5,12.21-23; 6,1-8 significa: Evangelho de Mateus, capítulo quinto, versículo doze, mais versículos vinte e um a vinte e três; e capítulo sexto, versículos um a oito... E os exemplos podiam continuar, mas creio que estes já bastam.

   Obviamente, trata-se de convenções para facilitar a vida. Poder-se-ia ter chegado a outras convenções? Claro que sim, mas são estas as que estão em voga e, pelos vistos, têm resultado. Até porque, salvo raríssimas exceções, são convenções válidas em todos os países e em todas as línguas. Quanto à forma de decorar as abreviaturas de todos os livros da Bíblia, isso depende da memória de cada um. Mas uma coisa é certa: não há nenhuma abreviatura igual à outra; por motivos óbvios. Mas não é complicado fixar essas abreviaturas? Penso que não, embora leve também o seu tempo. Mas isso é normal, porque tudo leva o seu tempo a fixar.

   Já agora, mais uma observação. Se virmos nas nossas Bíblias, em letra mais pequena, em rodapé, umas notas explicativas de passagens mais difíceis, isso não faz parte do texto bíblico. Não foram os autores bíblicos que as escreveram, mas sim os editores. Por isso podem variar de edição para edição.

   O objetivo dessas notas é ajudar a entender mais facilmente o que se está a ler. Se os editores conseguem atingir ou não esse objetivo, já é outra questão! Seja como for, essas notas contêm também referências a outras passagens paralelas que falam do mesmo assunto ou de assuntos relacionados. A citação de passagens paralelas é para ajudar a compreender melhor o contexto em que uma determinada passagem deve ser lida.

 

 

7.  VOLTANDO À VACA FRIA

7.1.   Mais pormenores

   Agora, vou limitar-se à repetição de noções já vistas, mas às quais acrescento mais alguns pormenores que porventura me tenham escapado. Para já, começo por repetir que a palavra portuguesa «Bíblia», como tantas outras, deriva do latim. A palavra latina Biblia, por sua vez, é o singular feminino dum plural grego ( bíblia) que, à letra, significa «os livros». E onde é que os gregos foram buscar a palavra em questão? Muito simples. Do material em que os livros eram escritos. Ou seja, uma espécie de pasta feita a partir duma planta que crescia numa região chamada Biblos, situada em Caná sobre o Mediterrâneo. Bíblia, à letra, significa, pois, simplesmente um conjunto de livros: 46 relativos ao AT e 27 relativos ao NT.

7.2.  Testamento de Deus

Que ideia é que tem de Testamento? É o que uma pessoa deixa por escrito aos descendentes como manifestação da sua última vontade, não é verdade? Como alguém que, antes de morrer, deixa os bens aos filhos e aos parentes. Ora, aí está a semelhança. A Bíblia é o testamento de Deus à humanidade. Lendo o AT, o leitor fica a conhecer como Deus formou e conduziu o seu povo até ao nascimento de Jesus. Lendo o NT, fica a conhecer Jesus e como Ele é ao mesmo tempo pessoa humana e Deus. Nesse sentido, é um testamento novo. A mensagem que Ele traz é uma mensagem de paz, amor, perdão e ressurreição.

7.3.  Versão dos LXX

   Esta versão em grego também é conhecida por Versão dos LXX. E porquê? Porque há uma tradição segundo a qual terá sido levada a cabo por um grupo de 70 sábios (hoje diríamos especialistas). Entre esses sábios, havia alguns que se sentiram inspirados por Deus e, para além da tradução dos livros escritos em hebraico e aramaico, escreveram também mais alguns livros diretamente em grego. Estes livros escritos diretamente em grego não foram aceites pelos protestantes, mas os católicos aceitaram-nos como inspirados e não tiveram dificuldade em incluí-los no «cânone» (lista) oficial. É por isso que, no catolicismo, nasceram as expressões «livros canónicos» e «livros deuterocanónicos».

    Estes livros incluídos num segundo tempo no cânone são: Tobias, Judite, I e II dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico (ou Ben Sirah), Baruc e algumas passagens do livro de Daniel.

Quanto ao NT, a sua composição, segundo nos dizem todos os estudiosos, começou com a I Carta aos Tessalonicenses. Mais: todo o NT foi escrito em grego; e, mais concretamente, na língua vulgar falada pelo povo, que se chamava também koiné.

   Quando, porém, no plano político, os gregos são substituídos pelos romanos, a língua até então falada, o grego, tem tendência a desaparecer, porque as pessoas são obrigadas a falar latim. E é assim que, a partir dum determinado momento, sobretudo no Ocidente, o latim começa a ser a única língua a ser falada. É então natural que, nessa altura, se comece a sentir a necessidade de ter a Bíblia traduzida na língua falada e entendida pelo povo. Ora bem, entre algumas traduções feitas, a que realmente chega até nós é uma só. E é essa a adotada pela Igreja de Roma como tradução oficial durante vários séculos. Esta notável e célebre tradução é da autoria dum excecional exegeta ou intérprete da Bíblia. O nome desse exegeta famoso é S. Jerónimo, que trabalhou nesta obra em finais do século IV e inícios do século V da nossa era.

   Esta tradução em latim ficou a ser conhecida com o nome de Vulgata, que significa «edição vulgarizada», ou melhor, edição em língua vulgar. Hoje, é natural que esta tradução em latim também tenda a desaparecer da circulação, porque praticamente ninguém já fala latim. Hoje, as traduções que temos são feitas geralmente a partir dos textos originais, ou seja, a partir do hebraico, do aramaico e do grego.

 
 

8.1.  LIVRO DESCONCERTANTE

  • Histórias inúteis?

   Ao começar a leitura da Bíblia, se calhar, uma das primeiras impressões é a de que se trata de um livro um pouco estranho e desconcertante; sobretudo o AT. Por um lado, faz parte do património da humanidade, à semelhança da Ilíada de Homero, da Eneida de Virgílio, da Divina Comédia de Dante, de Os Lusíadas de Camões, ou do Alcorão. Mas, por outro lado, encontramos nela coisas que nos parecem totalmente inúteis ou mesmo contraditórias. Encontramos, por exemplo, histórias que à primeira vista nos parecem «sem interesse». Há até relatos de uma moral pouco edificante. Encontramos lá guerras, assassínios, poemas estranhos, com os quais parece muito difícil rezar. Há também conselhos de moral superados. Enfim, um livro desconcertante  

8.1. As comparações ajudam

   Para fazer uma ideia, ponhamos a seguinte hipótese. Se juntarmos os Sermões do P. António Vieira, os Poemas de Castro Alves, os Sertões de Euclides da Cunha, os romances de Eça de Queirós e de Camilo, alguns livros de teologia e de ciência, teremos um certo panorama da literatura em língua portuguesa durante alguns séculos. Mas ficamos um tanto desorientados. Pois bem, é exatamente essa a sensação que pode ficar a um leitor da Bíblia menos informado.

   A Bíblia é um conjunto de 73 livros que quer contar uma aventura. É a aventura dum povo atingido pela paixão de Deus. E é sobretudo a aventura e a paixão de Deus pelo seu povo. Um livro que é capaz de suscitar em nós o gosto da mesma aventura. Talvez contando um caso se possa entender um pouco melhor o tipo de livro que é a Bíblia... Foi no dia das bodas de oiro dum casal meu amigo. Quando cheguei a casa deles, marido e mulher estavam sozinhos. Os filhos já se tinham ido embora. Nós passámos a tarde juntos e foi uma coisa maravilhosa. Eu pensava que conhecia aqueles velhos amigos de sempre. Mas, naquela tarde, eu redescobri-os com um novo olhar, porque me abriram o seu «tesouro»: um simples caixote de papelão, onde havia de tudo.

   A maioria dos objetos que estavam no caixote eram retratos e papéis. Desde o retrato de família e fotografias do casamento dos filhos e das primeiras comunhões, até aos instantâneos dum sorriso de criança ou uma simples paisagem das férias. Cartões e postais sem qualquer tipo de arte, completamente amarelecidos, porque ele os tinha levado consigo no uniforme militar durante a guerra. Fazendo recurso à capacidade de recordação, eles foram-me explicando todas aquelas fotos, fazendo comentários. E então tudo aquilo se tornava documento doloroso ou alegre de algum dos momentos mais importantes da vida deles. Era a vida deles que brotava daqueles papéis: a lista de nomes decrépitos tornava-se aí sentimento de pertencer a uma extensa linhagem. Um contrato já não era um documento apenas, mas o sonho de uma vida de trabalho e de poupança tornado realidade: ter uma casa. As cartas trocadas durante o noivado – «Ora, ora, não lhe mostres isso!», protestava o velho satisfeito por eu descobrir a sua ternura e o seu amor – misturavam-se com orações para alguns momentos especiais da sua vida.

    À medida que ia vendo cada um daqueles objetos, fui entrando no sentido profundo da vida deles. Todas aquelas fotos, todos aqueles papéis, em si mesmos, eram bastante banais e sem valor objetivo. E, no entanto, tornavam-se objetos de valor inestimável para eles. Já não eram apenas objetos, mas toda uma vida que se tornava tangível! Cada uma daquelas humildes coisas tinha o seu lugar numa história. Passando aqueles «documentos» pelas mãos, eles iam tecendo o sentido do rumo que a sua vida tinha levado.

    Cada um dos objetos e dos escritos que aqueles velhos esposos me mostravam, graças à interpretação que eles lhes davam, parecia-me a síntese, feita num momento, de toda a sua vida. Essa vida tinha-se tornado um texto que estava ali guardado num caixote de papelão. O que mais interessava naqueles humildes testemunhos de história não era o estilo ou a ortografia daquelas cartas de noivado, mas a vida que tinham construído em comum. Aquelas fotografias, aqueles escritos e papéis eram o meio para saborear de novo esses instantes de vida. E, através disso, até eu podia entrar em comunhão com eles.

 8.2.  Aplicação à Bíblia

   Pois bem, é mais ou menos isso o que acontece com a Bíblia. Todos os escritos da Bíblia são «condensados» de vida; momentos da vida dum povo tornados texto. Nesse sentido, a Bíblia é um material muito particular que nos pode ajudar a descobrir a vida que está por detrás dela. Podemos e devemos estudar o seu estilo, o seu vocabulário, a sua estrutura; mas precisamente para descobrir o que está por detrás das palavras e dos acontecimentos. As palavras e os acontecimentos são importantes, mas o que mais interessa, fundamentalmente, é comungar e partilhar da experiência de vida de que a Bíblia nos dá testemunho.

    Espero que esta espécie de parábola tenha o condão de fazer compreender pelo menos isto: que a Bíblia é qualquer coisa de vivo. O que está lá escrito, mais do que um conjunto de factos isolados em si, é a história duma vida; é a interpretação dessa vida. Todo esse material vai ajudar-nos a saber qual é o sentido dessa vida. São factos, acontecimentos, anedotas até, provérbios, situações diversas, ligados, lidos e interpretados pelo povo.

   E então, quando lemos a Bíblia, já não cometeremos o erro (muito comum) de pensar que o que está na Bíblia é tudo igual. Não. Nem todas as coisas que estão na Bíblia têm o mesmo peso. Uma lista com uma série de nomes tem o peso que tem e mais nada. O que importa é que nos ajude a descobrir a história que está por detrás desses nomes: a história de um Deus que se quer revelar a pessoas normais através dum povo que teve origem num homem chamado Abraão e que prossegue até nós. E mais: é uma história que vai seguir depois de nós. É essa história de paixão que nos deve interessar mais do que as pequenas coisas que, tomadas em si mesmas, se calhar, não tem muito sentido.

 8.3.  A «fala» de Deus

     Assim, de entre os milhões de livros que há no mundo, para o cristão, há um muito especial, que é a Bíblia. Embora, aparentemente, não se distinga de qualquer outro livro, é especial por causa do seu conteúdo. Para nós, esse livro é a história da paixão de Deus pela humanidade. Ou seja, é um livro através do qual o próprio Deus nos fala. Por isso, utilizamos, em relação a esse livro, a expressão «Palavra de Deus». E, por isso, quase instintivamente, lemo-lo com muito respeito. É como se estivéssemos a ler a carta duma pessoa queria. A Bíblia é, então, digamos assim, a grande carta que Deus nos escreveu.

   A Bíblia, repito, é uma biblioteca de 73 pequenos livros muito diferentes entre si. E há que reconhecer que alguns deles não são muito fáceis de entender. Por isso, precisamos da ajuda de quem passa a vida a estudá-los. Há várias razões por que não são fáceis de entender. A primeira é que foram escritos há muitos anos, quando a mentalidade das pessoas era muito diferente da nossa. Depois, dá-se o caso que as traduções nem sempre são bem-feitas. Há um provérbio latino que diz que o tradutor é sempre um traidor. Ora, isso também acontece, infelizmente, em relação à Bíblia. E, já se sabe, más traduções levam a erros lamentáveis.

 8.4. Referência aos géneros literários

   Uma outra razão por que certos livros bíblicos são difíceis de entender é que neles se encontram diferentes géneros literários. A tendência mais comum das pessoas, quando pegam numa Bíblia, é lê-la como se tudo fosse igual e tudo pertencesse ao mesmo género literário. E não é assim. Ora, o facto é que cada género literário tem que ser interpretado segundo as suas características próprias. Eu não posso ler uma poesia como uma página de crónica. Ter isto em consideração é importantíssimo quando se lê a Bíblia. E é por isso que vou dedicar algum tempo a este assunto.

   Quando se ouve falar de géneros literários, pode-se ficar um pouco atrapalhado, porque se acha que é um bicho-de-sete-cabeças. Mas isso não é verdade. Afinal, bem vistas as coisas, é uma coisa bastante simples. Lembram-se da parábola das bodas de oiro dos dois velhos amigos? Pois bem, entre as coisas que eles me mostraram havia um pouco de tudo. Também na Bíblia, há um pouco de tudo, mas faz um todo homogéneo.

  • Como disse antes, a Bíblia é a história da experiência dum povo. Ora, um povo tem necessidade, por exemplo, de leis. Então, na Bíblia, encontramos livros que são livros de leis.
  • Esse povo tinha necessidade de preservar a sua identidade. Então, na Bíblia, temos livros que falam da sua luta pela independência. Por isso, encontramos guerras, vitórias, derrotas. E a esses livros chama-se mais estritamente livros históricos...
  • O povo de Deus, como qualquer outro povo, fazia festas e celebrações. Então, na Bíblia, temos livros em que o simbolismo e as imagens são muito importantes; muito mais importantes que as palavras em si. É, por exemplo, o caso dos salmos e de vários hinos que encontramos em outros livros.
  • Esse povo, depois de derrotas, tinha necessidade de alguém que lhe fizesse vibrar a alma até ao patriotismo. Pois bem, a Bíblia contém livros que transmitem, com palavras poéticas e por vezes épicas, essa coragem. É o caso, por exemplo, dos profetas.
  • O povo de Deus, como tal, por vezes, não compreende a razão do que lhe acontece, a razão do sofrimento e da morte. Então, na Bíblia, temos autores que refletem profundamente sobre essas coisas e procuram dar uma resposta. Para o fazer, recorrem tanto ao simbolismo como também àquilo a que hoje chamaríamos «romance de ficção». É o caso, por exemplo, das primeiras páginas da Bíblia, em que os seus autores procuram explicar a razão das coisas, segundo os seus conhecimentos e a capacidade de compreensão dos seus leitores. É também o caso desse livro extraordinário – talvez um dos melhores de toda a literatura mundial – que é o livro de Job. Job é uma peça de teatro, digamos assim, onde não faltam os ingredientes para fazer dela um sucesso de bilheteira.

 8.5.  Diferente género = diferente sentido

    Os livros da Bíblia são, pois, de índole diferente; foram escritos em épocas e circunstâncias diferentes; num arco de cerca de mil anos para o AT e num arco de cerca de cem anos para o NT. Por isso, utilizam géneros literários diferentes, conforme as finalidades. Umas vezes, procuram instruir o povo por meio de relatos e sínteses históricas; outras, procuram organizá-lo por meio de leis, a que os hebreus costumam chamar Torá; outras, havia necessidade de fazer renascer no povo o ânimo e o patriotismo e, então, temos obras de sabor épico, cânticos e salmos. Para refletir sobre a vida, temos provérbios e conselhos vários.

   Na posse destes elementos, se calhar, já vamos ler a Bíblia com mais cuidado. Se soubermos, por exemplo, que o livro de Isaías é um livro profético, então já não nos interessa muito saber se um determinado local estava em ruínas ou não. Mesmo que não seja possível reconstruir um facto histórico, eu posso saber o sentido que esse livro tinha para os judeus e, como consequência, o sentido que o mesmo livro pode e deve ter para as pessoas de hoje. E, já agora, acrescento que, em traços gerais, o sentido do livro de Isaías – bem como dos outros profetas – é este: «Compatriotas, aconteça o que acontecer, acreditai que Deus está ao vosso lado para vos ajudar, mesmo que pareça que não!».

 8.6.  Erro ou verdade?

   Quando estivermos na possa destes elementos para entender o melhor possível os vários livros bíblicos, então talvez já não sintamos tantas dificuldades em aceitar o facto de não poder haver erros na Bíblia. «Mas, como é possível – pensamos nós – se, por exemplo, a Bíblia diz que o sol anda à volta da terra?». Bem, antes de mais, a primeira pergunta a fazer é a seguinte: você tem mesmo a certeza de que isso está escrito na Bíblia? É que, com frequência, nós dizemos que a Bíblia diz qualquer coisa só porque ouvimos dizer a alguém que a Bíblia diz. Mas será que diz mesmo? Não há como controlar, lendo...

  Quando se diz que, na Bíblia, não há erros, é claro que não se trata de erros no plano científico ou histórico. Não é essa a finalidade da Bíblia. Nesse sentido, a Bíblia não é nenhum manual de ciência ou de história. Por outras palavras, não é esse o seu género literário. Era como se nós, com base em Os Lusíadas, disséssemos que o destino dos portugueses foi realmente traçado numa reunião dos deuses no Olimpo! É evidente que não era essa a intenção de Camões. O que ele utilizou foi um tipo especial de linguagem. No caso da Bíblia, não há erros no plano religioso, pois o género literário que a percorre toda é o religioso.

 

 

 9.  GÉNEROS LITERÁRIOS

 9.1.  Para perceber

    Continuemos a refletir sobre os géneros literários. Como regra, os livros só têm um género literário. Quem entra numa livraria e compra O Primo Basílio de Eça de Queirós, recebe um livro que é um romance do princípio ao fim. Quem compra a História de Portugal recebe um livro que é, digamos assim, um manual de história do princípio ao fim. Quem vai a uma loja e compra um caderno com as músicas e as letras das canções de Rui Veloso, encontra nesse livro uma coleção de canções e mais nada. Não há – que eu saiba – um livro em que estejam transcritos o Primo Basílio, a História de Portugal e as músicas de Rui Veloso. Mas, não há outros livros para além da Bíblia com diversos géneros literários? Claro que há. Basta abrirmos qualquer livro intitulado, por exemplo, «Obras Completas» ou «Seleta», para verificarmos logo que pode haver livros com mais que um género literário: romance, poesia, drama, lírica, cartas; etc.

  Há também livros que não só contêm diversos géneros literários como também o contributo de vários autores. Exemplo disso são as antologias. Uma tal multiplicidade de autores e géneros literários só é possível num livro em que estejam reunidos escritos das mais diversas proveniências e das mais variadas épocas. A Bíblia é um desses livros. Nela encontramos reunidos textos de vários séculos, de vários autores e sobretudo trechos de diversos géneros literários: cartas, profecias, instruções, livros sapienciais, provérbios, hinos, canções, livros históricos; e até géneros novos, como é o caso dos Evangelhos.

 9.2.  Saber ler e entender

    Não lemos os trechos duma antologia todos da mesma maneira; mas sim conforme a época em que foram escritos e segundo o género literário a que pertencem. O mesmo se deve fazer em relação à Bíblia. Ou seja, ler, por exemplo o livro de Isaías (que originalmente apareceu em forma poética) não é exatamente o mesmo que ler o livro dos Números. O grande erro que geralmente se comete é precisamente este: a falta de atenção ao género literário. Isso acaba por significar que não se percebe o que o seu autor quer realmente dizer.

   A propósito, acho que merecem uma especial referência os livros históricos. Há livros históricos e livros históricos! Os livros históricos da Bíblia não são exatamente os livros históricos modernos. E muito menos são crónica que relata pormenorizadamente datas, locais e horas. De resto, mesmo hoje, o valor dos livros históricos depende do ponto de vista do seu autor. Os mesmos acontecimentos podem ter – e, de facto, têm – conotações diferentes conforme a forma mental de quem os narra e conforme a intenção com que o faz.

   Há várias maneiras de tratar historicamente um determinado assunto. Nesse caso, então há que ser capaz de interpretar corretamente. Ora, eu acho que o mesmo critério deve ser aplicado à Bíblia. Ou seja, no caso da Bíblia, temos que ver qual é a finalidade do autor ou autores ao narrar um determinado facto histórico. A história, na Bíblia, está sempre subordinada à sua finalidade religiosa. Sendo assim, então parece-me que pelo menos uma coisa deve ficar evidente: a Bíblia não se pode ler como se fosse toda história; e muito menos história no sentido cronístico do termo. Também não se pode ler como se fosse toda poesia; ou então como se fosse toda romance ou toda provérbios. Todos percebemos facilmente que não é assim. Mas, às vezes, esquecemo-nos disso.

9.3.  Géneros e subgéneros

    É melhor sabermos que, para além dos géneros literários principais, há na Bíblia também os géneros menores, secundários ou subordinados. Os entendidos chamam a esses géneros menores «subgéneros» (o que, de resto, vem a ser a mesma coisa). E então a conclusão que tem que se tirar é que é necessário redobrar de atenção para não cometer erros de interpretação. Para fazer uma ideia, enumero apenas alguns desses subgéneros: o mito, o conto, a fábula, a pregação, a exortação, a comparação, a parábola, a metáfora, a máxima espiritual, o enigma, o discurso, a lista, a oração. E não sou exaustivo de maneira nenhuma. Mas não é isso que mais interessa. O que interessa é saber que, no mesmo capítulo ou inclusivamente na mesma página dum livro qualquer, é possível encontrar vários subgéneros ao mesmo tempo.

  Tendo todas estas coisas em mente, pode-se deduzir que a Bíblia deve ser lida também como se faz com qualquer outro livro. Imaginem que encontram num jornal um trecho em que o autor faz ironia. É evidente que, se você entender e interpretar esse trecho à letra e segundo o sentido original e literal das palavras, é sinal de que não entendeu corretamente o que o autor quis dizer. E a intenção do autor é dizer precisamente o contrário do que as palavras em si querem dizer.

   Não estou a dizer com este exemplo que na Bíblia haja qualquer livro ou trecho inteiramente irónico. Estou simplesmente a falar disto para dizer que um livro ou uma parte dum livro deve ser lido conforme o género literário que é utilizado para o escrever. A Bíblia, nesse aspeto, não é nenhuma exceção. Então, se é assim, por exemplo, o Evangelho de S. Mateus não pode ser lido como o livro de Job. Seria uma «asneira» fazer uma leitura assim, porque são livros com géneros literários diferentes. E até no próprio Evangelho de Mateus, por exemplo, a narração do episódio dos chamados Reis Magos é totalmente diferente da narração da Paixão e Morte de Jesus.

   Bom, vou dar mais um exemplo para ficar com as ideias mais claras. Suponhamos que os Salmos são letras de canções que eram cantadas nas festas dos judeus. Bem, no caso de vários deles, não é apenas uma suposição; é a realidade. Ora bem. Como acontece ainda hoje também nas canções, há letras que são hinos, há outras que são lamentações, outras que são letras de amor, outras de maldizer, e outras ainda revolucionárias ou pelo menos patrióticas. Pois bem, os salmos na Bíblia são um pouco isso também. Para uma interpretação correta, é preciso ter sempre estas coisas em mente.

 9.4.  As fórmulas fixas

    Pela importância que me merece, vou continuar a falar de géneros literários. E volto a um exemplo que já dei. Se pegarmos em Os Lusíadas e os lermos como um manual de história, acabamos por não perceber o que lá vem escrito. Mas então Os Lusíadas não contam coisas históricas e não são dignos de confiança? Claro que são! Mas – digamo-lo sem rodeios – nem só o que é história merece confiança. É também esse o caso da Bíblia. Nem tudo é histórico; e muito menos em sentido estrito. Mas não quer dizer que não seja digno de confiança.

   Bem, agora vou falar de pequenas coisas. Não sei se já repararam, por exemplo, que a leitura do Evangelho na missa começa quase sempre com as seguintes palavras: «Naquele tempo». Pois bem, não acham isso um pouco estranho? Bem, não será nada de estranho se partirmos do princípio que há fórmulas fixas ou estereotipadas (como se diz hoje) para começar uma certa narração. Assim, a fórmula Naquele tempo é uma forma como outra qualquer para iniciar a leitura dum texto. A liturgia põe essa expressão no início, se calhar, para que a leitura não comece abruptamente. Na minha opinião, a expressão até nem é a mais apropriada. Em latim – que é In illo tempore – já tem sentido, mas não significa necessariamente «Naquele tempo», mas sim «Um dia» ou então «Uma vez...». Bom, mas isto é assunto que não tem senão uma importância relativa.

    Quando queremos contar uma história aos mais pequenos, como é que fazemos? Geralmente, começamos com as palavras «Era uma vez», não é verdade? Mas essa expressão tem algum significado especial? Claro que não! Está apenas a dizer que se trata duma história. Da mesma forma, quando encontramos um texto que começa com a expressão «Prezado amigo», em que é que pensamos? Claro! Que se trata duma carta. Isso parece-nos tão normal que nem sequer duvidamos. É apenas uma fórmula fixa para início duma carta. E isso é verdade, mesmo que o destinatário não seja amigo nem muito menos prezado.

 9.5.  Insistindo no tema

    Na Bíblia também temos fórmulas fixas como estas. E, nesse aspeto, não vale a pena andar à procura do seu sentido. Quando lemos, por exemplo, no Evangelho de Mateus, expressões tais como «Partindo dali», «Ao sair dali», «Quando acabou de dar estas instruções», «Depois de terem partido», «Naquela ocasião», serão essas anotações temporais? Não. Trata-se apenas de «truques», digamos assim, para ligar uma parte do texto a outra. Por isso, seria um erro concluir duma expressão como «Depois disso», por exemplo, que o que se vai narrar aconteceu imediatamente a seguir. Não é essa a intenção do autor. Trata-se apenas duma fórmula fixa para ligar uma parte à outra do texto.

   Há outras fórmulas fixas – não as vou enumerar todas, como é evidente – que há que entender bem, para não cometer erros de interpretação. Quando dizemos duma pessoa, por exemplo, que é um autêntico Sansão, é evidente que não queremos dizer que seja mesmo Sansão, mas simplesmente que é uma pessoa com muita força; ou, se for em tom irónico, que é exatamente o contrário. Assim também, quando se diz que o segredo da força de Sansão estava nos cabelos, terá que se interpretar isso à letra? Creio que não, mas apenas que, momentaneamente, Sansão tinha perdido a força que costumava ter. A história teria o mesmo fio narrativo se o autor tivesse dito que Sansão perdeu a força hercúlea nos cabelos duma mulher. Neste caso, trata-se claramente também duma imagem, mas duma imagem que hoje todos entendem perfeitamente. E, como é evidente, é apenas imagem e não é para interpretar à letra, porque os cabelos em si não trazem força a ninguém nem o seu corte faz perder a força.

9.6.  Mais fórmulas fixas

    Eis mais alguns exemplos de fórmulas fixas que não devem ser interpretadas à letra. Um exemplo é o dos cumprimentos. Se se ouve perguntar «Como está?», e se se responde «Muito bem, obrigado!», isso quererá dizer que as pessoas estão a querer saber da saúde das outras? Oxalá fosse isso, mas não é. A gente quase que tem que responder «Bem, obrigado», mesmo quando está muito mal; sobretudo quando não temos muita confiança com a pessoa com quem estamos a falar. Mas então as pessoas estão a mentir? Não estão coisa nenhuma! Trata-se apenas duma fórmula fixa para entabular contacto com alguém. Sendo assim, seria um erro grave pensar que as pessoas estão a trocar informações sobre a saúde.

    Quando lemos a Bíblia, não podemos confundir, por exemplo, uma fórmula de cortesia com um dado histórico. Senão, podemos fazer dizer à Bíblia aquilo que não está lá escrito. Pode acontecer que, se não se estiver atento a estas coisas, se leiam todas as partes da Bíblia como se fossem todas iguais. E mais: pode haver expressões e fórmulas fixas que eram perfeitamente claras para as pessoas daquele tempo e o não sejam já para nós. Os autores bíblicos falavam do que sabiam e também os seus leitores sabiam. Seria impossível, por exemplo, eles falarem de viagens interplanetárias. De resto, mesmo supondo, por hipótese académica, que eles o pudessem fazer, que importância teria isso para os seus leitores se eles não pudessem entender?

    É natural que a Bíblia use a linguagem comum e veicule a mentalidade, a cultura e categorias literárias que se usavam nesse tempo. E talvez por isso também a Bíblia seja considerada um livro complicado. Só que qualquer livro é complicado, quando a pessoa não está preparada para o ler. Vejamos o caso dum analfabeto que olha para um livro simplicíssimo da instrução primária. É muito provável que se pergunte a si mesmo como é que aqueles rabiscos podem significar alguma coisa. Ora bem, algo semelhante acontece quando nós somos analfabetos no que se refere ao conhecimento bíblico.

 9.7.  Linguagem popular

    Na Bíblia, há imagens, parábolas, cânticos, hinos, etc., enfim, vários géneros e subgéneros literários. Para dizer a verdade, mesmo nós, na nossa linguagem de todos os dias, utilizamos diversas imagens e maneiras de dizer. Quando conversamos, não usamos exatamente as mesmas expressões que quando escrevemos, mas usamos imagens, comparações e outras fórmulas literárias. E raramente cometemos erros de interpretação, porque essas imagens e essas fórmulas são-nos tão familiares que não há, de facto, lugar a equívocos.

   Quando, por exemplo, no nosso dia-a-dia, encontramos alguém que já não vemos há tempo, é quase espontânea uma expressão qualquer como esta: «Há uma eternidade que não te ponho os olhos em cima!». O sentido é claro. É óbvio que não estamos a falar de eternidade nenhuma em sentido rigoroso. O que interessa não são as palavras em si, mas o que elas querem dizer no seu conjunto ou no seu contexto. Então, porque é que não havemos de fazer o mesmo raciocínio quando se trata da Bíblia? Quando, por exemplo, lemos na Bíblia que o sol se põe, somos logo tentados a dizer que a Bíblia está a cometer um erro, porque o sol não se põe. Mas não será um facto que, apesar de toda a nossa ciência de hoje, nós continuamos a usar esta mesma expressão e nem por isso dizemos que cometemos qualquer erro?!

   Estas coisas não são difíceis de entender. Em todo o caso, parece-me que devemos estar atentos a estes pormenores, quando lemos ou ouvimos ler a Bíblia. É preciso, em suma, ler a Bíblia com olhos de ver. E olhos de ver, neste caso, é saber que a Bíblia não é um manual científico, mas um livro religioso. E, por conseguinte, utiliza a linguagem de todos os dias para transmitir uma determinada ou determinadas mensagens de cariz religioso.

 9.8.  Ser original

    Demos mais um passo para responder a uma outra dificuldade. Imaginemos que uma criança diz assim à mãe: «Mas o céu não está lá em cima?». E aponta o dedo para o alto. «Que céu é que tu queres dizer, meu amor?», pergunta a mãe à criança. «Ora, essa! O céu!», diz a criança. «O céu onde estão os aviões e as nuvens e donde vem a chuva?», continua a mãe. «Não, não é esse céu que eu quero dizer! É o céu verdadeiro; o céu onde moram os anjos!». Nessa altura, a mãe pega na criança ao colo e diz-lhe: «Olha, meu filho! O céu de que estás a falar é o céu onde está Deus. E Deus está em toda a parte. Por isso, o céu não está por cima de nós, mas em toda a parte. Está à nossa volta e está dentro de nós. Só que há uma coisa importante que tu tens que saber: esse céu não o podemos ver já. Para isso, é preciso que Deus nos dê primeiro outros olhos e outro coração».

    Se você quisesse explicar ao seu filho pequeno a diferença entre o céu físico e o outro céu, faria melhor que essa mãe? Imagine só que se punha a falar com ele de cosmografia e de sistemas solares e coisas do género. Estaria a ser «científico», digamos assim, mas a criança ficava na mesma. Nesse caso, posso assegurar-lhe que era tempo perdido, porque a uma criança dessa idade não interessam essas coisas e essas explicações. Nesse caso, a mãe soube adaptar-se à mentalidade e às expectativas do seu filho; e tudo o que fosse para além disso seria inútil. E assim o seu filho não teve dificuldades em compreender, embora a explicação da mãe não fosse científica.

9.9.  A Bíblia é vida

    Aos autores bíblicos não interessa falar cientificamente das coisas e da vida das pessoas. Isso seria uma linguagem desadaptada. Se queriam dizer alguma coisa aos seus leitores imediatos, tinham que usar precisamente a linguagem coloquial, ou seja, a linguagem de todos os dias. Os leitores dos autores bíblicos eram um pouco como a criança de que falei. Seria, por exemplo, ridículo que nós pretendêssemos que a Bíblia explicasse, por exemplo, o aparecimento do homem sobre a terra com a teoria do evolucionismo. Primeiro, como é óbvio, porque essa teoria não existia. E, em segundo lugar, porque, ainda hoje, o evolucionismo não passa disso mesmo, uma teoria, uma hipótese.

   Como este, há muitos outros exemplos na Bíblia. Acusar a Bíblia de que ensina coisas erradas porque usa fórmulas de linguagem não científica é algo pouco razoável. A intenção da Bíblia – como estou farto de dizer – não é ensinar coisas de maneira científica. Esperar, pois que ela seja um tratado científico é um erro. Mas o erro não é da Bíblia. É de quem não sabe interpretá-la como deve ser. É inútil que os cientistas zelosos barafustem só porque a Bíblia diz que o sol anda à volta da terra (supondo que o diz!). Isso faz parte da linguagem comum. Então quer dizer que não admite os dados da ciência? Não admite nem deixa de admitir. Trata-se apenas de fórmulas convencionais de dizer que o dia está a começar ou a acabar. Então à pergunta: «A Bíblia está em contradição com a ciência por usar expressões da linguagem comum?», tem que se responder que não.

9.10. Importância do contexto

    Vou dar mais um exemplo que, por acaso, até é origem de muita confusão. Acontece às pessoas quando levam tudo à letra, abstraindo do contexto em que as coisas são ditas. Se for a Nova Iorque e disser a alguém no meio da rua: «A semana passada fui ao Colombo», a pessoa a quem me dirijo não percebe o que eu quero dizer, mesmo que entenda todas as palavras que eu digo. A não ser que já tenha estado no Centro Comercial de Lisboa com esse nome. É normal que não compreenda, embora a frase em si não tenha nenhum segredo. Em si, não tem dificuldade nenhuma de interpretação. Mas, para a perceber, é preciso estar dentro do contexto, digamos assim. Pois bem, é preciso ter em mente estas coisas para entender bem quando se lê a Bíblia.

   Finalizando o tema, só o seguinte. Quando a Bíblia, por exemplo, fala de pecado, de guerras, de ódios, de crimes, não caiamos em confusões! Não quer dizer que Bíblia está a aprovar essas coisas. De maneira nenhuma. Se os factos são apresentados, não é necessariamente porque são bons, mas sim porque também a Bíblia os pode condenar. E sobretudo é preciso ter cuidado em não retirar as frases do contexto. Na Bíblia, por exemplo, está escrito: «Deus não existe!» (cf. Sl 53/52,2). Logo... se a Bíblia o diz!... Logo, nada. É preciso é ver qual é o contexto. E, no caso, basta ler o que vem logo a seguir. Essa afirmação só tem sentido se estiver ligada ao que vem a seguir: «Diz o ímpio no seu coração». Só com o contexto todo é que a frase se pode entender corretamente...

 

 

10. FAMILIARIZAR-SE COM A BÍBLIA

10.1.  Os mal-entendidos

   Falemos agora de mal-entendidos. Mal-entendido há-os nos nossos contactos diários com as pessoas. E pode havê-los quando se lê um livro ou uma revista; ou inclusivamente um jornal. Basta, por exemplo, supor que lemos qualquer coisa numa língua que não dominamos. E pode haver também mal-entendidos quando a linguagem utilizada é técnica e nós, embora saibamos bem a língua utilizada, não estamos dentro da linguagem técnica, que tem um sentido próprio. Os mal-entendidos são mais desagradáveis quando temos diante de nós alguém que fala a língua que nós falamos e entende mal o que nós dizemos.

   Temos que assumir que os mal-entendidos fazem parte da vida. Disso não nos devemos admirar. Todos nós podemos ser mal entendidos. Mas, atenção, também podemos ser nós a entender mal os outros! Um dos mal-entendidos mais perigosos é a ironia, a que já me referi antes. Se não percebemos a intenção da pessoa que escreve ou diz qualquer coisa, podemos realmente estar a entender tudo ao contrário. É que, de facto, no caso da ironia, as palavras querem dizer exatamente o contrário do que significam.

    O que pode levar a um mal-entendido? Bem, o primeiro caso ocorre quando não se lê ou não se ouve bem; ou então não se chega a ler ou ouvir tudo o que se devia ler e ouvir. Nesse caso, o mal-entendido deve-se a quem lê ou ouve. Mas também se pode dar o caso que o mal-entendido se dê por causa de quem fala ou escreve, porque não é capaz de se exprimir como deve ser.

    Os mal-entendidos são mais frequentes do que julgamos. Mas há um outro mal-entendido que não depende nem da pessoa que escuta ou lê nem da pessoa que fala ou escreve. É o mal-entendido que depende da essência da linguagem. É o caso de línguas que não são a nossa e de livros que já foram escritos há muitos anos. É, por exemplo, o caso da Bíblia, escrita há muito tempo. Quando se traduz um livro assim, há que ter muita atenção à maneira como se traduz. No fundo, tem que se ter muito cuidado em ver qual é o significado da língua e das palavras nos vários contextos, para não fazer dizer o que lá não está escrito.

 10.2.  O sentido das palavras muda

    Podemos encontrar, por exemplo, palavras que não significavam, nessa altura, o mesmo que significam hoje. O seu sentido depende muito do contexto cultural e literário; mas também do contexto histórico. Acho que é bom ter isso em atenção também quando se trata da Bíblia. Veja-se o exemplo duma palavra atual que hoje tem várias aceções. É o verbo tomar. Pode-se tomar uma cidade, tomar uma limonada, tomar um caminho, tomar as rédeas dum cavalo. O mesmo verbo em português tem vários significados e, por isso, sempre que tivermos que o traduzir para outras línguas, se calhar, não podemos utilizar sempre exatamente o mesmo sinónimo nas outras línguas.

   Já agora, aproveito e dou mais um exemplo. É o verbo «bater». «Foi bater a um lugar errado» significa «chegou a um lugar errado». Se eu utilizar o sinónimo exato da palavra portuguesa traduzindo à letra para outra língua, provavelmente estou a fazer uma tradução sem pés nem cabeça, porque bater, no sentido original, não tem nada a ver com chegar. «Bater contra uma árvore» significa «chocar». Sei lá, a palavra «macaco» significa, antes de mais, um animal. Mas usa-se também para designar uma peça mecânica para levantar objetos pesados; e significa também um espertalhão. E também pode ser um insulto a uma pessoa. Enfim, os exemplos poderiam multiplicar-se quase até ao infinito. Ora bem, pode acontecer que a Bíblia, no original, contenha termos com múltiplos significados, e que, ao traduzi-los, possa haver enganos. Também na Bíblia, um termo pode ter mais que um sentido. Depende da linguagem e do contexto.

   Também há situações destas na Bíblia. E, quando é assim, não é fácil resolver o problema. Será possível estabelecer qual terá sido o sentido que o autor deu às frases ou às palavras? É possível, mas não é nada fácil. Por isso, teremos que recorrer e confiar nos especialistas nestes casos mais difíceis, porque eles queimam as pestanas, por assim dizer, só para estudaram uma determinada palavra ou uma determinada palavra. Sei de especialistas que escreveram obras só para tentar explicar o sentido duma vírgula, dum ponto ou dum ponto e vírgula. Acho que, a priori, podemos confiar, nesses estudos. É claro que, apesar de tudo, eles também se podem enganar, mas com certeza estão em melhores condições que o comum das pessoas para dar explicações sobre esses casos mais difíceis.

   Para ficarmos com ideias mais claras, permita-me que recorra, mais uma vez, ao caso de Os Lusíadas. Nem todos têm a capacidade de o explicar e interpretar. Mas todos podem aproveitar as explicações dos entendidos. Ora, a Bíblia, em relação às suas passagens mais difíceis, tem também os seus especialistas. E a verdade é que até se formou, para isso, uma ciência, que tem o nome de Exegese. Exegese é uma palavra derivada do grego que significa precisamente «explicação». Não vou falar sobre a forma como os especialistas chegam ao sentido mais exato dum determinado texto. Isso levaria muitos anos de estudo. Seja como for, uma coisa é certa. Devemos ter sempre diante dos olhos uma pergunta muito prática: o que é que o Senhor quer de mim através destas palavras?

 10.3.  Desfazer equívocos

    É preciso tomar algumas precauções ao ler a Bíblia, para evitar equívocos. Estou a lembrar-me agora, por exemplo, do costume que há de dizer que o primeiro pecado consistiu em Adão e Eva terem comido a maçã. Antes de mais, a Bíblia nem sequer fala de maçã. E, se calhar, ainda hoje, muitíssima gente está convencida que sim, que a Bíblia fala de maçã. Mas, mesmo que falasse, teria que se ver qual o contexto e qual o tipo de linguagem. Comer uma maçã não é pecado nenhum. Mas a verdade é que a Bíblia não fala de maçã. Não podemos, pois, cair no ridículo de fazer dizer à Bíblia aquilo que ela não quer dizer. A linguagem é para ser interpretada. É um pouco como se disséssemos em português: «Quando chegou a casa, comeu tantas que ficou de molho». Seria ridículo entender esta frase à letra. Se, no entanto, atendermos não ao significado das palavras em si mesmas mas ao sentido, não corremos o risco de as interpretar mal.

   A Bíblia tem que ser compreendida conforme o espírito da linguagem e a época, os autores e os estilos em que foi escrita. Se eu disser que uma página da Bíblia não é igual a uma página dum compêndio de Matemática, se calhar, logo vem alguém exclamar: «Olha a grande novidade»! Mas, se disser que a Bíblia não é um compêndio de História, se calhar, logo alguém se admira dizendo, por exemplo: «Mas então, afinal, não é verdade o que diz a Bíblia?». Mas, que conclusão! Também uma poesia pode conter a verdade e, no entanto, não é história. Narrar os sentimentos de alguém é dizer a verdade e, no entanto, não quer dizer que haja necessidade de dizer a que horas se levantou. Por faltarem esses dados, nem por isso deixa de ser menos verdade. Não se fala de datas, mas fala-se de sentimentos e interioridade, o que é muito verdade.

10.4.  Por trás da história

    A Bíblia – sobretudo a primeira parte ou AT – parece difícil? A linguagem, a mentalidade, os usos e costumes, tudo nos parece muito estranho e confuso? Há problemas que só os entendidos percebem? Tudo isso é verdade e, por isso mesmo, pouco a pouco, muitos acabam por desistir da sua leitura. Isso da criação do mundo, isso da passagem do Mar Vermelho e outras coisas assim... é tudo muito difícil. Que interesse pode ter tudo isso para mim, nos dias de hoje? Não estarei a perder tempo com historietas e coisas lá do Médio Oriente? Vivemos no século XXI e isso já não me interessa! Estão a contar-me uma história maravilhosa em que Deus é o protagonista o tempo todo. Mas, mesmo que eu acredite nisso, não vejo qual o interesse que possa ter para mim, hoje!».

   Da leitura da Bíblia podemos ficar com a impressão que Deus está aí em qualquer lado para tapar buracos. Se o mundo está tão mal – é a objeção de sempre – porque é que não intervém para salvar os oprimidos, para impedir as guerras, para acabar com os injustos, para impedir as catástrofes? A objeção, de resto, é séria. Mas isso só mostra que estamos a ler a Bíblia de maneira errada. É como se lêssemos, sei lá, a Branca de Neve e esperássemos também que a vida hoje fosse como nessa história. No entanto, como podemos dizer que essa história não tem nada a ver com a nossa vida?

10.5.  A história é dinâmica

   A Bíblia não nasce toda dum fôlego, digamos assim. Ela, é primeiro, relato oral, contado. Uma, duas, três, milhares de vezes. Trata-se de experiências de várias pessoas e experiências dum povo inteiro, que se vão fazendo história. São poesias, canções e histórias que existem há muito tempo, que vão passando duns para os outros e que, finalmente, alguém acha muito interessantes e, com medo que se percam, as reúne num livro ou em vários. A Bíblia nasceu um pouco assim. E é assim que deve ser lida. Como resultado da experiência dum povo que descobre que Deus é amigo, fala e age. A Bíblia é, pois, como se disse, essa história de amor e amizade entre Deus e o seu povo.

   Sendo assim, a Bíblia mistura, por assim dizer, Deus com os homens. Era assim que o povo de Deus via a sua vida ordinária de todos os dias. Nós, como nos consideramos cientistas, não misturamos Deus na nossa vida. O povo hebreu falava de Deus como se fosse um deles. E nós, ao afastá-lo da nossa vida, estaremos a ser mais corretos que eles? Não estaremos a errar mais do que eles quando nos recusamos a admitir que Deus seja parte da nossa vida?

 

 

11. PROTAGONISTA DUM FILME

    A Bíblia é a «história da vida» de Deus com o seu povo e também da vida do povo com Deus. Durante intermináveis serões, sentado nas tendas ou perto dos ribeiros no Egipto ou na Babilónia, o povo lembra incessantemente a história dos seus antepassados. A Bíblia é a história duma experiência, a história duma vida de séculos. A Bíblia não é um livro de ciência. Por isso, lê-la como se fosse ciência é um erro grave. A Bíblia não é sequer um catecismo. É, pois, errado lê-la como se fosse catecismo. A Bíblia é mais uma espécie de álbum e diário de família: o álbum e o diário da família de Deus. E é como álbum e diário da família de Deus que deve ser lida, sob pena de a interpretarmos mal.

 11.1.  A Bíblia não é manual

     Para conhecer alguém, posso estudar a sua árvore genealógica e classificá-lo segundo métodos científicos? Claro que posso. Saberei tudo dessa pessoa; excepto talvez que é uma pessoa que eu posso amar. Um historiador que escreve sobre Constantino, poderá saber tudo – ou quase tudo – sobre ele, mas alguma vez chegará a conhecê-lo verdadeiramente? Não, porque o conhecimento que interessa implica a convivência com esse alguém. Sem isso, pode ser uma figura importante da história, mas apenas em abstrato, porque a mim não me diz pessoalmente nada.

   Ao contrário, se eu passar meia hora a folhear, com alguém, o álbum de família, poderei ignorar a sua estatura, a cor dos seus olhos e os milhares de euros ou dólares que tem no banco, mas conhecerei um pouco do seu coração. É este conhecimento pessoal que interessa à vida. É por isso que a Bíblia não é propriamente um manual de teologia ou um catecismo. O papel da teologia ou do catecismo é fornecer-me noções o mais possível exatas acerca de Deus. Mas isso não chega. Eu posso saber muita coisa acerca dele e não ser capaz de O encontrar. Também o Demónio sabe muito sobre Deus e, no entanto, não quer nada com Ele. É isso mesmo. A Bíblia não tem por finalidade fornecer muitas noções sobre Deus, mas sobretudo ajudar-me a encontrar pessoalmente esse Deus que se fez companheiro da minha peregrinação terrena. A Bíblia é então o lugar onde bate o coração de Deus.

   Espero que nada disto cause estranheza. A teologia é a ciência que tenta sistematizar o que Deus diz e o que se diz de Deus. A Bíblia não é isso. A teologia precisa das fotografias, das cartas, dos papéis que são vida e que estão na Bíblia, para tirar as suas conclusões, mas não pode atirar com tudo como se já não fosse preciso. A teologia não pode prescindir desses 73 livros que compõem a Bíblia. São livros que foram sendo «amontoados», como numa prateleira, ao longo de cerca de 1000 anos. Mas são livros que são pedaços de vida e que são, sobretudo, o testemunho da presença de Deus no meio do seu povo. Certamente que Deus se foi adaptando ao povo, mas também o povo, por entre dificuldades e tribulações, se foi adaptando às exigências de Deus.

11.2.  Dois autores

   Na composição destes livros, colaboraram centenas de autores, com mentalidades, culturas e línguas diferentes (hebraico, aramaico e grego, pelo menos). É para tomar consciência disso que eu tenho vindo a fazer esta exposição. E é por isso mesmo que a Bíblia é um livro muito especial. Mas é também um livro único por outro motivo. O mesmo Deus, que foi acompanhando o povo, foi também instruindo os autores que o foram escrevendo. É o mesmo Deus que, através dos séculos e ao longo dos acontecimentos normais, vive com o seu povo e lhe vai indicando a maneira como a vida deve ser levada. E, para isso, vai inspirando algumas pessoas a dizer e a escrever aquilo que o povo precisa de ouvir e de pôr em prática ao longo da sua vida.

  Ao falar de inspiração, vejo-me obrigado a dizer o que se entende por isso; pelo menos em palavras pobres. Para começar, fique o seguinte. A inspiração bíblica é o facto de a Bíblia ter duas espécies de autor: Deus – através do Espírito – e o homem. É por isso que eu costumo dizer que a Bíblia é «a Palavra de Deus através de palavras humanas». Assim, segundo esta espécie de definição, o que está na Bíblia é, simultaneamente, tudo de Deus e tudo do homem. Embora as comparações claudiquem sempre, diria que é um pouco como quando eu escrevo. É certo que são diretamente os meus dedos que o fazem. Mas, como é óbvio, os meus dedos nada escreveriam se não estivessem dependentes do meu cérebro (no fundo, todo o meu ser). Na Bíblia, os autores humanos são como os «dedos» que utilizam a sua cultura, o seu temperamento, os seus defeitos até e as suas virtudes para escrever. Mas fazem-no sob a moção de Deus (o «cérebro»), sem o qual nada poderiam fazer.

   Quando escrevo qualquer coisa, sirvo-me da caneta, da esferográfica ou então duma máquina de escrever ou dum computador. Pois bem, em certo sentido, o autor de qualquer livro da Bíblia é como o instrumento de Deus. Mas há uma diferença importante, que não pode passar despercebida. Enquanto a esferográfica ou o computador, por exemplo, fazem o seu papel só mecanicamente, o homem, ao contrário, é um ser livre. Por conseguinte, enquanto instrumento, faz o seu papel, mas utilizando a sua liberdade, segundo as suas capacidades e características. Assim compreende-se que ele possa escrever com maior ou menor elegância, através de ficção ou poesia. Mas o importante é que Deus dirige o trabalho, respeitando embora a liberdade e capacidades do ser humano.

 11.3.  Verdade bíblica

    Lembro-me de antes ter feito uma leve referência também a um outro conceito, que é o da verdade bíblica. Partindo do princípio de que a Bíblia é a Palavra de Deus, então sabemos que ela não se pode enganar. E, no entanto – dizemos nós – os erros (ou, pelo menos, as inexatidões abundam): a criação em seis dias, a luz criada antes dos astros, etc. É verdade. Mas voltamos sempre ao mesmo problema: a Bíblia não é um manual de linguagem científica. A Bíblia usa o estilo do linguajar comum, com imagens, comparações e inclusivamente algumas expressões que não são exatamente proposições científicas.

    O astrólogo que diz ao seu filho de cinco anos: «O sol já nasceu. Vamos, levanta-te da cama!», porventura estará a cair em erro só porque diz que o sol nasce ou se põe? Claro que não! Não vai falar com o filho com uma linguagem científica, como se estivesse a fazer uma conferência a um grupo de cientistas. Ora, a Bíblia utiliza a linguagem comum, a linguagem de toda a gente; precisamente porque ela quer chegar a toda a gente. Por isso, também pode dizer que o sol nasce e anda à volta da terra. Mas isso não significa ensinar erros. Por outras palavras, em cada caso, é preciso ver o que o autor quer dizer com uma determinada expressão. Dizer que a Bíblia está a ensinar o erro quando diz que o sol anda à volta da terra, é ridículo. Da mesma forma, pensar, por exemplo, que a Bíblia ensina que o mundo foi criado em seis dias – nem mais nem menos – é também ridículo; e é recusar-se a entender que ela usa é linguagem popular.

 11.4.  Às voltas com o original

    Hoje, quando pegamos num livro, vemos logo o nome do autor na capa. Mesmo que o autor utilize um pseudónimo, isso está na capa. Quando ouvimos falar, por exemplo, de A cidade e as serras, sabemos que o autor é Eça de Queiroz. Mas, mesmo no caso em que não se saiba, é fácil descobri-lo. Basta olhar para a capa do livro. Mas não é assim com os livros da Bíblia; sobretudo com os livros do Antigo Testamento. De resto, temos a mesma dificuldade com outros livros da antiguidade. Com exceção de alguns, poucos livros da antiguidade indicam o nome do respetivo autor. E há mais: quando o nome do autor vem no livro, isso não quer dizer que se trate mesmo do autor real. Por estranho que pareça, sucede que, antigamente, não poucos autores punham aos seus livros o nome de outras pessoas mais célebres para que fossem bem acolhidos.

   Em alguns casos, é exatamente isso que acontece com certos livros da Bíblia. Sabe-se, por exemplo, que a Sabedoria (talvez o último do AT a ser escrito), que é atribuído a Salomão, de facto não foi escrito por ele. E por um motivo muito simples: o livro saiu pelo ano 50 a.C. e Salomão viveu por volta do ano 900 a.C. Pois bem, um desconhecido mestre de sabedoria pediu emprestado o nome daquele famoso rei, célebre pela sua sabedoria, para assim dar uma autoridade maior ao que ele queria transmitir. De resto, o original do livro é num grego moderno bastante elegante e sabe-se que, no tempo de Salomão, isso não era possível. Não só porque o grego moderno não existia, mas também porque nem Salomão falava ou escrevia grego de qualquer espécie.

 11.5.  Importância do nome

   A propósito, deixe-me dizer que todos os livros que antigamente eram atribuídos a Salomão – como, por exemplo, Sabedoria, Provérbios, Eclesiástico, Cântico dos Cânticosnão são da sua autoria; aparecem muitos anos depois de ele ter morrido. A mesma coisa se deve dizer dos primeiros cinco livros da Bíblia conhecidos por Pentateuco. Segundo o que se ensinava antigamente, esses livros eram atribuídos a Moisés. Mas o facto é que, segundo os estudiosos, a data de composição definitiva desses livros deve colocar-se à volta do ano 400 a.C. Ora, se Moisés morreu por volta do ano 1250 a.C., é lógico que, também nesse caso, se deu algo de semelhante ao que aconteceu com Salomão. Os autores dos livros do Pentateuco atribuíram-nos, por assim dizer, a Moisés para lhes dar uma outra autoridade junto dos leitores.

   Tudo pode parecer muito estranho: «Mas, então, isso quer dizer que há livros na Bíblia atribuídos falsamente a determinados autores?». Bom, eu não diria falsamente. Os livros da Bíblia são fruto duma mentalidade que nos é totalmente estranha. Os nomes – e ainda hoje é assim um pouco para os povos orientais – não são só um meio de identificação duma pessoa. Descrevem, de alguma forma, as características dessa pessoa ou do povo a que ela pertence. Para atribuir o nome a um livro, é preciso ter também isso em consideração. No caso do Pentateuco, é um conjunto de livros que falam da formação dum povo e do modo como esse povo foi ajudado a descobrir a sua identidade. Pois bem, para os judeus, que nome mais lógico para descrever todos esses factos que o de Moisés que significa «salvo das águas» – o grande libertador?

   Se um livro fala de sabedoria, como o sábio por excelência para os hebreus era Salomão, o autor ou autores desse livro não tiveram problema nenhum em atribuí-lo a Salomão. Se um livro fala de libertação, os seus autores não tiveram problema nenhum em atribuí-lo ao libertador por excelência, Moisés. Ainda hoje acontece que certos livros, que são escritos pelos alunos dum determinado professor, podem trazer na capa o nome do referido professor. Neste caso, como é evidente, embora não sendo ele o autor, o professor faz o favor de os lançar no mercado, assumindo ele próprio a responsabilidade do que eles escrevem.

11.6.  Livro vale por si

    O facto de os autores bíblicos atribuírem os seus livros a outras pessoas não quer dizer que deixem de ter valor. Acontece, por vezes, que os discípulos são melhores que os mestres. Não custa nada aceitar isso. Ou seja, o livro não deixa de ter menos valor por ser do discípulo e não do mestre. Há, por exemplo, muitas coisas que, embora não sendo dele, são atribuídas a Confúcio. Mas isso não quer dizer que não prestam. Antes pelo contrário, têm tanto valor que chegam até nós assim mesmo; de tal maneira que até o próprio Confúcio as poderia subscrever.

   O leitor da Bíblia não se deve atrapalhar só porque, por qualquer motivo, se chega à conclusão de que um dado livro não é da autoria de quem se julgava. Não se deve atrapalhar se lhe disserem que, por exemplo, o livro do Êxodo não é de Moisés. Não é o autor o que mais interessa. Se um dia lhe disserem que a Carta aos Hebreus não é de S. Paulo, não é caso para se atrapalhar. Seja qual for o seu autor humano, foi escrita sob inspiração de Deus. Portanto, tem para a fé o mesmo que valor que teria se tivesse sido outro autor qualquer. Seja qual for o autor humano dos livros bíblicos, todos eles têm um autor em comum: Deus.

   Há mais um facto curioso em relação à Bíblia. Raros são os livros do AT escritos por um só autor humano. Não custa muito perceber porquê. Trata-se de livros que foram escritos ao longo de muitos anos. São como uma casa antiga que demorou muitos anos a construir. Como regra, os que a foram fazendo não deixaram lá o seu nome gravado. O que não quer dizer que não seja uma casa bem-feita, segura e até bonita. Também algo de parecido se passa com a Bíblia. É uma construção que foi sendo feita ao longo dos anos por diversos artistas. O produto final tem um valor incalculável, embora não se saiba ao certo quem foram os seus autores. É precisamente a situação de muitos dos escritos que encontramos no AT. Para a posteridade, terá ficado o nome do último autor ou então do autor mais célebre.

 

 

 12.  TEMPO PARA ESCREVER

 12.1.  Leva séculos a ser escrito

  Ao contrário da maior parte dos livros que nós conhecemos, a Bíblia demorou alguns séculos a ser escrita. E disso não nos podemos esquecer. É claro que nós não somos especialistas. Mas não faz mal nenhum – antes pelo contrário – saber, por exemplo, que pode haver na Bíblia livros que levaram vários séculos a escrever; ou outros que tenham passado pelas mãos de vários autores. Ter isso bem presente constitui uma grande ajuda para entender melhor o contexto em que apareceram e, por conseguinte, a compreender melhor o seu sentido.

   Assim como um edifício qualquer pode ser consertado, ampliado, refundido, renovado e, às vezes até, reconstruído sobre a traça original, assim um livro também pode ser modificado de diversas maneiras. Uma casa pode ser adornada com uma peça vinda de fora e até com uma peça mais antiga do que a própria construção e que não tem diretamente a ver com o estilo utilizado. Também é possível fabricar objetos extra especificamente para essa casa. Como também se lhe podem introduzir peças mais recentes, caso se trate duma casa antiga. Até porque, hoje, ninguém dispensa, por exemplo, a eletricidade, a água, a televisão ou o computador, mesmo que esteja a viver numa casa do século XVIII.

   Ora, apliquemos essa imagem aos livros; e, particularmente, aos livros bíblicos. Sabemos que os livros hoje levam menos tempo a publicar. Mas, mesmo assim, em alguns casos, podem levar vários anos. Depende do conteúdo e de quem os escreve. Ora bem, em relação a muitos escritos do AT, eles foram sendo trabalhados por muitas mãos. E isso, em alguns casos, demorou até vários séculos. Pode-se mesmo dizer, sem receio de errar, que, raras vezes, os vários autores dum mesmo livro são contemporâneos. Ou seja, pode haver alguns livros que foram escritos por vários autores e que só ficaram completos com a mão do último autor, o qual viveu muitos anos depois ou até um século ou mais depois...

 12.2.  Vindo ao concreto

   Para entender melhor estas coisas, vou dar alguns exemplos. Podemos começar pelos primeiros 5 livros, também conhecidos por «livros de Moisés» e que hoje são conhecidos por Pentateuco. Esses cinco livros foram trabalhados durante mais de 500 anos. Isto quer dizer que, nesse edifício que é o Pentateuco, temos peças que são, suponhamos do ano 900 a.C., outras que são do ano 800, outras do ano 600 e assim por diante. Finalmente, por volta do ano 400, houve uma espécie de construtor que conseguiu completar a obra toda.

   Se é assim, então compreende-se perfeitamente que as páginas sejam diferentes umas das outras, que haja peças repetidas, outras um pouco modificadas e outras até colocadas onde não deviam estar. Pois bem, foi isso mesmo que aconteceu no conjunto de livros que leva o nome de Pentateuco.

   Dou agora outro exemplo: o livro de Isaías. Este livro levou quase quatrocentos anos a ficar pronto. O leitor comum não se dá conta disso, mas os peritos que podem ler o original logo deram conta que não podia ter sido um mesmo autor a escrevê-lo todo. É que havia coisas que claramente tinham sido escritas por alguém que não era certamente o profeta Isaías propriamente dito. O redator final é que lhe pôs o nome geral de Isaías para lhe dar mais autoridade.

   Hoje, os estudiosos estão em condições de distinguir os vários autores. E então, para facilitar o nosso trabalho, dividiram esse livro em três livros distintos, chamando-lhes simplesmente Primeiro Isaías (cc. 1-39), Segundo Isaías (cc. 40-55) e Terceiro Isaías (cc. 56-66). Um pouco mais tecnicamente, chamam-se também Isaías, Dêutero-Isaías e Trito-Isaías.

   O mesmo se pode dizer de outras obras; como, por exemplo, a obra que leva o nome de Zacarias. Calcula-se que, para ser escrito, foi necessário um mínimo de 200 anos. E, como é lógico, não é possível que o tenha feito um mesmo autor. De resto, são poucos os livros bíblicos do AT que pertencem a um único autor. Quanto aos poucos que se podem atribuir a um só autor, como, por exemplo, a Sabedoria e o Eclesiástico, isso deve-se ao facto de terem aparecido bastante tarde, quando já era habitual um único autor escrevê-los. A data de composição destes últimos livros é muito mais tardia, já bastante próxima da era cristã.

12.3.  Um caso especial

   Há no AT livros que supõem a influência grega em Israel. Gostaria de me referir a um em particular. É o livro de Job, cujo tema principal é o do sentido do sofrimento humano. Segundo os estudiosos, o livro está escrito num grego de tal perfeição que supõe a influência próxima da civilização grega. Mais: a sua estrutura literária é tão parecida com a do teatro grego que a sua datação não se pode colocar senão no contexto duma influência grega muito forte. Ora bem, se tivermos em conta que os gregos conquistaram a Palestina depois do século IV a.C., então teremos que concluir que a data de composição do referido livro tem que ser posterior pelo menos ao ano 500 a.C.

   O elemento referido dá-nos a ideia de como é possível datar os escritos da Bíblia. E também como é possível descrever as características dos seus autores. É assim que podemos saber, por exemplo, porque é que Moisés não pode ser o autor do conjunto do Pentateuco. Não é difícil identificar a época em que viveu um determinado autor quando ele toma posição perante algum acontecimento. Suponhamos que lemos um artigo em que se descreve uma manifestação antinuclear pelas ruas de Paris. Nós concluímos logo que não se pode tratar duma notícia de 1800, por exemplo. Claro! – pensamos. Então, por que não aplicar o mesmo critério aos outros livros e, particularmente, aos livros da Bíblia?

   Já agora, voltemos ao livro de Isaías. Neste livro, um dos autores escreve a respeito da invasão próxima dum povo chamado Assíria. Ora bem, é um dado histórico que isso se deu por volta do ano 600 a.C. Ora, acontece que no mesmo livro há referências a Ciro e, depois, também a Dário, que derrotam e aniquilam os assírios por volta do ano 500. E não é tudo. Mais adiante, fala-se do ambiente do exílio e da perspetiva da libertação. Isso, em termos de datação histórica, significa que estamos a aproximar-nos já do ano 400. A conclusão imediata então é que esse livro foi escrito ao longo de pelo menos 200 anos. É lógico que esse livro foi escrito por mais que um autor; concretamente, por três.

12.4.  A datação dum livro

   Mas é possível datar os livros bíblicos, sendo eminentemente religiosos? Porque não? Imaginemos, só por hipótese, que encontramos num livro devocional qualquer o seguinte: «Enxotai-me, Senhor, da vossa presença, como a um cachorro imundo». Podemos tirar pelo menos uma conclusão: não se trata de uma oração atual, porque hoje ninguém usa esse tipo de linguagem. Ora bem. Temos aqui um elemento para colocar a data de composição dessa suposta oração para antes da nossa época. Por outros motivos e outros indícios, chegaríamos a uma data mais ou menos exata. Bem, isto são apenas pistas para nos guiarmos. E, mais, é um trabalho que é feito por especialistas que, em princípio, merecem a nossa confiança.

 12.5.  Desordem ordenada

   Quem não estiver prevenido e folhear pela primeira vez a Bíblia, pode julgar que foi escrita pela ordem em que os vários livros se encontram. E, sendo assim, os livros que estão em primeiro lugar teriam sido escritos primeiro e os que estão em último lugar teriam sido os últimos a ser escritos. Só que a conclusão não é necessariamente essa. Isso em relação à Bíblia; e também em relação a qualquer outro livro. Pode perfeitamente acontecer que o autor dum romance tenha escrito primeiro a parte final, depois tenha montado o esqueleto e só depois tenha preenchido o esqueleto.

   Na Bíblia encontramos, com muita frequência, até no mesmo livro, partes e trechos de diferentes épocas. Vamos então, por exemplo, ao início da Bíblia. As primeiras e célebres palavras do início da Bíblia são estas: «No princípio criou Deus o céu e a terra». Quererá isto dizer algo de especial? Terão sido de facto as primeiras palavras a ser escritas? Limito-me a dizer que o facto de estarem em primeiro lugar não quer dizer que tenham sido as primeiras a ser escritas. A história de Adão e Eva, por exemplo, vem depois delas e, segundo os entendidos, foi escrita 500 anos antes dessa primeira frase bíblica.

   É certo que não conhecemos nenhum livro atual que tenha levado, não já 500 anos, mas cinquenta anos a escrever. Mas isso não quer dizer que tenha sido escrito, digamos assim, de jacto, de fio a pavio, desde a primeira linha até à última. Como regra, não é assim que nascem os livros. Aliás, devo dizer que, como regra, há certas partes dos livros, mesmo hoje, que são as últimas a ser escritas, mesmo quando são colocadas em primeiro lugar. É o caso, por exemplo, dos prefácios. Como regra, o prefácio, seja do próprio autor, seja de outro, é feito depois de o livro estar concluído. Nada de estranhar que, por exemplo, na Bíblia, haja trechos e páginas em primeiro lugar e que tenham sido escritas depois.

12.6.  Crédito aos exegetas

   Quem não é exegeta não está em condições de dizer quais são as partes que foram escritas primeiro e as que foram escritas depois. É preciso ser especialista na matéria. Mas o que não nos deve causar admiração é precisamente esse facto. Pode acontecer também, sobretudo em autores orientais, que a mesma coisa seja dita ou escrita mais que uma vez e de maneira diferente; ou seja, com pormenores que não são exatamente iguais aos outros. Pode haver diferenças de perspetiva. Ou seja, podemos encontrar livros em que se fala do mesmo assunto, mas com perspetivas diferentes. Nesses casos, então, é preciso saber que o que interessa aos autores é a mensagem central.

   Exemplo disso temo-lo logo no livro do Génesis. Se, por acaso, se quiser dar ao trabalho de pegar nele, há de reparar sem muito esforço que o relato da criação é feito de duas maneiras: o primeiro relato é muito solene e começa com a criação do mundo e das coisas e acaba com a criação do homem; o segundo relato (capítulo 2) já é muito mais popular e apresenta Deus de maneira mais «humana»; como alguém que como que faz parte da vida concreta das pessoas. Nota-se, com alguma facilidade, neste segundo relato, que Deus não é alguém distante, para lá das nuvens; ao contrário do primeiro relato. Ora bem, quer isto dizer que os dois relatos estão em contradição? Não. Quer dizer apenas que são duas maneiras diferentes de dizer como começou a vida na terra. Como é óbvio, não de maneira científica, que não era isso que interessava aos leitores destes relatos, mas de uma maneira normal, ou seja, para que as pessoas descobrissem que, na origem da vida e de todas as coisas, tinha estado Deus.

 12.7.  Os saltos no tempo

   Como os livros bíblicos, particularmente os do AT, levaram muitos anos a escrever (vários séculos, como se disse), é muito natural que deparemos com coisas que podem deixar admirados os menos atentos. Por exemplo, em algumas frases apenas, podemos deparar com enormes saltos no tempo. Ou seja, no espaço de algumas frases ou até na mesma frase, podemos ter referência a coisas que se deram em épocas muito distantes. É aquilo a que podemos chamar a redução do tempo real. Mas não parece que isso seja anormal, uma vez que seria impossível elencar tudo o que aconteceu durante um certo arco de tempo. De resto, é isso mesmo o que fazem até os manuais de história modernos que, numa simples frase, resumem, sei lá, todo um século de história.

    Quando se verifica um salto de muitos anos ou até de séculos numa única frase dum livro, isso pode atrapalhar muita gente. E, nesse aspeto, se calhar, não há nenhum livro semelhante à Bíblia, porque não se trata apenas de saltos de centenas de anos, mas de milhões até. E, pensando bem, é possível que os saltos sejam tanto maiores quanto mais os acontecimentos referidos datarem dos primórdios da humanidade. É que, na verdade, não havia nesses tempos imemoriais a possibilidade de recolher dados e, por isso, ao fazer a história desses tempos, os autores de manuais limitam-se a dizer algumas generalidades. É natural que haja mais documentação relativa, por exemplo, ao século XX, do que ao primeiro século da nossa era. Mas, mesmo nesse caso, procuremos imaginar o que é que dirão do século XX os historiadores que viverem no século XXX.

 

 

 13.  TEXTO E CONTEXTO

    Qualquer livro da antiguidade apresenta dificuldades de compreensão para as pessoas de hoje por um motivo muito simples: não é fácil entender as circunstâncias e a língua original em que foi escrito. E não é preciso ir muito atrás. Não é muito fácil entender, por exemplo, alguns livros dos princípios da literatura portuguesa, sem a ajuda de especialistas na matéria. Pois bem, a Bíblia, como livro da antiguidade, não foge também a essas dificuldades. E por isso também nós precisamos da ajuda de especialistas para a entender.

13.1.  Exemplos normais

   Quando tenho entre mãos uma antologia de trechos literários diferentes entre si, qual o segredo para os entender? É servir-me da ajuda de algum especialista. Ele situa a obra dos vários escritores e assim acaba por situar também o leitor. Quem faz a introdução a uma antologia assim, chama a atenção para a época em que um determinado escrito apareceu, bem como para os saltos que eventualmente é preciso fazer no tempo para situar melhor a obra. Chama-se a isso dar o contexto da obra ou obras em questão.

   O leitor da Bíblia enfrenta também questões como essa. Se não é especialista, então tem que aproveitar os comentários dos especialistas para tirar melhor partido da leitura das páginas bíblicas. Felizmente, hoje, as coisas estão melhor do que há uns anos atrás. Hoje em dia, as edições da Bíblia em língua corrente já são muito boas. Como regra, trazem uma introdução bastante completa. E, antes de cada um dos livros, há notas e comentários que são bastante completos e extremamente úteis – e talvez indispensáveis – para uma melhor compreensão do livro. Dá trabalho, isso de ler notas e comentários? Claro que dá. Mas, se estamos interessados em perceber, é melhor aproveitá-los.

   Seguindo esses comentários, bem como as notas de rodapé, vamos compreendendo um pouco melhor. Esses comentários e notas ajudam-nos a entender melhor o texto em si, e também o contexto em que apareceu. O contexto é importantíssimo. Em relação a qualquer livro e também em relação à Bíblia. Com um pouco de esforço e atenção, ler a Bíblia, se calhar, até é mais fácil do que parece à primeira vista.

13.2.  Linguagem popular

    É preciso ler a Bíblia sem preconceitos. Certamente aproveitaremos pouco da sua mensagem quando a lemos para ver se encontramos nela algum defeito ou então algum erro. Escuso de repetir que a linguagem da Bíblia não é uma linguagem científica, mas uma linguagem normal, própria da vida concreta das pessoas. Quando eu digo que o sol se põe no horizonte, obviamente não estou a utilizar uma linguagem científica rigorosa – que, de resto, não é necessária – mas sim uma linguagem tirada do linguajar comum. É este tipo de linguagem que a Bíblia usa. E, por isso, se também a Bíblia diz que o sol se põe, não está a cometer nenhum erro. Está só a utilizar a linguagem normal.

   Se há defeitos e erros, se calhar, é em nós mesmos. A pergunta que devemos fazer sempre é a seguinte: Estou ou não a procurar ler sem preconceitos? Na leitura da Bíblia, exige-se honestidade de inteligência e de coração. Isso é fundamental para crentes e não crentes. Ora, infelizmente, o que acontece, por vezes, é que se vai «investigar» a Bíblia para ver se lá se encontra alguma contradição e alguma inexatidão científica. Como se fosse isso que interessa aos autores bíblicos! O que interessa é se há alguma inexatidão no plano religioso.

13.3.  Mensagem religiosa

    A linguagem da Bíblia usa todo o tipo de géneros literários para transmitir uma mensagem religiosa. Não exijamos então que utilize só uma linguagem científica ou mesmo estritamente teológica. O que de facto interessa é o conteúdo e não a forma. Quando a Bíblia conta uma história, por exemplo, o mínimo que se espera é que o leitor a não interprete como narração dum facto histórico. Seria como quem, ouvindo contar a história do Conde Drácula, fosse por aí fora proceder exatamente como ele; ou seja, fosse por aí fora morder pescoços, julgando que beber o sangue dos outros é a maneira de nunca morrer.

   Não é a interpretação literal em si mesma que interessa, mas sim o sentido espiritual. Quem interpretasse à letra, por exemplo, a frase «As colinas saltam como cabritos», eu não duvidaria que estava a fazê-lo por má-fé, pois estaria a querer ridicularizar a Bíblia atribuindo a essas palavras um sentido que não é senão metafórico. Não se trata, como é evidente, dum milagre de Deus que faz saltar as montanhas dum lado para o outro. É uma figura de linguagem para veicular a ideia de alegria. Mais nada. Quem interpretasse, portanto, essa frase em sentido literal, estaria, no mínimo, a ser pouco sério.

 

 

 14.  UM POVO ESPECIAL

 14.1.  História humana e divina

   A história do povo de Deus é característica, como a própria Bíblia é característica. Ou seja, é uma história ao mesmo tempo humana e divina. Numa ótica de fé, é certo que a história de todos os outros povos é também, de alguma forma, simultaneamente divina e humana, na medida em que é feita por homens sustentados pelo sopro divino. Mas, nesse aspeto, a de Israel é muito especial. A história de Israel é especialmente «condicionada» pela presença de Deus.

   Assim como a Bíblia é condicionada pelo aspeto humano, assim também a história de Israel é perpassada pelos condicionamentos humanos: pela geografia, pela época, pela cultura e ambiente, pela mentalidade vigente. Nesse sentido, é uma história que não escapa às leis gerais da história.

   O que não escapa também às leis da evolução é a religião de Israel. A religião, sendo para o homem (e não o homem para a religião) também se desenvolve e progride. Não porque o Deus que é objeto da religião muda, mas sim porque as pessoas progridem e assimilam pouco a pouco as coisas. É, pois, natural que, num estádio de maior amadurecimento, as pessoas tenham noções mais exatas sobre certas coisas da religião. Ora, isso também está amplamente documentado na Bíblia, que testemunha a forma como o povo de Deus foi tendo um conhecimento cada vez mais perfeito de Deus.

14.2.  Reação peculiar

   Concretizando, nota-se que o povo de Israel, no campo específico da religião, seguiu uma evolução original, se comparado com outros povos. O que põe logo uma pergunta ao historiador despido de preconceitos é o seguinte: porque é que, em certos casos, o povo hebreu não reagiu como outros povos? Antes de responder a isso, o historiador sem preconceitos deve perguntá-lo a esse mesmo povo. E então esse povo responder-lhe-á: «Visto que me deixei apanhar por Deus, sou um povo que fala de Deus e um povo a quem Deus fala». E, se é assim, então a maneira como esse povo vê as coisas que o rodeiam tem que ser diferente da dos outros povos. De resto, isso acontece também com os indivíduos. Há reações na vida das pessoas que não se compreendem senão depois de sabermos um pouco das suas conceções filosóficas e religiosas.

    O mesmo se dá com os povos. Concretamente, com o povo judeu. Nesse sentido, o povo judeu é um povo à parte. Ele tem um entendimento da história diferente do dos outros povos. E isso deve-se a um fator externo. É que há Alguém que interfere, digamos assim, na sua vida. O povo sabe-o e toma constantemente consciência disso. E age também em conformidade com essa consciência. No entanto, isso não o livra de continuar a ser um pequeno povo; quase sempre combatido e encurralado. E a Bíblia fala dessas coisas e dá conta dessas contingências. Mas, ao mesmo tempo, vai-lhe dizendo que há Alguém que é mais importante que tudo isso. É Aquele que dá sentido à vida da gente. E isso Israel soube-o transmitir de forma inigualável.

 14.3.  Outros fatores

   Um dos fatores que influenciam Israel é a sua situação geográfica. Basta pegar num mapa do Médio Oriente para chegar a conclusões interessantes: mares, montanhas, vales e muitos desertos. Isso vai obrigar as pessoas a procurar os poucos lugares férteis junto dos lagos e dos rios. É por isso que o povo de Israel começa como povo nómada e viverá sempre empurrado dum lado para o outro. Israel está rodeado, de um lado, pela atual Arábia e pelo Egipto, e, do outro, pela Mesopotâmia que, em termos atuais, engloba a Turquia, a Síria e o Iraque. E o que acontece quando os vizinhos são grandes? Fazem guerra. Como ainda acontece hoje. E os que estão no meio é que sofrem. Israel esteve sempre – e continua a estar – nessas condições. Foi guerreado pelos outros de todas as formas. E a Bíblia documenta abundantemente essa situação.

   O pai da nação judaica, digamos assim, é Abraão. Abraão é natural da Mesopotâmia. Mas sai da sua terra – Ur (que ainda hoje existe) – e vai instalar-se em Caná, aos pés do monte Hebron (donde deriva o nome de hebreus). Depois, os seus descendentes são levados para o Egipto, onde vivem uns 400 anos. Aí, como é natural, foram influenciados pelos egípcios, com os quais, de resto, continuaram a ter contactos. Através dos tempos, estiveram também em contacto com os assírios e os babilónios. Depois, sofreram a influência dos persas, dos gregos e dos romanos. Ora, todo este mosaico de influências tem que ter repercussão nos livros da Bíblia. Isso explica então que a Bíblia, ao contar a história desse povo, fale também destas coisas todas.

   Mas estas movimentações todas não complicam a leitura e a compreensão da Bíblia? Claro que sim. Mas isso não quer dizer que tenhamos, só por isso, que desistir da sua leitura. É certo que a Bíblia é Palavra de Deus, mas para a compreendermos, tem que ser incarnada na história das pessoas. No caso concreto, foi incarnada sobretudo na história dum povo concreto, que foi Israel. Se queremos, pois, entender qual a mensagem que Deus nos quer transmitir pela Bíblia, temos que nos esforçar por saber e entender um pouco a história desse povo.

 14.4. Recorrer a quem sabe

   É certo que, para saber essas coisas e também para saber qual a mentalidade dos povos que influenciaram Israel, temos que recorrer aos especialistas. Mas onde é que está a vergonha de recorrer a quem sabe mais do que nós? Não sabemos nem somos obrigados a saber tudo. Sendo assim, então aproveitemos todas as explicações e todas as notas que encontramos nas nossas Bíblias, para entendermos cada vez melhor a história desse povo. Através dessa história, perceberemos melhor a mensagem que por ela nos é transmitida.

   Claro que não temos que saber toda a história. Mas não há dúvida que alguns livros deixam de ser compreensíveis se não soubermos pelo menos alguma coisa. Para já, uma coisa parece-me fundamental: o povo de Israel descrito na Bíblia não viveu no nosso século. E acho que isso nunca o devemos esquecer para entender bem a Bíblia.

 

 

15.  TRADIÇÃO ORAL NA BÍBLIA

15.1.  Tradição oral

   Como disse antes, a Bíblia só começou a ser posta por escrito a partir do século X a IX a.C. Então as coisas anteriores como, por exemplo, a história dos patriarcas, de Moisés e dos Juízes, como é que apareceram? Através da tradição oral. Isto pode causar a alguma admiração a quem vive numa época como a nossa em que tudo se escreve. Quase tudo o que sabemos, é através dos livros, das revistas, dos jornais e outras formas de escrita. Mas não foi sempre assim. Principalmente porque, antigamente, os materiais de escrita, como papel e a tinta eram difíceis de arranjar.

   Por outro lado, se pensarmos que, até ao tempo de David, o povo de Israel era um povo de nómadas, então talvez compreendamos que material desse género era muito difícil de transportar dum lado para o outro. Algumas coisas – poucas e as mais importantes – foram escritas; sobretudo o que tinha a ver com a vida económica e política – digamos assim. A esse propósito, estou a lembrar-me, por exemplo, das tábuas da Lei (ou Dez Mandamentos). Mas a maioria das coisas não eram escritas. Até ao tempo de David, altura em que o povo se estabelece com alguma regularidade num local determinado, a tradição oral desempenhou um papel muito importante.

15.2.  Primeiras coleções

   Mas será possível ter a certeza que a tradição oral antiga é digna de confiança? Ou seja, se grande parte dos escritos bíblicos iam passando de geração em geração, através da via oral, como é que podemos estar seguros de que foi transmitido como devia ser? Sendo ainda mais concreto, como é que essas coisas que foram sendo transmitidas por via oral chegaram inteiras, por assim dizer, 500 anos mais tarde, até que fossem escritas? Bem, a primeira resposta óbvia é esta: foram passadas ao «papel» as tradições orais tal como chegaram ao tempo em que foram escritas. Ou seja, não quer dizer que aquilo que ficou escrito a partir de David ou Salomão fosse exatamente igual ao que se contava 500 anos antes. Mas, no fundo, o que conta e o que nos interessa é o que ficou escrito.

15.3.  Para compreender

   Temos que reconhecer que ainda hoje a tradição oral continua e tem valor. Estou-me a lembrar, por exemplo, das poesias e jograis que são usados para jogos. São pequenos versos muito simples que se recitam enquanto se fazem brincadeiras. São poesias que até as crianças aprendem através de tradição oral. Está provado que, por causa da estrutura linguística, que é o verso e o ritmo, não sofreram alterações substanciais através dos tempos. E o motivo é simples: mudando uma palavra, perder-se-ia não só a rima, como também o ritmo e, portanto, seria impossível conservar o conjunto. É claro que há coisas que se perderam, mas o que parece evidente é que o que se conserva foi sempre mais ou menos assim, desde que apareceu até chegar a nós através da tradição oral.

15.4.  Verso e rima

   O mesmo fenómeno se dá no que se refere a muitos trechos da Bíblia. Muito do que há na Bíblia, muitas coisas no original são precisamente em verso e com um ritmo especial. E não me estou a referir só aos salmos. Há muitos outros textos espalhados por diversos livros da Bíblia. Nas traduções, não é fácil verificar se são em verso e em ritmo, porque as traduções não são feitas em forma de verso e ritmo.

   Por curiosidade, pego na minha última versão da Bíblia em português e o que verifico? Que, com exceção dos livros que podemos chamar históricos, há muitas páginas dispostas em forma de verso (embora sem a rima como no original), nomeadamente os Salmos e os livros proféticos e sapienciais. Abrindo, por exemplo, o livro de Job, depreende-se que a maior parte dele foi escrito em poesia. O mesmo se diga do livro dos Provérbios, do Eclesiastes, do Cântico dos Cânticos, da Sabedoria, do Eclesiástico e do Profeta Isaías, bem como parte dos outros livros proféticos. No que se refere ao NT, já não havia tanto essa necessidade. Mas, mesmo assim, encontram-se várias passagens em forma poética.

   Voltando à tradição oral, pergunta-se: É atendível ou não? Certo. Se somos capazes de o admitir em relação a outras obras da literatura mundial, por que não em relação à Bíblia? A propósito, já alguma vez se perguntou porque é que a letra das canções é quase infalivelmente em verso? Porque tem rima e ritmo, adaptando-se à música, e porque, assim, é mais fácil de fixar. Por outro lado, o autor é obrigado a dizer o máximo com o mínimo possível de palavras. Não nos admiremos, pois, que a Bíblia recorra também a fórmulas que são mais fáceis de decorar. Era essa a melhor forma de uma série de coisas sérias e importantes chegarem até nós. A tradição oral servia-se dessas fórmulas para transmitir de geração em geração o que era importante. E, no fundo, foram essas fórmulas que garantiram que não houvesse qualquer mensagem distorcida.


 

16.  O PAPEL DOS PROFETAS

16.1.   Em tempos difíceis

   Ficámos a saber que Israel atingiu o seu apogeu no reinado de Salomão. Era, finalmente um reino unido e pacificado. As tribos do Norte e as do Sul unidas sob o cetro dum único rei, com a capital em Jerusalém. Só que, já com Salomão, as coisas começaram a complicar-se. Porquê? Porque Salomão insistiu demais em querer ser um grande senhor, rodeado de todos os luxos e de todo o esplendor. Isso originou naturalmente a exploração do povo, cobrando pesados impostos e levando uma vida dissoluta. É verdade que a sua sabedoria era lendária, mas isso não bastava.

   A introdução de novas taxas e de trabalhos forçados para sustentar tanto luxo vai ser o fermento da revolta, que acabará por explodir, logo a seguir à morte de Salomão. O filho que lhe sucede, Roboão, ao contrário do pai e do avô David, era um político estúpido e incompetente. E a sua incompetência foi de tal ordem que, bem depressa, deu origem à separação das tribos do Norte do país. E, sendo assim, o Reino de Israel unido durou apenas 70 anos. Por isso, a partir do ano 931 a. C., passa a haver, não um Israel, mas dois: o do Norte, com a capital na Samaria; e o do Sul, com a capital em Jerusalém.

   No Reino do Sul, também chamado Reino de Judá, por ter sido no Sul que se estabeleceu a tribo de Judá, continuaram a reinar os descendentes de David. No Reino do Norte, vão-se revezando os descendentes de várias tribos. E, como o Reino do Norte era maior em espaço geográfico e representava a maioria das tribos, eles começaram a designar-se a si mesmos, sem grande cerimónia, pura e simplesmente por «Reino de Israel». No fundo, foi devido a este facto que também houve não poucas inimizades e guerras entre um e outro Reino.

   Faço aqui um parêntese para esclarecer o motivo por que ouvimos nomear Israel de diversas maneiras. Na Bíblia, a Israel dá-se, às vezes, o nome de Judeia. Daí o facto de os israelitas serem também conhecidos por judeus. Este nome deriva obviamente do Reino do Sul ou Judá (também dito Judeia). Outras vezes, é simplesmente Israel. E isso deriva do motivo que já expliquei. Ao território como tal chama-se também Palestina. Pois bem, este nome deriva do lugar que começaram por ocupar e que era o lugar onde viviam os filisteus. Os habitantes, chamados filisteus, é que terão dado origem ao nome do lugar: Palestina. Por outro lado, a Bíblia chama aos judeus também hebreus. Ora bem, este nome deriva da região em que o seu primeiro antepassado, Abraão, se fixou depois de ter saído da sua terra. O nome desse lugar era Hebron. Donde o nome de hebreu. Nós usamos esses nomes indiferentemente para designar o povo judeu. E, de facto, esses nomes, ao fim e ao cabo, querem dizer a mesma coisa.

   Mas voltemos aos dois Reinos. São dois reinos irmãos, mas estão separados por interesses diferentes e por chefes diferentes. São da mesma raça – ou seja, são todos judeus, digamos assim – adoram o mesmo e único Deus, possuem as mesmas tradições, mas, depois da morte de Salomão, são irmãos inimigos. É certo que, pontualmente (como se diz agora) se aliam para combater qualquer inimigo comum, mas isso é sol de pouca dura. Na maior parte dos casos, a partir do sucessor de Salomão, começam é a combater-se acerrimamente um ao outro. Quem tiver a curiosidade de saber os nomes dos reis destes dois reinos, poder ler o I Livro dos Reis, começando no capítulo 12.

 16.2.  Aparecimento dos profetas

  São páginas que se leem quase como um romance. Mas, mais importante que os reis propriamente ditos, são outras figuras, que aparecem sobretudo nessa ocasião. Trata-se dos profetas. Estes são tão importantes, que vou falar deles numa conversa à parte. Agora, o facto de se ter dado essa divisão entre Reino do Norte e Reino do Sul não significa que tudo terra corrido mal logo de início. Não. Durante algum tempo, as coisas até correram bastante bem. Pelo menos, no aspeto económico e social. Tanto é assim que, por volta do ano 750 a.C., os dois reinos atingiram grande prosperidade material.

  Essa prosperidade tem uma explicação política, digamos assim. Em termos de força, esses dois reinos, bem como Damasco, que ficava ao lado, equivaliam-se. Ou seja, tinham uma força limitada. E, por isso, não constituíam ameaça para os povos vizinhos mais poderosos. De resto, era claro para os seus responsáveis que era melhor não se meterem com os grandes. Sendo assim, arriscariam a própria independência se começassem a litigar uns com os outros, porque nem mesmo os grandes gostam de pequenos à bulha. Por outro lado, as «grandes potências», como o Egipto e a Assíria, já não eram o que tinham sido e estavam ocupadas com outras guerras. Então, esses reinos mais pequenos procuraram estabelecer condições de paz entre si. Uma das consequências disso foi o progresso material.

16.3.  Direito por linhas tortas

   Foi a partir do reinado de Salomão que a Bíblia começou definitivamente a tomar forma escrita. O que, porém, não quer dizer que a sua composição tenha terminado nessa altura. Este tempo foi também o templo do luxo, do materialismo e do princípio da decadência. E o primeiro sinal disso foi a divisão do Reino: o Reino do norte, com a capital na Samaria; e o Reino do Sul, com a capital em Jerusalém. Por meados do século VIII a.C., mais concretamente, no ano 750, estes dois reinos atingiram grande prosperidade. Mas também aí começaram os sinais da decadência, porque o povo se esqueceu do seu Deus e os ricos oprimiam os pobres. É nestas circunstâncias de esquecimento de Deus e de não observância da Lei que apareceram os profetas.

16.4.   Purificar a ideia de profeta

 Para muitas pessoas, entre as quais muitos cristãos, a palavra «profeta» não tem um significado muito claro. E, se calhar, por vezes, é até uma ideia errónea. Para muitos, profeta equivale a adivinho do futuro. Ora bem, segundo esta conceção, o profeta seria alguém encarregado de anunciar cataclismos e desgraças. Ora, o profeta não isso, a não ser acidentalmente. O profeta pode, eventualmente, anunciar desgraças, mas não é por ser profeta. O profeta não é, em primeiro lugar, adivinho, mas sim, fundamentalmente, aquele que fala em nome de alguém. Profeta de Deus é o que fala em nome de Deus. Trata-se duma espécie de «porta-voz» de Deus, digamos assim; sobretudo nos momentos em que o povo tem mais necessidade de alguém que o conduza pelos caminhos do Senhor.

   Quando é que os profetas são mais necessários? Como em qualquer reino ou governo ou como em qualquer tempo, também nos Reinos de Israel, os profetas são mais necessários quando a decadência moral mais se acentua. Não admira, pois, que os profetas tenham sido mais numerosos na altura em que se dá a separação entre o Reino do Norte e o Reino do Sul. A decadência moral a que se tinha chegado justificava plenamente a presença e atuação dos profetas.

   Devo acrescentar que não havia profetas só em Israel. De facto, conhecem-se outros oráculos também fora de Israel. São conhecidos, por exemplo, oráculos na Babilónia, em Nari (atual Líbano) e em Moab (atual Síria). Então – é a pergunta que se pode fazer – como é que as pessoas distinguiam os falsos dos verdadeiros profetas? Se várias pessoas se apresentassem a falar em nome de Deus, como é que se podiam distinguir? Ou seja, o problema era distinguir entre quem falava realmente em nome de Deus e quem não falava. Quanto a este assunto, há na Bíblia alguns critérios de distinção; mais concretamente no livro do Deuteronómio. Mas, no fundo, todos os critérios se reduzem ao seguinte: o profeta verdadeiro não é tanto alguém que se distingue por sinais extraordinários, mas sim alguém que é fiel à fé autêntica a Javé; alguém que está disposto a sacrificar a própria vida por essa causa, se for preciso, relembrando os compromissos derivados da Lei de Moisés.

16.5.  Função dos profetas

   Os profetas eram homens dotados duma grande fé e dum aturado sentido das realidades e do ambiente político e social. Face à forma como as pessoas se comportavam (quer autoridades religiosas quer autoridades civis), os profetas eram os que estavam em condições de prever qual seria o rumo que as coisas iam tomar. Conforme as circunstâncias, denunciavam injustiças, convidavam à mudança de vida e motivavam para a esperança, quando viam que o povo se deixava abater pelo desânimo. Os profetas eram sentinelas que diziam que a história é mais que o simples correr dos acontecimentos.

  Os profetas verdadeiros não escolhem a missão de falar em nome de Deus por interesse pessoal ou por projetos políticos. Eles fazem-no em nome do amor que Javé dedica ao seu povo. Mais: fazem-no com coragem e, tantas vezes, chegando a pagar um preço bem alto. Com efeito, muitos sofrem e morrem às mãos dos ouvintes, que não suportam as suas palavras. Como regra, a missão dos profetas nunca é agradável em termos humanos. Se pegarmos, ao acaso, em qualquer um dos livros proféticos, nomeadamente no Livro de Jeremias, talvez encontremos, com facilidade, a confirmação do que estou a dizer (cf., por ex., Jr 18-18-20).

   É sempre ingrato ter de dizer às pessoas uma série de coisas que elas não gostam de ouvir. E muito mais em casos como o de Jeremias, que era um tímido por natureza. O que ele queria era viver em paz e tranquilidade, sem ter que aceitar certas responsabilidades, que aparentemente ultrapassavam as suas capacidades de comunicação. Concretizando um pouco o conceito, um dos critérios de que os profetas são autênticos é o facto de terem que pagar com a incompreensão, o sofrimento, a perseguição, e inclusivamente, por vezes, até com a própria vida. Bem vistas as coisas, estão nessas condições, em maior ou menor grau, todos os profetas que temos na Bíblia como verdadeiros: tanto os profetas escritores como os que o não foram. Por estranho que pareça, é esse o destino dos profetas de todos os tempos. Paradigma disso é, por exemplo, também João Baptista.

   Quando é que viveram os profetas? Um pouco em todas as épocas da história de Israel; mas mais sobretudo quando o povo precisava mais da palavra de Deus, por andar afastado dos seus caminhos. Encontramos profetas no início da história de Israel. O mais conhecido é, sem dúvida, Moisés e o irmão de Moisés, chamado Aarão. Fazendo um grande salto no tempo, por altura dos Juízes, depois da fixação do povo de Israel em Caná e imediatamente antes da monarquia, o mais conhecido é Samuel. Um século mais tarde, quando o Reino de Israel se divide em dois, temos dois nomes muito célebres: Elias e Eliseu.

16.6.  A época dos profetas

   Apesar disso, é que só por volta de 750 a.C. (dois séculos e meio depois de Elias e Eliseu) temos os chamados profetas escritores. Chama-se-lhes assim não porque sejam mais ou menos importantes que os outros, mas simplesmente porque nos ficou o testemunho escrito do que eles disseram durante a sua vida. Por unanimidade, e segundo os estudos mais sérios, o primeiro profeta escritor foi Amós, que viveu uns anos antes de Oseias. Ambos viveram e profetizaram no Reino do Norte, onde a corrupção e imoralidade eram maiores.

   Há um facto interessante a notar em relação ao primeiro profeta escritor. Embora seja um pastor rude nascido em Belém – portanto, numa localidade do Reino do Sul – é enviado para a capital do Norte, Samaria. Como é que esse facto se deu, não sabemos. O que sabemos é que os seus escritos são sobretudo de carácter social. E, embora correndo o risco de pecar por defeito, eis o resumo da sua mensagem: «A escolha por parte de Deus não é uma garantia de salvação. Há necessidade da resposta por parte daqueles que Deus quer salvar. Pelo que o povo, e sobretudo os seus chefes, não se pode comportar como lhe compraz. No caso dos israelitas, Deus escolheu-os como uma nação especial, é verdade, mas isso não é apenas um privilégio; é também uma grande responsabilidade».

  Outro profeta que atua no Norte, como disse, é Oseias. No seu caso, Deus serve-se das circunstâncias sociais para fazer ouvir o seu apelo. Oseias é um profeta muito sensível; é uma alma delicada que descobre a ternura de Deus através duma situação pessoal terrível. Este facto pessoal tem a ver com a infidelidade da sua esposa que, para cúmulo, durante algum tempo, passa o dia a bater as estradas da cidade. Oseias ama a sua mulher, mas ela tem uma má conduta. No entanto, ele conserva-se fiel, conseguindo, por fim, embora a custo, recuperá-la. É assim – podemos nós concluir com ele – que Deus ama. Não porque somos bons, mas sim porque, não cessando Ele de nos amar, acabaremos por ser bons.

   Outro profeta que exerce a sua atividade neste período – e o maior dos profetas escritores – é Isaías. É o maior pela extensão do seu livro e pela importância que a sua ação teve no âmbito da capital do Reino do Sul, Jerusalém. Isaías é um homem muito culto, um poeta vigoroso e dono duma linguagem com imagens poderosas, pertence à nobreza e provavelmente trabalha na corte. Tem uma visão muito abrangente das coisas e da política. E isso permite-lhe ver, com antecedência, as hesitações dos reis e as alianças desastrosas que eles fazem com os reis vinhos, nomeadamente com o Egipto e a Assíria. E então a sua mensagem de crente tem por objetivo comunicar ao povo que, por mais alianças que faça, a única que pode assegurar salvação e unidade nacional é a aliança com o seu Deus.

   A figura de Isaías está ligada também à ideia de «messianismo». O que é que isso significa? O Messias é aquele que, no fim dos tempos, estabelecerá definitivamente o Reino de Deus. Isaías, tendo diante de si reis devassos, violentos e opressores, chega à conclusão de que não podem ser esses os realizadores da promessa de Deus. E então chega à intuição de que, no futuro, irá surgir o verdadeiro «descendente de David», o verdadeiro «enviado de Deus».

   Bom, antes de terminar este ponto, só mais uma referência a um outro profeta desta época. Tal como Isaías, também este atua no sul do país. É o profeta Miqueias. Trata-se dum homem do campo, que sofre na sua própria carne os horrores da guerra e os desvarios da injustiça. Vai então até Jerusalém e aí proclama, diante dos chefes do povo, a indignação de Deus. De alguma forma, corresponde à figura que Amós desempenha no Reino do Norte. A linguagem é bastante parecida e os temas são quase idênticos.

16.7.  Circunstâncias dramáticas

   Vou agora referir-me a mais alguns profetas e às circunstâncias históricas que têm que enfrentar para desempenhar a sua missão. Tudo de forma sucinta. Comecemos então por nos situarmos. Já sabemos que estamos em Israel. Com ele confina o Reino de Damasco. Se por um lado, Damasco constitui um perigo, por se tratar duma nação pagã e inimiga, por outro lado, constitui uma espécie de tampão de defesa, porque está entre Israel e o grande invasor, que é a Assíria. Só que a situação não dura muito tempo. Com efeito, em 732 a.C., acontece algo de trágico: o rei da Assíria acaba por se apoderar também de Damasco. O perigo para Israel está iminente.

   Com a derrota de Damasco, os inimigos estão agora à porta. E o que tinha acontecido a Damasco vai certamente acontecer também a Israel, a começar pelo Reino do Norte. A Assíria é muito forte e as suas ambições expansionistas são desmedidas. E, de facto, o que se temia acontece. Em 721, a capital do Reino do Norte, Samaria, cai nas mãos dos assírios. É o fim do Reino do Norte, que desaparece do mapa. Alguns fogem, mas são uma minoria. Os que ficam rendem-se completamente ao poder do invasor. Os assírios, porém, não têm gente para ocupar e colonizar todas as terras. E então fazem o que lhes parece a melhor opção: deportam parte dos habitantes vencidos e levam para a zona, deportados provenientes de outras regiões. Por outras palavras, fazem uma troca de peças no xadrez da região e, assim, ficam as cartas todas baralhadas. E, pouco a pouco, Israel vai perdendo a sua identidade.

16.8.  Dominação estrangeira

   Os que ficam são facilmente dominados, sendo obrigados a seguir costumes e tradições que lhes são impostos à força. Mas, segundo parece, ainda assim, os assírios, por motivos estratégicos, dão-lhes bastante liberdade religiosa. É que partem do suposto que há assuntos sensíveis em que mais vale a prudência que a força bruta. E um deles é o que tem a ver com a religião. Aliás, eles não têm pressa. Os israelitas podem continuar a manter as coisas mais importantes da sua religião e tradição. O que perdura até bastante tarde. Disso é prova o facto de o próprio Jesus testemunhar que a população da Samaria adora o único Deus verdadeiro de Israel.

   Vinte anos mais tarde, ou seja, em 701 a.C., consolidada a conquista e sujeição do Reino do Norte, um outro rei da Assíria, Senaquerib, fará uma tentativa para tomar Jerusalém. Mas as coisas não lhe correm bem e é obrigado a levantar o cerco. O Reino do Sul respira de alívio, convencido de que, se calhar, já não lhe vai acontecer nada. E, de facto, assim vai ser durante algum tempo, pois os assírios, por vários motivos e por estarem ocupados com outras coisas, vão deixar Judá e Jerusalém em paz. Mas a situação acaba também por modificar-se, porque outro reino que não a Assíria irá vencer Jerusalém de forma inapelável.

    E Israel acaba por desaparecer do mapa como país independente. Mas, mesmo nessas circunstâncias, os livros da Bíblia continuam a ser escritos. De qualquer forma, os perigos são evidentes. E, por isso, vendo as coisas mal paradas, algumas pessoas, nesse capítulo, procuram salvar o que é possível salvar. O primeiro sinal sério sucede quando cai a Samaria. Nessa altura, alguns habitantes, entre os quais pessoas encarregadas da preservação dos documentos, levam consigo a maior parte dos escritos que há no Norte. Isso sucede quando no Sul reina Ezequias. Quase imediatamente a seguir à queda do Norte, a Assíria prepara-se para atacar e ocupar também Jerusalém. Felizmente, como se disse, Jerusalém não é ocupada nessa altura e os escritos podem ser salvos.

   O rei Ezequias é conhecido na história por ter sido um rei sábio e piedoso. E por ter sabido também valer-se dos conselhos do profeta Isaías. Graças a este contributo, ele dá um novo impulso à religião. Ora, neste âmbito, há que realçar precisamente a preocupação de pôr por escrito toda a tradição religiosa do seu povo, para que nada se perca. É muito possível até que se tenha começado a fazer cópias, para evitar qualquer percalço. É, pois, natural que, com esse rei, se promova e facilite o trabalho dos que têm manuscritos muito importantes e preciosos; precisamente os que dão origem aos livros da Bíblia.

   Infelizmente, o rei Ezequias é uma exceção pela positiva. A ele sucedem reis ímpios, talvez dos piores do Reino do Sul de Israel. E, quando já estamos na metade do século VII a.C., vai aparecer uma nova geração de profetas. A razão é exatamente a mesma que dá origem aos primeiros profetas. O facto de ter começado novamente um ciclo de depravação moral e social. Entre eles, citemos os profetas escritores da altura: Sofonias, Naum, Habacuc e Jeremias.

   Sofonias desenvolve a sua atividade por volta do ano 630 a.C. e, embora não tão influente, é da mesma têmpera que Isaías. As suas palavras são dum realismo extremo, para combater o baixo grau de moralidade a que o povo tinha descido. Por sua vez, o profeta Naum desenvolve a sua atividade quando se dá uma nova mudança política na região. Contra as expectativas, Babilónia desperta dum longo letargo e vence a Assíria, que tinha descansado à sombra das conquistas. Os judeus, naturalmente, pensam que o futuro vão ser rosas. Os assírios estão vencidos e eles convencem-se que já não têm que se preocupar. Mas apenas tinha mudado o dono. É este o grande aviso de Naum. E é esta, de facto, a principal mensagem do livro deste profeta. Mas, mesmo assim, o povo não lhe dá ouvidos.

16.9. Alianças funestas

   Antes de virar a sua atenção para Israel, a Babilónia quer ver-se livre primeiro dum outro reino mais forte: o Egipto. Tratará de Israel depois disso. E, por volta do ano 600 a.C., o comandante das forças da Babilónia, um tal Nabucodonosor, obtém uma vitória retumbante sobre os egípcios. Agora, está livre para atacar a Palestina quando quiser. Mas não tem pressa. Ele quer consolidar primeiro o poder, porque, pelos vistos, Jerusalém não lhe causa muitas preocupações. E assim é! Após um primeiro ataque, não há resistência e ele nomeia um rei, depois de deportar uma boa parte da população.

   Mas as coisas não correm muito bem às tropas babilónicas. Muito naturalmente, os israelitas revoltam-se e então, o destino de Jerusalém fica traçado: terá que desaparecer do mapa, para não dar trabalho. É o que decreta o comandante inimigo. Mas isso só irá acontecer cerca de treze anos mais tarde. E, dessa vez, é mesmo o fim do Reino do Sul. É o fim de todo o Israel. Há dois profetas, Habacuc e Jeremias, que procuram ainda compor as coisas, mas as pessoas não lhes dão ouvidos. Nabucodonosor destrói Jerusalém. Jeremias é poupado. E, aconselhado por alguns amigos, refugia-se no Egipto, onde acaba por morrer. Já no exílio da Babilónia, irá ainda aparecer mais um profeta chamado Ezequiel.

 

 

17.  NA CAPITAL DO IMPÉRIO

17.1.  O horror da deportação

  Os primeiros prisioneiros israelitas são levados para a Babilónia (algures no atual Iraque e parte do Irão) em 698 a.C. É nessa altura que o rei da Babilónia escolhe um israelita e o coloca em Jerusalém como rei fantoche. O nome desse rei é Sedecias. A cidade, desta vez, fica intacta. E, por isso, em teoria pelo menos, é possível continuar o mesmo ritmo de progresso e de relativa liberdade. Mas Sedecias é tão desastrado que julga que pode assinar sem perigo um pacto de aliança com o Egipto, mesmo contra a opinião de alguns dos seus conselheiros. O resultado não se faz esperar. Alguns anos mais tarde, Jerusalém é mesmo atacada e arrasada, sendo os seus habitantes deportados para a Babilónia e o seu rei humilhado até ao extremo. Do exílio, só voltarão muitos anos mais tarde.

   Os judeus, reduzidos à escravidão – à semelhança do que tinha acontecido aos israelitas do Norte – vivem assim meio século de cativeiro na Babilónia. Aí, já não têm nem templo, nem culto, nem rei, nem sequer a possibilidade de oferecer os seus sacrifícios e de fazer as suas festas sagradas. A única coisa que lhes resta é a fé no seu Deus e as suas tradições. E estas vão ser meditadas e aprofundadas. Agora, paradoxalmente, vão rever a sua história para lhe descobrir o sentido profundo, aproveitando para refletir sobre os motivos por que lhes tinha acontecido tudo isso.

    Mas, não obstante todas as dificuldades e apesar de estarem prisioneiros, eles têm ainda a sorte de viver num ambiente relativamente evoluído. E, com efeito, entre os babilónios, descobrem preocupações que eles nem sequer tinham ainda amadurecido. É notório, por exemplo, o facto de haver pessoas que procuram dar resposta às perguntas mais profundas do ser humano: como, qual a origem das coisas, do mal e da religião. Em contacto com esse clima de pensamento e reflexão, nascem também núcleos de pensadores entre a comunidade judaica. E assim, em contacto com os opressores, por incrível que pareça, nasce uma corrente de renovação espiritual que, no caso, é liderada pelo profeta Ezequiel.

17.2.   Um papel de gigante

   Sintonizados com Ezequiel, esses pensadores têm a preocupação de afirmar, acima de tudo, a santidade de Deus, sem descurar as explicações racionais para os acontecimentos e a origem das coisas. Fazem então sínteses históricas para, a partir daí, descobrirem os planos de Deus. Ou seja, procuram descobrir o sentido profundo de tudo o que acontecera no passado. À luz da situação que lhes toca viver no presente, procuram perceber o que é que Deus espera deles. É nesse âmbito que nasce o livro da Bíblia que dá pelo nome de Levítico. Este é um livro pertencente ao núcleo do Pentateuco, que trata de vários assuntos que eu não vou citar aqui, mas que tem, fundamentalmente, por objetivo subordinar a Deus todas as coisas e, como consequência, propor à consciência dos leitores a proeminência de Deus acima de todas as coisas.

   O trabalho desenvolvido pelo profeta Ezequiel será continuado, já quase no fim do exílio, por um discípulo de Isaías, cujo nome desconhecemos. Para facilitar as coisas, vamos chamar-lhe Segundo Isaías; ou, em linguagem mais técnica, Dêutero-Isaías. A mensagem fundamental do livro do Dêutero-Isaías é lembrar ao povo que, apesar de as circunstâncias não serem de feição, não há que perder a esperança. Deus continua a ser o mesmo que os livrou da escravidão do Egipto. Por isso, não podem perder a coragem, porque Deus sabe tirar o bem das coisas más e está prestes a realizar um novo Êxodo.

   Vou agora aproveitar para propor alguns trechos dos dois livros, que aparecem, nesta altura histórica, a que acabo de fazer referência: o Levítico e o Segundo Livro de Isaías. Comecemos então pela seguinte passagem do Levítico. É só para vermos que a Lei de Moisés não são só os Dez Mandamentos. Diz assim esse livro no capítulo 19: «Sede santos, porque Eu sou santo – diz o Senhor. Eu sou o Senhor, vosso Deus. Cada um respeite a sua mãe, o seu pai e guarde os meus sábados... Não vos volteis para os ídolos... Não furtareis, nem mentireis, não usareis de embustes uns contra os outros. Não jurareis falso, em meu nome, porque assim profanareis o nome do vosso Deus. Eu sou o Senhor»

    E, logo a seguir, o mesmo livro diz o seguinte: «Não oprimirás o teu próximo nem o roubarás. O salário do trabalhador não ficará em teu poder até ao dia seguinte. Não insultarás um surdo e não colocarás obstáculos diante dum cego. Não cometerás injustiças nos julgamentos. Não explorarás o pobre nem serás complacente com o poderoso. Julgarás o próximo com imparcialidade. Não semearás o mal no meio do teu povo. Não ficarás indiferente ao perigo do teu próximo. Não odiarás o teu irmão no teu coração. Não te vingarás nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo...».

   E, já agora, alguns pensamentos do Segundo Isaías. Referem-se à esperança que os judeus exilados na Babilónia devem continuar a manter, apesar das contrariedades e da situação de cativeiro em que se encontram. O futuro não será sempre de terror e desespero. Antes pelo contrário, tudo irá terminar em beleza. É precisamente um discurso deste género que se deve fazer a quem está desanimado. É o que o Segundo Isaías faz ao dizer: «Levanta-te e alegra-te! Reveste-te da tua formosura, Jerusalém, cidade santa! Não voltarão a entrar em ti os incircuncisos e os imundos (ou seja, os pagãos). Sacode o pó. Levanta-te, Jerusalém cativa! Desta o jugo do teu pescoço. Eis o que diz o Senhor: “Vós fostes vendidos por nada. Mas, agora, o vosso resgate não tem preço”» (cf. Is 52, 1-3). Ver neste texto algo de literal é não entender nada do «espírito» do mesmo.

   É com este tipo de reflexão e de conforto que este profeta prepara os judeus para voltarem para a sua terra. É certo que nem todos voltam; aliás, muitos dispersam-se pelo mundo inteiro, formando comunidades de imigrantes (diáspora). Mas os que voltam – talvez uma minoria – para a Palestina, embora continuando a permanecer, durante séculos, sob o domínio de potências estrangeiras, podem viver em relativa liberdade religiosa e continuar a prestar culto ao verdadeiro Deus, mesmo com a chegada dos dominadores romanos.

17.3.   Poder aparente

    Na primeira metade do século VI a.C., a Babilónia – que é, digamos assim, a superpotência daquele tempo, correspondendo à zona onde está hoje o Iraque e parte do Irão – parece invencível. Mas, pelos vistos não é, como é comprovado pela história. Seja como for, e apesar de tudo, os profetas continuam a falar dum Deus em cujas mãos estão os destinos de todas as nações e que pode utilizar também o poderio das nações pagãs para atuar os seus planos. O que, de facto, também acontece regularmente.

   Comecemos por nos situar no tempo. Estamos no ano 538 a.C. É esta a data oficial do fim do cativeiro dos israelitas. O mais interessante é que tudo acontece sem que estes tenham que fazer muito. Assim como a sua ruína tinha dependido muito de razões fortuitas, assim também a libertação vai depender de circunstâncias fortuitas. Com efeito, acontece que, na Babilónia, há uma espécie de traidor do regime, digamos assim. Ao que parece, o traidor que apressa a ruína da Babilónia é o próprio rei, que não sabe acautelar os interesses do seu próprio país. Para simplificar as coisas, eu diria que este, por motivos estratégicos, para ganhar a confiança do rei dos medas e dos persas, chamado Ciro, lhe concede certa margem de manobra. Só que (passe a expressão) lhe sai o tiro pela culatra. O que é facto é que esse é o início da derrocada da Babilónia. É a partir desse momento que começa a ascensão do império persa, que irá perdurar até ao aparecimento e consolidação do poder dos gregos.

17.4.  Outros invasores

    Os persas são ainda maiores que os babilónios e estendem os confins do império para além das fronteiras dos antigos impérios. Basta dizer que, além da Babilónia e dos reinos a esta sujeitos, os persas conquistam o Egipto e o império que fica na atual Turquia. Pois bem, depois da capitulação da Babilónia, Ciro procura reorganizar o seu império. E, por esse motivo, divide-o em províncias que confia a governadores. É uma operação problemática. É que, a divisão pode dar azo ao enfraquecimento. Mas o facto é que isso se demonstra uma medida acertada. Efetivamente, as várias províncias continuam com uma autonomia bastante grande. Além do mais, isso é não só um sinal da humanidade de Ciro, mas também uma tática inteligente para fazer aceitar a sua soberania sobre os povos conquistados. Assim, aos diversos povos é deixada a liberdade de conservar os próprios costumes e a própria religião.

   Em conformidade com esta política, e vindo ao caso de Israel, Ciro permite aos deportados voltar para a sua terra. Essa tomada de posição política é conhecida como «édito de Ciro». É certo que parte dos israelitas preferem ficar no antigo reino da Babilónia e agora reino dos persas. Mas um grupo de judeus regressa à Palestina, para restaurar Jerusalém, entretanto destruída, e para reconstruir o Templo. E assim acontece. As obras são difíceis e demoradas. Mas, graças ao esforço de alguns profetas – nomeadamente Ageu, Zacarias e o Trito-Isaíaso povo retoma coragem e Jerusalém surge de novo como o centro do judaísmo.

   O êxito das obras de reconstrução da cidade e do Templo deve-se também ao apoio e indefetível vontade de dois funcionários de origem judaica que o rei persa manda para a Palestina, a acompanhar os retornados. Um deles chama-se Neemias e o outro Esdras. Os livros da Bíblia que falam destes factos são precisamente os que levam os nomes desses funcionários. É um período bastante obscuro e atribulado na história de Israel. Mas isso deve-se também à situação política global pouco clara na região.

   Qual o motivo imediato por que os israelitas são mandados de volta para a Palestina? É muito difícil conjeturar sobre este ponto. Provavelmente, nessa altura, os persas consideram-se todo-poderosos e acham que se podem dar até ao luxo de ser generosos para com os vencidos. Mas o mais provável ainda – em termos de rigor histórico – talvez seja o facto de que, apesar de tudo, os projetos persas são demasiado grandes para as suas capacidades.

   Dá-se igualmente o caso que o Egipto torna a levantar-se em armas, preparando-se para sacudir o jugo dos persas. Então, para garantir a estabilidade nas várias províncias, o governo persa procura acalmar as populações, nomeando chefes originários dessas mesmas regiões para evitar que elas se aliem ao Egipto. No caso dos israelitas, foram então nomeados Neemias e Esdras.

17.5.  Contrariedades

   Mas deixemos isso, porque se trata apenas de conjeturas. E vamos focar a atenção nestes dois funcionários, cuja preocupação principal é procurar restaurar as leis judaicas. Como é óbvio, não é nada fácil pôr em prática essas leis. Apesar de tudo, é possível, pouco a pouco, fazer com que elas se tornem leis do Estado. E isso irá perdurar para sempre, embora Israel nunca mais se levante como nação verdadeiramente independente. É que, entretanto, aparecem novas potências no horizonte político. E, assim, mais do que uma nação, os judeus formam uma grande comunidade religiosa que vive em paz e que, no decorrer do tempo, se irá fixar, com a sua organização religiosa definida, um pouco por toda a costa oriental do Mediterrâneo. É a chamada «diáspora».

   Voltemos um pouco atrás. Ainda durante a dominação persa, e sobretudo depois disso, quando a cultura grega se espalha por toda a parte, o papel das comunidades judaicas é muito importante. Durante dois séculos, até ao ano 300 a.C., vão aparecer vários livros bíblicos. Mas a data efetiva da sua composição é difícil de estabelecer com rigor por causa das mudanças contínuas na situação política. Em todo o caso, pode-se dizer que é por esta altura que muitos dos livros bíblicos tomam forma definitiva. Isso desempenha um papel importante para manter unidos entre si os judeus dispersos.

  A situação política e social instável permite também fazer uma reflexão sobre o sentido da vida. São, pois, tratados os grandes problemas humanos. E assim são definitivamente compostos livros como Provérbios, Rute, Jonas, Job, Cântico dos Cânticos e muitos dos Salmos. É também nesta altura que o Pentateuco (os 5 primeiros livros da Bíblia) adquire forma definitiva, passando a ser chamado pelos judeus Tora (Lei).

17.6.  «Omnipresença» de Alexandre

   Como é fácil de entender, a história do povo judeu, nos seus traços gerais, é indispensável para entendermos a Bíblia, porque ela está intimamente relacionada com o aparecimento dos livros que compõem a Bíblia. Vamos, pois, continuar a insistir no mesmo assunto. Como disse antes, ao período persa, que termina por volta do ano 333 a.C., segue-se a dominação grega, que, por sua vez, dura até ao ano 63 a.C. É evidente que a Grécia não aparece só nesta altura como tal, mas é só nesta altura que começa a ter influência e poder no Médio Oriente e, mais concretamente, na Palestina.

   Quando pensamos no grande império grego, lembramo-nos quase automaticamente da grande figura que é Alexandre. Segundo reza a história, Alexandre tem só 22 anos quando inicia a sua carreira de conquistador. Mas os seus sucessos são tantos que lhe passam a chamar Magno. Alexandre, natural da Macedónia, depressa se notabiliza no campo militar. Primeiro, começa por libertar o Egipto do poder dos persas e aí funda o porto de Alexandria. Depois, dirige-se para Oriente, atravessando o coração do império persa. Conquista tudo o que lhe aparece à frente, chegando, segundo algumas fontes, até à Índia. Resumindo, em dez anos de conquistas, constrói um império de 5000 quilómetros de extensão.

17.7.  No rescaldo da diáspora

   Com a consolidação do império grego, espalha-se também a cultura e a língua gregas. A língua grega falada chamava-se koiné, ou seja, língua vulgar. Também a Palestina cai sob o império grego. E então também o grego vem aí substituir oficialmente o aramaico que, no entanto, continua a ser falado pelo povo durante algum tempo. Depois da morte de Alexandre – com apenas 33 anos – o império grego é dividido entre os seus quatro generais. A Palestina fica, mais uma vez, encravada – passe a expressão! – entre o Egipto e a Síria. E isso obriga muitos judeus a fugir mais uma vez. Como consequência dessa fuga, forma-se uma comunidade importante em Alexandra do Egipto.

   À semelhança do que acontecera com a dominação persa, também sob domínio grego, os judeus gozam de relativa liberdade. É graças a essa circunstância que um grupo de pensadores resolve trabalhar num projeto comum: o de fazer uma espécie de «história sagrada». Na nossa Bíblia atual, essa história é contada num conjunto de quatro livros: o I e o II das Crónicas e os livros de Esdras e Neemias. Os livros das Crónicas repetem muitas das coisas que já estavam escritas nos I e II livros dos Reis, mas dão uma visão de conjunto mais vasta. Por seu lado, os livros de Esdras e Neemias falam da reconstrução do Templo e da organização do culto em Jerusalém, depois de os hebreus terem deixado o exílio da Babilónia no tempo dos persas.

   Mas a produção literária não fica por aí. Além desses livros históricos, são publicados também outros livros; nomeadamente o livro do Eclesiastes, que é dum autor que se esconde sob o pseudónimo de Qohelet que, à letra, significa mais ou menos «aquele que preside à assembleia». É verdade que o livro é atribuído a Salomão, mas isso não passa duma ficção literária por parte de quem o escreveu, para dar peso às suas próprias reflexões. O livro do Eclesiastes é, acima de tudo, uma lição de lucidez perante o absurdo da vida. Mas, no fundo, e apesar de tudo, o que interessa ao autor é transmitir uma mensagem de esperança e de confiança em Deus.

   Um outro livro escrito aí por volta do ano 280 a.C., é o livro de Tobias. É um livro muito romanceado – pode-se dizer que é um romance de cariz sapiencial – e, por isso, os episódios que conta não devem ser considerados históricos no sentido rigoroso do termo, mas sim didáticos, porque pretendem ensinar uma série de coisas. Assim, o livro trata de dois temas principais. Em primeiro lugar, procura-se explicar como também o justo está sujeito às provas; e, em segundo lugar, insiste em que a oração é sempre ouvida por Deus para o bem do homem. O livro de Tobias, infelizmente, é um livro muito pouco conhecido pelos cristãos. Aliás, como tantos outros livros da Bíblia.

17.8.  Primeiros «existencialistas»

   No entanto, Tobias é um livro que devia ser obrigatório ler. O seu autor convida a confiar na providência paterna de Deus. Apesar de tudo o que possa parecer, Deus continua a conduzir os destinos da história. Talvez da leitura deste livro se possa inferir que a providência de Deus a nosso respeito não é necessariamente aquilo que nos agrada, mas aquilo que serve para o nosso maior bem. Este livro tem também páginas muito belas sobre o relacionamento entre pais e filhos e sobre o nosso dever de solidariedade para com os que precisam. É também um livro muito belo sobre o matrimónio; embora, de facto, não seja esse o tema principal.

   Ainda na Palestina, temos outro livro chamado Eclesiástico, conhecido também pelo nome do seu autor, ou seja, Ben Sirah. Este autor é um homem sábio que vive no início do século II a.C.; portanto, já quando os gregos são donos da região. Nessa perspetiva, o autor sente que o helenismo, com a sua filosofia e os seus valores, é extremamente paganizante. Então o livro é assim uma espécie de manual de moral e comportamento. As circunstâncias daquele tempo não são exatamente as de hoje. Por isso, seria um erro se interpretássemos tudo à letra. O que é preciso é saber extrair a verdadeira mensagem. E, como em relação a todos os livros da Bíblia, a sua mensagem é sobretudo uma mensagem religiosa.

  A versão do Eclesiástico que chegou até nós é a versão grega. Mas parece que o livro terá sido escrito originalmente em hebraico. Só que não se sabe o que aconteceu ao original. Perdido durante séculos, o original só foi descoberto a partir de 1896 na antiga sinagoga do Cairo, em diversos fragmentos de vários manuscritos medievais. Felizmente, havia uma tradição em grego feita no Egipto pelo neto do autor. Foi essa tradução que entrou para a Bíblia grega. O que é que aconteceu? Muito provavelmente, os judeus espalhados pelas diversas províncias gregas não percebiam a língua hebraica. Sendo assim, alguém viu-se obrigado a traduzi-lo para grego. Quanto ao original, terá ficado na Palestina e, não se sabe como, perdeu-se.

 

 

18.  ARAMAICO E GREGO

18.1.  Comunidade de imigrantes

   Quando Alexandre Magno conquista a Palestina, por volta do ano 300 a.C., ainda não está feita a composição definitiva dos livros do AT. Ora, como os judeus ficam espalhados um pouco por todo o lado e lhes é imposta a língua grega, é natural que os livros que aparecem depois sejam escritos diretamente em grego. É que as pessoas, de facto, já não percebem bem nem o hebraico nem o aramaico. E é por isso que, depois, também o NT é todo escrito em grego. É certo que, nessa altura, já os romanos dominam na Palestina, mas também não é dum dia para o outro que as pessoas começam a falar a língua do invasor. E a verdade é que, nessa altura, a língua escrita e falada na região já dominada pelos romanos é ainda o grego. O latim demorará ainda alguns anos a estabelecer-se.

   Como disse antes, há uma grande comunidade judaica a viver em Alexandria do Egipto. Esses judeus, praticamente logo na segunda geração, deixam de compreender o hebraico e o aramaico. Nada de estranho, dado que é isso um pouco o que sucede ainda hoje com os imigrantes que, à segunda geração, já mal falam a língua dos seus pais. Apesar de tudo, esses judeus no estrangeiro sentem-se profundamente judeus. Então começam a exigir, digamos assim, os livros numa língua que entendam. E, no caso, é o grego. De resto, essa é uma necessidade imperiosa, se é que os responsáveis da comunidade não querem que ela perca a sua identidade.

18.2.  Traduzir para grego

   Dessa urgência nasce a ideia de traduzir todos os livros da Bíblia para o grego. Mas, mesmo atendendo às escassez de meios de que é possível dispor nessa altura, o assunto da tradução é resolvido tão depressa que até surge uma lenda. Esta conta que 72 judeus provenientes da Palestina – de onde tinham trazido os originais – se fecham num ambiente de onde não podem sair enquanto não acabarem o trabalho. E – continua a lenda – eles traduzem a Bíblia toda em 72 dias. Essa tradução passa então a ser conhecida por «tradução dos setenta e dois». O número 72 está a simbolizar também o número dos países conhecidos e isso significa que a Bíblia se destina a toda a humanidade. Mais tarde, o «dois» dos setenta cai. A tradição fica então a ser conhecida apenas por «Bíblia dos LXX».

  Seja como for, a lenda é um sinal do carácter sagrado que se atribui ao livro traduzido. Claro que não está provado que o número de tradutores tenha sido necessariamente esse; nem também o número de dias. Com quase toda a certeza, é um número simbólico, na medida em que, para além do que acabo de dizer, esse número representa a semana de trabalho (sete dias) a multiplicar por dez, que é o número da perfeição. Seja como for, ter-se-á tratado dum trabalho bem mais demorado, pois começa no século III a.C. e só termina no fim do século II. Portanto, como se vê, bem mais do que setenta dias.

18.3.  Originais em grego

   Esta Bíblia em grego recolhe todos os livros da Bíblia hebraica que, como se sabe, são 39. Mais tarde são acrescentados outros escritos diretamente em grego: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, I e II dos Macabeus e Baruc; bem como algumas passagens dos livros de Daniel e Ester. Em que circunstâncias surgem estes sete livros escritos diretamente em grego? Infelizmente, em circunstâncias tristes, devo dizer. Depois de Alexandre, o império grego fica dividido em quatro. É, pois, natural que os generais que sucedem a Alexandre Magno tenham procurado usurpar o poder uns dos outros. E quem é que sofre nessas circunstâncias? O povo. Como sempre. Pois bem, por infelicidade, um dos primeiros generais a perder o poder é precisamente o que manda na Palestina. E lá temos nós novamente os judeus a andar dum lado para o outro. E é então que aparecem, nessa altura, algumas pessoas a falar e a escrever em nome de Deus. E fazem-no diretamente na língua em uso nos locais onde os judeus habitam.

18.4.  Revoltas azaradas

   Mas os novos vencedores não querem saber de liberdade e autonomia como os anteriores. Ao contrário destes, os novos colonos procuram impor a cultura e a até a religião grega pela força. Como os judeus não estão pelos ajustes – digamos assim – começa de novo a perseguição, que se intensifica por volta do ano 168 a. C., quando Antíoco IV, o novo chefe do poder grego, manda fazer no Templo de Jerusalém um altar dedicado ao deus grego Zeus (o pai dos deuses na mitologia grega). Isso provoca, como é natural, reações violentas. Dessas reações nasce a luta e a resistência armada, que é chefiada pelos irmãos Macabeus, Judas, Jónatas e Simão. Os livros chamados dos Macabeus, em linha de princípio, narram todos estes acontecimentos com um rigor histórico digno de nota, atendendo à falta de condições que caracterizam esses tempos.

   Todavia, nem todos concordam com a resistência armada. E isso está comprovado também nesses livros. Muita gente mostra muitas reticências perante o poderio do inimigo e a falta de meios dos chefes judeus. Para essas pessoas, a resistência é uma loucura. Como, de facto, se vem a comprovar. Os tempos ainda não estão maduros. Aliás, nunca chegam a estar, até porque, a seguir aos gregos, vêm os romanos, ainda piores que os gregos. É certo que os irmãos Macabeus obtêm algumas vitórias importantes e chegam mesmo a reconquistar Jerusalém, mas a revolta é vencida quando Simão é morto à tradição. Um dos que se opõe à resistência armada é Daniel. E as páginas do seu livro procuram outras saídas. São propostas em linguagem muito especial, chamada tecnicamente apocalíptica.

    Nessa linha de oposição à loucura da resistência armada, há outros livros que, fundamentalmente, insistem em que a libertação só pode vir de Deus. É nessa linha que nasce uma corrente espiritualista, digamos assim, que procura restaurar o culto. Para o efeito, separam-se do resto das pessoas que optam pela luta armada. Esse grupo de pessoas terá possivelmente dado origem aos conhecidos «fariseus» tão citados nos Evangelhos. Essa palavra parece que significa precisamente isso: «separado», ou seja, descendente daqueles que se recusam a pegar em armas.

   E aproximamo-nos, a passos largos, do limiar do NT. Para concluir, basta dizer que é nessa altura que acabam de sair os outros livros do AT, ou seja, Ester, Judite, Baruc e Sabedoria. Este é o último livro a ser escrito. A sua autoria é atribuída a Salomão, mas por motivos que já aqui expliquei e que têm a ver com a autoridade que lhes conferia o rei que era considerado o sábio por excelência. Já os romanos andam pela Palestina quando esse livro é publicado. Segundo alguns entendidos, terá sido escrito na segunda metade do século I a.C., ou seja, mais concretamente, entre os anos 150 e 50 a.C.


 

19.  A PLENITUDE DOS TEMPOS

19.1.  O Reino de Deus

    Entremos no período do NT. Historicamente, estamos numa época em que os romanos dominam a Palestina (e não só). Situemo-nos, pois, no tempo. Estamos provavelmente no Outono do ano 37 da nossa era. Algures na Palestina, um obscuro carpinteiro de Nazaré, chamado Jesus, aparece a proclamar: «Chegou o Reino de Deus!». Não é fácil imaginar o efeito que produzem essas palavras na mente daquela gente! Mas anunciar a chegada do Reino de Deus é afirmar ter chegado o fim dos tempos; que a história chega ao seu ponto culminante.

    Repare-se que não se diz que está a chegar o Reino de Deus, mas sim que já chegou. O Evangelho não define claramente em que consiste o Reino de Deus. Podemos dizer que é uma forma nova de relacionamento das pessoas com Deus, através de Jesus Cristo. Mas não é algo que vem de forma espetacular, mas algo que atua a partir do interior das pessoas: «O Reino de Deus não vem de maneira ostensiva. Ninguém pode afirmar: “Ei-lo aqui ou ei-lo ali!”, pois o Reino de Deus está entre vós» (cf. Lc 17,20b-21).

19.2.  Evitar mal-entendidos

   As pessoas, se calhar, não entendem muito bem o que Jesus lhes diz. No entanto, compreende-se o entusiasmo, porque vêm finalmente uma réstia de luz no caminho da esperança que alimentam há tanto. Mas, à medida que o tempo passa, compreende-se também o ceticismo e descontentamento dos chefes perante um Messias tão diferente do que eles esperam! Esperam um Messias espetacular, um Messias guerreiro que venha pôr finalmente os romanos fora do país. Se calhar, é essa ideia de Messias triunfador em termos humanos que também nós alimentamos. Estou convencido que, se hoje Jesus se apresentasse de novo, acontecia o mesmo. Nem os próprios discípulos de Jesus chegam a compreender bem o Mestre com quem vivem.

   Temos o exemplo mais elucidativo da falta de compreensão da autêntica missão do Messias na experiência de dois discípulos de Emaús (Emaús fica a uns 10km de Jerusalém) que, depois da sua morte, voltam completamente desiludidos para a sua terra natal. Dizem eles: «Estávamos à espera que Ele libertasse Israel, mas, já lá vão três dias e... nada!» (cf. Lc 24,21). Todos aqueles anos com Ele, essa bela epopeia, digamos assim, afunda-se nas trevas duma sexta-feira do ano trinta ou trinta e tal, sobre uma cruz, no Gólgota. Essa é a experiência que os discípulos de Emaús têm. E a experiência dos outros discípulos é exatamente a mesma: a sensação de uma completa desilusão.

19.3.  Uma experiência nova

   Perante o acontecido em Jerusalém, onde Jesus tem o fim que todos conhecemos, tudo parece terminado. Mais eis que, uns 50 dias depois, os discípulos desse crucificado aparecem em público e começam a pregar em Jerusalém. Diante do povo que O atraiçoara, diante do Senado que O condenara, os discípulos (que tinham fugido) proclamam com desassombro que Jesus está vivo. Proclamam, alto e bom som, que Jesus lhes tinha transmitido o seu Espírito. E a prova de que algo realmente acontece é que àqueles que antes tinham demonstrado uma covardia indigna, a partir dum dado momento, parece que nada lhes mete medo.

   O historiador vê-se confrontado aqui com dois factos estranhos, mas verdadeiros: primeiro, que, no tempo em que Pôncio Pilatos é governador da Judeia, vive um homem chamado Jesus que prega, tem discípulos e é condenado a uma morte ignominiosa, reservada aos escravos; e, em segundo lugar, o facto de que os seus discípulos, alguns dias depois da morte de Jesus, proclamam que Ele está vivo; e mais, que Ele é Filho de Deus. Isto é histórico, ou seja, é comprovável pelos dados que nos são transmitidos pelos testemunhos bíblicos e por outros testemunhos extra-bíblicos.

    Explicar como é que os discípulos chegam a essa conclusão, depois de terem fugido, é já mais complicado. E é por isso que aceitar esses dois factos como históricos ainda não é ter fé. Qualquer descrente sem preconceitos o pode fazer. Ter fé significa aceitar esse mesmo Jesus morto e crucificado como Filho de Deus com base no testemunho dos apóstolos.

    A questão que se põe é a seguinte: Como é que alguém de mente sã pode vir dizer que um condenado à morte ignominiosa numa cruz é Filho de Deus? Será que esse Jesus continua vivo? Não se terão enganado os discípulos? Como é que pessoas tão ignorantes podem inventar uma coisa dessas? Que interesse têm eles em meter-se em problemas que lhes irão causar tanto sofrimento e até a morte da maioria deles para defender essas ideias? Isto já é questão de fé. Simplificando as coisas, trata-se de crer e aceitar o testemunho desses discípulos. É a fé destes discípulos que os escritos do NT nos propõem: a Boa Nova de que Deus vive com os homens em Jesus Cristo.

19.4.  Documentos escritos

    Os documentos que nos dão conta destes factos são sobretudo os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, que fazem parte do NT. Estamos fartos de saber que os livros que compõem o NT são 27. E, neste assunto, não há diferença entre católicos e protestantes. Arredondando as datas, esses 27 livros são escritos entre os anos 50 a 60 e 100 da nossa era. Mas não é a data de composição que mais interessa. Teriam o mesmo valor mesmo que escritos noutras datas. Acho, por exemplo, mais importante libertar-nos duma ideia simplista que consiste em pensar que os Evangelhos são uma «reportagem ao vivo» da vida de Jesus. Acho que isso é muito importante para evitar cometermos erros de interpretação.

    Os autores dos livros do NT escrevem vários anos depois da ressurreição de Jesus. Primeiro, pregam oralmente a palavra de Deus por cidades e aldeias e vão fundando comunidades ou Igrejas. Neste intervalo, a Igreja primitiva cresce e estrutura-se. Enquanto os apóstolos e outros discípulos diretos de Jesus continuam vivos, não se sente muito a necessidade de escrever, porque os apóstolos se lembram perfeitamente dos acontecimentos.

     O problema vem depois, quando os apóstolos começam a desaparecer. Aí, sente-se a necessidade de escrever; até porque os cristãos começam a multiplicar-se em toda a parte. E, não havendo testemunhas diretas para contar o que se tinha passado, tem que se dispor de instrumentos escritos para desempenhar esse papel de testemunhar sobre a vida e obra de Jesus. É nessas circunstâncias que nascem os livros do NT.

19.5. A porta do futuro

    Os livros do NT contam a forma como as pessoas começam a viver a mensagem de Jesus. O livro que fala mais diretamente da vida da Igreja primitiva é o chamado livro dos Atos dos Apóstolos. Quem o lê – e a leitura da Bíblia para os cristãos talvez possa começar por aí – descobre facilmente que os protagonistas humanos deste livro são Pedro (primeira parte) e Paulo (segunda parte). Mas descobre também facilmente que há Alguém que paira sobre tudo o que acontece. Mais: a ação destes dois apóstolos está subordinada ao crescimento progressivo da Igreja; primeiro em Jerusalém e na Palestina; depois, um pouco por toda a parte do então império romano.

    Se tivermos que escrever hoje, por exemplo em linguagem jornalística, o que acontece nos primeiros tempos da Igreja, poderemos arranjar títulos mais ou menos assim: «Escândalo em Jerusalém! Viúvas preteridas na distribuição de donativos” (cf. Act 6,1); «Milagre! Um homem chamado Pedro cura um aleijado de nascença!». (cf. Act 3,1-10); «Paulo, o grande vencedor do Concílio de Jerusalém» (cf. Act 15,1ss). Hoje, se calhar, era mais ou menos assim que Lucas faria o seu «Jornal da Igreja» dos primeiros tempos da era cristã e que nós conhecemos por Atos dos Apóstolos. Só que, nesse tempo, não há nem jornais, nem rádios, nem sequer títulos e capítulos.

    Seja como for, repito, não é má ideia começar a leitura do NT pelos Atos. Mesmo antes de ler os próprios Evangelhos. Os Atos são um livro palpitante de vida. Assistimos ao nascimento das mais diversas comunidades cristãs, tanto entre os judeus como entre os pagãos (ou gentios, como também se costuma dizer). Por ele, seguimos não só o crescimento da Igreja em Jerusalém como as aventuras de Paulo nas suas viagens apostólicas, entre a Palestina e Roma, passando pela Síria, Turquia e Grécia. Pelos Atos tomamos contacto com os vários problemas que a Igreja primitiva sente.

19.6.  Não se trata de crónica

   É evidente que, nos Atos, não está tudo o que acontece. Mas também não se pode exigir isso. Como se sabe, nem sequer hoje um cronista é capaz de fazer isso. Qualquer cronista ou repórter limita-se a contar uma parte da realidade. De qualquer forma, nesse livro, vemos como a comunidade cristã, acabada de nascer, animada pelo Espírito e pela palavra dos Apóstolos e dos seus sucessores, sabe inventar um novo estilo de vida. Vemos como a Palavra de Deus vai sendo proclamada, mesmo nos lugares onde nem os apóstolos nem os seus sucessores podem chegar.

    O livro dos Atos é uma espécie de segundo volume duma única obra que Lucas escreve. Este autor é herdeiro da cultura grega. E, segundo os entendidos, além de escrever num grego elegante, é um historiador razoável, segundo os parâmetros historiográficos daquele tempo. Como tal, ele não quer acabar a sua obra contando apenas a vida de Jesus; como fazem os outros evangelistas. Ele interessa-se, é certo, pelo que Jesus faz e diz, pelo que sofre e pelo tipo de morte a que é sujeito, mas interessa-se também pelo que se segue e dá continuidade à ressurreição de Jesus. E isto está contido precisamente nos Atos dos Apóstolos.

   Os Atos abrem, digamos assim, o tempo da Igreja, durante o qual Jesus ressuscitado continua presente e vivo. Por outras palavras, Lucas conta o que é e como se cumpre a promessa de que Jesus ia ficar para sempre com os seus discípulos através do seu Espírito. É por isso que há alguns autores que chamam também a este livro o Evangelho do Espírito Santo. Isso quer dizer, por outras palavras, que o grande protagonista desse livro é o Espírito Santo.

   Também no caso dos Atos, o seu autor não faz «reportagem ao vivo». É impossível, até materialmente falando, porque não tinha correspondentes. O que ele faz é dar uma visão pessoal e uma interpretação do que acha mais importante, sabendo, no entanto, que não é exaustivo. Seja como for, a visão de Lucas é certamente uma visão de historiador, pois concatena os acontecimentos segundo uma ordem precisa, mas é sobretudo a visão dum teólogo.

19.7.  Fontes de informação

    Quais são as fontes de que Lucas se serve? Bem, primeiro, são as suas memórias (e também, acrescento, a sua memória). Hoje, podemos chamar-lhes «apontamentos» ou notas. Ele acompanha a vida da Igreja primitiva de perto. E sobretudo acompanha as viagens e atividades de Paulo, de quem é discípulo. Como é o primeiro a escrever sobre o assunto, não pode ter consultado muitas obras; como pode fazer qualquer historiador moderno que tenha muitos dados sobre a sua secretária. E então, como cronista e historiador, possivelmente faz uma espécie de «diário pessoal», para além de outros elementos provenientes de outras testemunhas oculares dos factos. Nessa espécie de «diário pessoal», vai anotando o que lhe parece mais importante.

   De entre as outras fontes de que Lucas se serve, podemos citar, por exemplo, uma espécie de atas (rudimentares, claro) do primeiro concílio, que tem lugar em Jerusalém por volta do ano 50 da nossa era. As recordações de Paulo, nomeadamente a sua conversão, a criação ou fundação de várias comunidades e os seus contactos com os outros apóstolos são outras tantas fontes em que Lucas se terá inspirado. Além disso, há também outros apóstolos e discípulos que recolhem notícias; como, por exemplo, Barnabé e Filipe. Da mesma forma, podemos supor que correm certamente também, entre as várias comunidades, alguns resumos «anónimos» dos discursos de Pedro (chefe dos apóstolos), de Estêvão e de Paulo.

    Mas Lucas não se limita a juntar documentos; como faria um cronista qualquer. Ele faz história no sentido estrito do termo. Na impossibilidade de contar tudo, ele seleciona os episódios e os factos mais característicos da Igreja primitiva segundo um plano predefinido. Enfim, por outras palavras, faz uma obra com cabeça, tronco e membros. E o facto de a sua obra estar dividida em duas partes distintas (Evangelho e Atos) é prova de que esse plano existe.

    O próprio livro dos Atos está dividido em duas partes: a primeira parte fala da Igreja das origens até ao Concílio de Jerusalém. Trata-se, portanto, duma Igreja ainda circunscrita à comunidade dos judeus na Palestina. A segunda parte trata da expansão da Igreja para além dos limites do judaísmo; portanto, aberta a todas as pessoas; e centrada em particular no grande apóstolo dos gentios que é S. Paulo.

    Resumindo, o grande livro que documenta a forma como os apóstolos de Jesus se comportam depois da ressurreição é o livro dos Atos dos Apóstolos. São eles a demonstração de que algo se passa na vida deles a partir dum certo momento. Esse momento determinante na sua vida tem, nos Atos, o nome de Pentecostes, que é o momento em que eles são revestidos da força do Espírito Santo. Impulsionados por essa força especial, vão por esse mundo fora testemunhar o que, em termos humanos, não teria sido possível.

 

 

20.  NO CORAÇÃO DO PAGANISMO

20.1.  Vêm aí os Romanos

    Estamos numa altura em que os judeus estão subjugados às autoridades romanas, a partir da tomada do poder na região em 63 a.C. A conquista dos romanos acaba por provocar a dispersão ou «diáspora» duma grande parte dos judeus. Muitos encontram-se agora espalhados por várias províncias romanas. É nestas circunstâncias que os discípulos de Jesus devem levar a mensagem a toda a parte.

    Mas acontece que os discípulos, para além do contacto com os judeus, dão consigo a encontrar também, entre os pagãos ou gentios, muita gente que se interessa pela vida e mensagem de Jesus Cristo. Que fazer? O contacto com pagãos desejosos de fazer parte das comunidades fundadas em nome de Jesus põe um problema de fé complicado para aqueles tempos. É certo que, apesar de algumas dúvidas, eles podem concluir das palavras de Jesus que a mensagem cristã é para todos. Mas a questão é saber em que condições. Mais concretamente, o problema é o seguinte: será necessário sujeitar os pagãos às práticas judaicas para fazerem parte da Igreja? Por um lado, o mandato de Jesus é que o Evangelho seja pregado a toda a gente.

20.2. Conservadores e liberais

    Este problema torna-se tão grave que a sua solução dá origem ao que podemos chamar o primeiro Concílio, que tem lugar em Jerusalém por volta do ano 49-50 da nossa era (cf. Act 15,1-35). Em palavras resumidas, a principal resolução que sai dele é a seguinte: para ser cristão, não é preciso também aceitar fazer-se judeu. E um dos que mais se bate por esta ideia é Paulo. A necessidade dessa primeira reunião da Igreja é a prova de como a solução não é fácil. Seja como for, a partir desse momento, Paulo pode levar o Evangelho a todas as nações sem dificuldade.

    Pedro, o primeiro «chefe» da Igreja, também já fizera a experiência de ter que levar a mensagem a não judeus. Mas é necessária uma decisão oficial para determinar as condições a impor aos pagãos para poderem aderir à mensagem e doutrina de Jesus. Tudo isto é um resumo do que se passa, porque o problema é realmente complicado. Disso nos dá conta também Paulo, sobretudo nas suas cartas mais doutrinais, como a primeira parte da Carta aos Romanos (até ao capítulo 11) e o segundo capítulo da Carta aos Gálatas.

    As opiniões, nas comunidades primitivas, são divergentes. Durante algum tempo, há pessoas que julgam que, para ser cristão, é necessário sujeitar-se a todos os ritos judaicos. O pior é que o problema continua atual, porque, com muita frequência, há pessoas que julgam que, para ser cristão, é preciso aceitar e fazer uma série de práticas e ritos que, ao fim e ao cabo, não têm nada a ver com o cristianismo propriamente dito.

20.3.  Atenção ao essencial

    Já então, como agora, há que evitar os desvios. A principal mensagem a reter, já então, é que, quaisquer que sejam as culturas e os costumes, o prioritário é anunciar Jesus Cristo. E o mesmo é preciso fazer hoje. Mas o facto é que, tantas vezes, tantas coisas passam por ser de Jesus quando não têm nada a ver com Ele. Na Igreja primitiva, o Espírito Santo vai encarregar-se de manter os discípulos fiéis aos factos e aos ensinamentos de Jesus. Já nesse tempo, se o governo da Igreja tem sido deixado só à inteligência das pessoas, estou convencido que tudo teria acabado bem depressa. E hoje passa-se o mesmo. Se a Igreja de Jesus Cristo continua, apesar de tantos erros e abusos, então é sinal de que o Espírito continua a presidir aos seus destinos.

    Graças à presença do Espírito, os discípulos procuram ver quais são as palavras e obras de Jesus. É essa busca de coerência e esse confronto entre a vida dos cristãos e a do próprio Jesus que dá origem aos Evangelhos. Há também uma razão prática. Uma vez que as testemunhas de Jesus vão desaparecendo ou então, como se costuma dizer em português, «não chegam para as encomendas», é necessário dar aos continuadores dos apóstolos elementos para que a evangelização se possa continuar a fazer com normalidade e sem desvios.

20.4.  Evangelhos e Jesus

    É um facto que os Evangelhos chegam até nós através da Igreja. Mas também não é menos verdade que, sem Jesus, não haveria Evangelhos. Obviamente é Ele, em primeiro lugar, que está na origem dos Evangelhos. Mas o facto é que Ele nada escreveu nem consta que tivesse mandado alguém fazê-lo. Seja como for, à medida que o número dos cristãos vai aumentando, os apóstolos e os discípulos sentem que é preciso falar da sua experiência com Jesus. E como fazê-lo se não há pregadores suficientes para as necessidades? O que eles têm são apenas os livros do AT. E isso agora já não chega. Vem-lhes então à ideia preparar alguns documentos escritos, sobretudo do que parece mais importante.

    O acontecimento mais importante parece-lhes a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Essa experiência, corroborada pelo Pentecostes, modifica tudo na maneira de ver as coisas. Eles experimentam que Jesus está vivo. Eles sentem a sua presença, a sua força, enfim, o seu Espírito.

    É então a partir desse acontecimento central que eles compreendem tantas outras coisas que tinham acontecido antes. E só então, pouco a pouco, vão aparecendo outras coleções: milagres, viagens, discursos, parábolas; enfim, pouco a pouco, vem-lhes à cabeça tudo o que tinham vivido com Ele, particularmente em Jerusalém e junto do Lago de Tiberíades, onde habitualmente viviam.

    Só depois da ressurreição, só depois de receberem o Espírito que Jesus prometera, é que os discípulos começam a olhar para os livros bíblicos do AT com olhos diferentes. Agora, tudo toma um novo sentido. Mas, para comunicarem aos outros esta nova visão das coisas, eles sentem necessidade de recordar também o passado vivido com Jesus: «Olhai, ouvimos isto e aquilo! Ele disse isto e aquilo; nesta e naquela circunstância! Agora compreendemos!»...

    E assim se vão formando pequenos núcleos narrativos para contar em toda a parte onde se constituem e reúnem as novas comunidades cristãs. Serão estes pequenos núcleos narrativos que, mais tarde, irão constituir a base dos Evangelhos que nós temos hoje. Devo dizer que estes núcleos narrativos levam para aí uns trinta anos para se formar. Sendo assim, vão sendo adicionadas várias coisas e recordadas outras. Daí se compreendem as diferenças existentes entre os vários evangelistas, mas também as muitas coisas em comum.

 

 

21.  NASCIMENTO DOS EVANGELHOS

21.1.  Responder às perguntas

    Continuemos a falar mais um pouco sobre a formação dos Evangelhos. Entretanto, imaginemos as perguntas que fazem os que se batizam e as necessidades que eles sentem: É preciso continuar a observar o sábado? Podemos ir a casa dos pecadores e dos pagãos? Que pensar da riqueza? O que é essencial para ser cristão? Para responder, nós hoje recorremos ao Evangelho. Mas, para os primeiros cristãos, não é assim, porque os Evangelhos ainda não estão escritos. Os Apóstolos não têm senão uma referência: o que dizia e o que fazia Jesus.

    No fundo, as perguntas resumem-se a uma só: Quem é este homem chamado Jesus? Para compreendermos melhor o mecanismo, digamos assim, de como vão aparecendo, durante cerca de meio século, as várias partes que compõem os Evangelhos, usemos uma comparação cinematográfica. Os Apóstolos são «impressionados» pela figura de Jesus como a luz impressiona a película. Mas, à semelhança da película, é preciso que as imagens impressas sejam «reveladas». Tal como, no laboratório, os diversos preparados químicos fazem aparecer a imagem, assim a vida das comunidades cristãs funciona como elemento favorável à revelação da doutrina e da pessoa de Jesus. É assim que vão aparecendo flashes sobre Jesus: relatos da Paixão, parábolas, milagres, recordações de palavras suas, etc.

21.2.  Como num filme

    Para fazer um filme, é preciso fazer depois a ligação ou montagem das cenas e das sequências. Assim, aos poucos, esses relatos vão sendo agrupados. Era prático para uma pessoa que ia evangelizar ter, por exemplo, uma coleção de milagres (cf., por exemplo, capítulo 10 de Mateus) ou de parábolas (cf. Mt cap. 13). Outras vezes, era um lugar geográfico, como, por exemplo, Cafarnaum. Mas, depois, as exigências vão aumentando e chega-se a um certo esquema geral: Batismo no Jordão por João Baptista (ministério na Judeia); ministério na Galileia; ministério em Jerusalém; Paixão, Morte e Ressurreição. É este o esqueleto, o esquema comum. Depois, o esquema vai dividindo-se em secções ou sequências e, assim, se vão acrescentando pormenores.

   Agora, falta a última operação: a montagem. Continuamos com a imagem ou comparação cinematográfica. A montagem é uma operação imprescindível no cinema. Leva geralmente tanto ou mais tempo que as filmagens. É através da montagem que as diversas sequências adquirem sentido. E é desse encadeamento que nasce um filme. Pois bem, pegando nos materiais existentes e seguindo um guião ou esquema um pouco diferente, quatro autores vão «fazer a montagem», digamos assim, dos Evangelhos que temos. Mas eles não se limitam a pôr o material existente ao lado um do outro. Cada um deles manda, por assim dizer, filmar mais algumas cenas, pois as necessidades das pessoas com quem têm que lidar são diferentes. Há, pois, facetas especiais próprias de cada um.

    É assim que quatro «teólogos» escrevem os nossos Evangelhos. O primeiro autor, Marcos, faz isso por volta do ano 70 (talvez antes); Mateus e Lucas fazem essa operação por volta do ano 80 e João só por volta do ano 95 ou já perto do ano 100. Entretanto, e antes disso, já Paulo escrevera algumas das suas cartas. A primeira é a Carta aos Tessalonicenses. Outras cartas aparecem mais ou menos na altura em que aparecem os Evangelhos.

21.3.  Maior aprofundamento

    Para ler as Cartas, é preciso ter ideias bastante precisas sobre as circunstâncias históricas em que aparecem e sobretudo sobre as suas particularidades e características. Ora, para isso, talvez seja melhor ler outros escritos primeiros; e precisamente o que precede as Cartas. Ou então talvez se possa pelo menos começar com a leitura dos Atos dos Apóstolos.

    Não pensem que me enganei quando disse que o Evangelho de Marcos é o primeiro a ser escrito. O facto de o Evangelho de Mateus estar em primeiro lugar na Bíblia talvez se deva ao facto de ser o mais completo e mais ordenado. Tem vinte e oito capítulos, enquanto o de Marcos, por exemplo, tem apenas dezasseis. Mas, quanto à data de composição, as coisas são diferentes. Seja como for, como já dei a entender antes, não é propriamente a data de composição em si que tem mais importância.

    Vou dar agora, mas em poucas linhas, a ordem de aparição dos vários Evangelhos. Marcos é o primeiro a escrever, segundo as conclusões de todos os estudiosos da matéria. E é, muito provavelmente, o jovem colaborador de Paulo de que nos falam os Atos dos Apóstolos (cf. Act 12,12; 13,3-13; 15,36-40). Numa segunda fase da sua vida, Marcos é também colaborador de Pedro (cf. 1Pe 5,13). Ele escreve sobretudo para cristãos provenientes do paganismo e, por isso, quando usa certas expressões aramaicas, preocupa-se em as traduzir de modo que os leitores as entendam. Ele representa sobretudo a pregação do apóstolo Pedro.

   Por sua vez, Mateus, que provavelmente escreve a partir da Síria, pelo ano 80, dirige-se a cristãos prevalentemente convertidos do judaísmo. A Igreja é representada no seu Evangelho como uma comunidade bem estruturada. Faz muitas citações do AT para provar que o Messias prometido é Jesus. Ora, esse «argumento» só é compreensível se os seus leitores estão a par do conteúdo do AT. Tem grandes secções em que são reunidos os ensinamentos de Jesus de forma sistemática. É, digamos assim, o Evangelho mais catequético.

    Temos, a seguir, o Evangelho de Lucas. Como se disse, é também o autor dos Atos. Lucas é de cultura grega, natural de Antioquia. Escreve para cristãos convertidos do paganismo. Escreve também pelos anos 80, quando a Igreja já está bastante consolidada. A sua escrita é mais elegante que a dos outros e dá especial relevo a certos temas como a liberdade, a misericórdia, o perdão. Está, de alguma forma, interessado em que os seus leitores conheçam a Palavra de Deus, mas sobretudo em convencê-los que é necessário pô-la em prática. É dele que sabemos a maior parte do que se refere à infância de Jesus.

    O último a ser escrito é o Evangelho de João. Segundo alguns estudiosos, talvez a redação definitiva tenha sido levada a cabo por um seu discípulo. Mas não vou entrar nesses problemas. O seu Evangelho é construído em torno de grandes temas e omite algumas coisas que encontramos nos outros evangelistas. Provavelmente, isso deve-se ao facto de já serem conhecidas dos cristãos. É, pois, natural que queira realçar certos pontos. É, por isso, o mais profundo e teológico, embora não seja o mais rico de vocabulário.

21.4.  Parecia impossível

    Pode causar alguma admiração a quem abre o NT o grande número de Cartas, também chamadas «Epístolas». Até dá a impressão que uma grande parte do NT é composto por Cartas. Pois bem, não é apenas impressão. Com efeito, dos 27 escritos do NT, 21 deles são Cartas. A maioria delas é atribuída a S. Paulo. Sendo assim, acho que é bom saber quem é Paulo. Para além do que Paulo diz de si mesmo, o livro dos Atos é o que mais notícias nos dá sobre ele.

   Numa tarde do ano 36, a notícia espalha-se pelas vielas dum bairro duma pequena cidade chamada Damasco. Os cristãos que ali vivem ouvem dizer: «Saulo de Tarso está às portas da cidade. Vem para nos prender e para nos matar!». Quem é este Saulo, que causa tanto pânico e reboliço? Saulo – ou Paulo, como se passa a chamar – terá nascido em Tarso entre o ano 1 e 10 da nossa era. É natural duma cidade próspera desse tempo. É de família judaica, mas de cidadania romana. É um fariseu de observância estrita. E, como bom fariseu, pensa que os que não cumprem a Lei de Moisés são inimigos de Deus. Saulo estuda em Jerusalém com o grande mestre da época: Gamaliel.

21.5.  Background de Paulo

     Antes de chegar a Jerusalém, Saulo deve ter estudado também em Tarso em escolas gregas. Todavia, não é possível fixar datas. Os sessenta e tal anos da sua vida – Paulo terá sido martirizado em Roma no ano 67 ou 68 – dividem-se em duas partes. Durante mais ou menos 30 anos, Saulo é um fariseu convicto. E, em nome da fé judaica, persegue os cristãos. Motivo? Segundo a sua opinião, os cristãos destroem a fé no único Deus verdadeiro ao colocarem Jesus no mesmo plano de Deus, fazendo-o igual a Deus. Para compreender que isso é possível, ele tem que passar por uma experiência extraordinária.

    Às portas de Damasco, quando se desloca a essa cidade para perseguir os cristãos, Jesus «arrebata-o». Nesse momento, dá-se como que uma sedução. Saulo é homem duma só peça, um homem de «antes partir que torcer». E, sendo assim, não tem dúvidas quanto à sua missão: tem de destruir a nova seita que está a nascer e a espalhar-se por toda a parte. Só um acontecimento de choque o consegue vencer. E a mudança radical acontece mesmo. A partir desse momento, ele passa a estar totalmente ao serviço daquele que tão radicalmente perseguia. A sua vida é cortada, digamos assim, num «antes» e num «depois». Isso marcará profundamente o seu pensamento e permite compreender as suas posições radicais.

21.6.  Marca decisiva

    Acontece que Saulo é um homem com uma preparação intelectual invulgar. E, no que se refere à capacidade de interpretar as Escrituras, é também um teólogo de grande valor. Essa circunstância vai ser de grande importância para a jovem Igreja cristã. Ele vai pôr à disposição da Igreja primitiva todos os recursos do seu pensamento e da sua ação. Saulo – agora só conhecido por Paulo – vai marcar, de forma decisiva e universalista, o cristianismo.

   Mas o seu papel preponderante não é um papel de fundador como alguns pretendem. É preciso aceitar muitos preconceitos para vir dizer que Paulo é o fundador do cristianismo. Que tenha dado um contributo enorme para a sua expansão, é uma realidade. Mas daí a dizer que é o fundador do cristianismo, vai uma grande diferença. Agora, o que não custa nada a admitir é que Paulo é o grande fundador de comunidades cristãs na zona do império romano. Quanto a isso, não há dúvidas. E também não há dúvidas quanto ao papel que exerce na organização da Igreja primitiva. Mas isso não quer dizer que tenha sido fundador. Porque a verdade é esta: a Igreja não existiria se não tivesse sido Cristo. Mais: a ação de Paulo não é isolada, porque, não obstante as dificuldades, ele tem sempre a preocupação de seguir as diretivas vindas de cima. Por outras palavras, em todas as suas iniciativas, Paulo depende sempre da aprovação dos outros apóstolos, particularmente da aprovação de Pedro e da Igreja de Jerusalém.

    Depois da sua vocação (cf. Act 8,1-3; 9,1-30; 22,5-16; 26,10-18; Gl 1, 11-24; Fl 3,6), Paulo regressa a Tarso para algum tempo de reflexão e interiorização da experiência havida no caminho de Damasco. Depois disso, durante uns 15 anos, Paulo vai andar dum lado para o outro a pregar. Primeiro, na sua terra natal, depois em Antioquia, na Ásia Menor. O Concílio de Jerusalém em 49-50 assume as posições dele e a intuição de que Jesus tinha vindo para todos e não só para os judeus. Isso vai provocar a oposição por parte de alguns cristãos provenientes do judaísmo e até de alguns apóstolos. Mas Pedro, depois de algumas hesitações, acaba por resolver a questão. Durante os outros 15 anos que lhe restam de vida, Paulo continua o seu trabalho missionário na Ásia Menor, na Grécia, em Roma e até, segundo alguns, na Península Ibérica.

    Ele bem gostaria de ir a toda a parte, mas, não o podendo fazer, começa então a escrever. As suas cartas podem datar-se a partir do ano 51 (Cartas aos Tessalonicenses) até à sua morte, e permitem acompanhar a evolução do seu pensamento. As notícias sobre si mesmo, nomeadamente sobre o seu ódio inicial contra o cristianismo e sobre a sua conversão, podemos lê-las na II Carta aos Coríntios e na Carta aos Gálatas.

21.7.  Problemas de autoria

   A pergunta que podemos fazer agora é a seguinte: as Cartas de Paulo terão sido todas escritas por ele? Bom, segundo os entendidos, tudo parece indicar que não. Já nessa altura, há o que poderemos chamar secretários. Parece que há várias cartas escritas pelo seu próprio punho, mas há outras – alguns dizem a maioria – escritas por outros, embora o seu conteúdo e mesmo muitos pormenores sejam indicados por Paulo. Por vezes, o discípulo ou secretário deve ter também um papel importante no seu planeamento e desenvolvimento. Seja como for, o pensamento e as orientações pastorais são da autoria do próprio Paulo.

   Já agora e a propósito, lembro de novo o seguinte. O facto de um determinado escrito pertencer a um autor ou a outro não retira nada da sua autoridade. Continua a ter o mesmo valor de livro inspirado. Deixe-me dar um exemplo. Vamos supor, por hipótese, que se provava que Os Lusíadas, afinal de contas, não pertenciam a Camões, mas a outro qualquer. A pergunta é a seguinte: perderia esse livro o seu valor intrínseco? De maneira nenhuma. O valor seria exatamente o mesmo, independentemente do seu autor. Pois bem, o mesmo acontece com os livros da Bíblia. E, por isso, embora, em relação a alguns livros, haja dúvidas quanto a quem realmente os escreveu, isso não quer dizer que deixem de ter valor. Têm o mesmo valor, sejam quais forem os autores humanos.

 

 

22.  EXAME DE PERTO

22.1. Catalogando a correspondência

   Segundo os resultados dos estudos mais recentes, é costume atribuir a S. Paulo treze Cartas, embora alguns continuem ainda a atribuir-lhe também a chamada Carta aos Hebreus. Independentemente disso, e para facilidade de esquematização, podemos distinguir quatro etapas no pensamento de Paulo. Descobrir as características destas quatro etapas ajuda naturalmente a entender melhor o pensamento dele.

   A primeira caracteriza-se pelo tema da esperança. Temos esse tema tratado especialmente em duas Cartas: a I e a II aos Tessalonicenses, que são as primeiras a ser escritas. Nessas cartas, Paulo reafirma a fé comum, tal como a recebeu de Jesus durante a sua estadia no deserto da Arábia; e, mais concretamente, na Síria e na Cilícia. Durante essa etapa, Paulo entra também em contacto mais demorado com os outros apóstolos. Para nos darmos conta de como o tema da esperança é o principal, não há melhor do que começar a fazer a sua leitura.

   A segunda etapa do pensamento de Paulo compreende um conjunto de 5 Cartas: I e II aos Coríntios, Gálatas, Romanos e Filipenses. Nestas Cartas, a grande preocupação que domina o pensamento de Paulo é saber o que significa «ser salvo por Jesus». Paulo considera a Igreja como uma comunidade que congrega todos aqueles que Deus salva por meio de Jesus, independentemente de ritos, posição social, raça, sexo ou mesmo práticas religiosas. Ou, por outras palavras, aquilo que a Paulo mais interessa realçar é o facto de que não há salvação possível fora da fé em Jesus Cristo. Mas essa fé não é apenas uma fé teórica. O essencial é, de facto, acreditar em Jesus Cristo e atuar em conformidade com essa fé. As Cartas são diferentes entre si, como é evidente, mas o fio comum que as coloca na mesma linha de pensamento é esta fé em Jesus Cristo.

    Nesta segunda etapa, os entendidos julgam que as primeiras cartas terão sido a I e a II aos Coríntios. Corinto é, já nessa altura, uma cidade enorme (uma metrópole), pois conta com cerca de 600.000 habitantes, 400.000 dos quais escravos. Corinto é um porto de mar com todos os problemas inerentes a essa condição: bares ou tabernas suspeitos, casas de passe de mercadorias, negócios escuros, criminalidade; enfim, todos os vícios que distinguem uma grande cidade dos nossos dias. Pois bem, Paulo chega a Corinto por volta do ano 51 da nossa era. Aí começa a trabalhar como artesão de tapetes e tendas. Com a sua presença e pregação, a Palavra de Deus suscita uma comunidade entusiasta entre os pobres. A forma como se espalha a fé é algo de espantoso.

    Só que não é dum dia para o outro que se transforma a maneira de ser duma cidade como essa. Os habitantes têm hábitos difíceis de erradicar. E não é pelo facto de aceitarem Jesus que as pessoas mudam logo. Não é assim que as coisas «funcionam». Na altura em que ele escreve aos Coríntios pela primeira vez – terá acontecido por volta do ano 57 – Paulo está em Éfeso, para aí pregar também a fé em Jesus e fundar uma comunidade em seu nome. Os cristãos de Corinto então sentem a necessidade de lhe colocar algumas questões. Por sua vez, Paulo procura saber dos emissários dos Coríntios o que é que lá se passa.

    Paulo responde com a Carta que temos nas nossas Bíblias. É um escrito de tom magoado e por vezes muito enérgico. É uma carta apaixonada, porque parte sempre de factos concretos. São vários os litígios entre os cristãos. São ligações imorais e incestuosas. São mulheres que entram nas igrejas descobertas. São alguns que têm dificuldade em acreditar na ressurreição de Jesus. A partir disso, Paulo reflete e faz refletir, chamando a atenção das pessoas para o «coração da fé», ou seja, para a necessidade de aceitar Jesus Cristo como Filho de Deus e, portanto, como enviado de Deus e o único que pode salvar.

    Às vezes, quando lemos as Cartas de Paulo – e, concretamente, a I aos Coríntios – temos alguma dificuldade em nos sentirmos também nós interpelados, porque os tempos mudaram e certas coisas já não estão atualizadas. Mas, se calhar, não conseguimos ultrapassar essa dificuldade porque nem sequer a chegamos a ler. Ora bem, para entendermos alguma coisa dobre o que Paulo diz e quer dizer, em primeiro lugar é preciso começar por ler. Se dermos esse primeiro passo, então a introdução à Carta – que temos nas Bíblias atuais – ajudar-nos-á sem dúvida a entendê-la melhor, pois estamos dentro do seu contexto.

    Nem tudo nessa I Carta aos Coríntios tem a mesma importância. Aliás, este é um princípio válido para todos os livros. E, por conseguinte, também para os livros da Bíblia. Muitos factos e casos concretos de hoje não correspondem exatamente aos factos e casos dessa altura. Seria, por exemplo, ridículo, proibir hoje as mulheres de entrar sem véu nas igrejas com base nesta Carta de Paulo; precisamente porque o sentido que isso tem é totalmente diferente. Outro exemplo é o pedido de esclarecimento que os Coríntios fazem sobre se podem ou não comprar carne no mercado (cf. 8,1-13). Hoje não há razão para um «mercado pagão» e um «mercado cristão». Mas, na altura, o problema era real, pois parte da carne que se vendia no mercado era proveniente dos sacrifícios pagãos oferecidos aos deuses.

    A II Carta aos Coríntios e a Carta aos Gálatas, no meu entender, são as mais autobiográficas, embora esses dados apareçam como que por acréscimo. O que de facto interessa a Paulo é solidificar a fé dos Gálatas e dos Coríntios e corrigir muitas das ideias incorretas que eles defendem. Os Gálatas são um tanto ou quanto aparentados com os antepassados dos gauleses: entusiastas, folgazões, indisciplinados, simpáticos, amantes da liberdade e, portanto, também inconstantes. Acolhem a Palavra de Deus com alegria. Mas depois não têm muitos escrúpulos em seguir outros pregadores e ritos judaicos. Paulo vê o perigo que eles correm de confundir os ritos judaicos com a fé em Jesus e, então, procura corrigir esse ponto e lançar as bases para o que será o grande tema da Carta aos Romanos.

     Pois bem, a Carta aos Romanos parte precisamente desta premissa: o facto de muitos julgarem que, para ser cristão, era preciso ser ao mesmo tempo judeu, sujeitar-se aos ritos e às práticas da lei judaica. Ora, Paulo combate esse ponto de vista com veemência e com paixão, chegando mesmo a cometer alguns exageros de linguagem. E então o leitor desta Carta tem que ter esse contexto em mente para não cometer erros de interpretação. O mesmo fenómeno se dá também com a Carta aos Filipenses.

    Na Carta aos Filipenses, Paulo exprime todo o seu ser, como um amigo faz com outro amigo, sem grandes preocupações de tratar dum tema de forma sistemática. Mas nem por isso deixa de ser profundo nas considerações que faz. Ele diz aos cristãos de Filipos que não sabe a sorte que o espera, mas que se sente feliz por poder sofrer em comunhão com o Senhor Jesus, que o seduzira no caminho de Damasco. Por isso, para além de algumas anotações doutrinais importantes, o resto da Carta é um apelo para que os cristãos vivam na alegria, e que deem no mundo um testemunho de alegria por se sentirem salvos por Jesus.

22.2. Aos cristãos de Filipos

    A Carta aos Filipenses encerra a segunda etapa do pensamento de Paulo. Na terceira etapa, ele fala-nos de Cristo como Senhor do mundo e da história. Nesta etapa, estão incluídas a Carta aos Colossenses, a Carta aos Efésios e a pequena Carta a Filémon. Ele escreveu estas cartas em apenas cerca de quatro anos. Quatro anos, em si mesmos, não são muitos. Mas quatro anos na prisão – dois na Cesareia (atual Palestina) e dois em Roma – é muito na vida dum homem. Mais que suficiente para refletir. Reduzido ao silêncio, o pensamento de Paulo pode então retomar à própria fonte para fazer um de «balanço de toda a doutrina», até chegar ao ponto central do cristianismo: Jesus Cristo é o Senhor.

    Aos cristãos de Colossos. A ameaça de heresia em Colossos – na atual Turquia – leva Paulo a escrever aos cristãos de lá a partir de Roma por volta do ano 63. Qual a situação a que ele tem que responder? Os Colossenses correm o risco de reduzir Jesus a mero intermediário entre Deus e os homens. O que podia levar a pensar que Jesus era assim como um ser semelhante aos anjos, às potências celestes, uma espécie de deus das forças ocultas. Ora, isso equivaleria a fazer de Jesus apenas uma criatura, embora eventualmente muito sublime. É certo que Jesus é um ser perfeitamente humano, mas – diz Paulo – Ele é muito mais do que isso. Ele é Filho de Deus, igual ao próprio Deus. Nesse sentido, a Carta aos Colossenses é bem atual, porque querer reduzir a natureza de Cristo à sua pura humanidade é uma tentação que continua a existir depois de Paulo e continua a existir ainda hoje.

     Na ótica de Paulo, um Cristo simplesmente homem, por mais sublime que seja, não pode ser resposta para a salvação do homem. Só um Jesus igual a Deus pode ser fonte de salvação. Para confirmar esta ideia, oiçamos uma das páginas mais sublimes de toda a Bíblia e que é precisamente da Carta aos Colossenses. Eis, em linguagem atual, o que diz Paulo: «Jesus é a imagem visível do Deus invisível. Ele é o primogénito, superior a todas as criaturas. Foi por meio dele que Deus criou todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, incluindo os poderes espirituais, os senhores, os dominadores e as autoridades. Ou seja, Deus criou tudo o que existe por Ele e para Ele. Cristo existiu antes de todas as coisas e tudo subsiste nele. Ele é a cabeça do seu Corpo, que é a Igreja, e Ele é a fonte da vida desse Corpo. E foi por decisão de Deus que o Filho tem em si mesmo a plena natureza de Deus...» (cf. Cl 1,15-19).

    Depois de escrever aos Colossenses, Paulo escreve a Carta aos Efésios. Paulo, com a Carta aos Efésios, vai retomar amplamente o tema da Carta aos Colossenses. Ou seja, a Carta aos Efésios é como que uma síntese harmoniosa do pensamento de Paulo. Um hino grandioso celebra o plano de Deus: reunir toda a humanidade num só povo, para formar o único Corpo (Místico) de Cristo. A humanidade é vista como a bem-amada de Deus, adquirida com o preço do sangue do seu Filho Jesus. Por outras palavras, agora o mundo está reconciliado com Deus e todos os homens estão reconciliados entre si.

22.3  Quarta etapa: Cartas pastorais

   Temos, por fim, a quarta etapa do pensamento de Paulo. Esta etapa é preenchida pelas Cartas que endereça a alguns dirigentes da Igreja. Muito provavelmente, são bispos influentes da Igreja primitiva, que terão sido discípulos dele e postos à frente das comunidades mais importantes. Não sabemos se terá escrito a mais bispos ou não. O que podemos constatar é que a Bíblia nos lega três destas Cartas. Costumam ser conhecidas também por «Cartas Pastorais», por tratarem de temas práticos que têm a ver diretamente com o governo concreto das várias comunidades. Pois bem, as Cartas pastorais que nos são conhecidas e que estão registadas nas nossas Bíblias são a I e II a Timóteo e a Carta a Tito. Que tenham sido escritas diretamente por Paulo ou sejam o seu testamento espiritual posto por escrito por algum dos seus discípulos, pouco importa. O que interessa é que são uma recomendação aos responsáveis e dirigentes das comunidades cristãs para guardar a fé em Cristo recebida dos apóstolos.

 A Carta aos Hebreus

    Agora, o leitor mais atento da Bíblia estará a dar-se conta de que, entre todas essas Cartas, eu não mencionei ainda uma outra que também está lá e que é a chamada Carta aos Hebreus. Pois bem, esta Carta é um caso à parte. Até porque, embora tenha sido atribuída a Paulo durante muito tempo, hoje é opinião corrente que, de facto, não é da sua autoria. Segundo os entendidos nestas coisas, pelo tipo de linguagem utilizada e pelo contexto que implica, tudo prova que Paulo já teria morrido quando essa Carta foi escrita. Mas, mais uma vez, não é a possibilidade de a atribuir a Paulo ou não que lhe dá ou retira autoridade. Ela tem autoridade porque foi escrita sob inspiração de Deus, como o foram todos os outros livros não escritos por Paulo.

   Segundo o meu modo de ver, a chamada Carta aos Hebreus, mais do que uma carta propriamente dita, pode designar-se com mais propriedade por sermão. Um sermão muito especial, sem dúvida alguma, porque é como que o resumo duma série de sermões que teriam sido pronunciados numa ou várias épocas especiais do ano. Sei lá, utilizando uma comparação, a Carta aos Hebreus é como que o resumo dum curso de exercícios espirituais sobre o tema do sacerdócio – o sacerdócio no AT, o sacerdócio judaico em vigor ainda no tempo em que aparece Jesus – e o sacerdócio de Jesus, que vem substituir o sacerdócio antigo e o sacerdócio dos judeus.

    A Carta aos Hebreus terá sido escrita por volta do ano 70, numa altura em que os cristãos – sobretudo os provenientes do judaísmo – se sentem desorientados. Estes judeus convertidos tinham aderido a Jesus num momento de entusiasmo. Mas agora, perseguidos e obrigados a reunir-se em catacumbas, parecem sentir saudades das cerimónias solenes e faustosas do culto judaico. Agora, sentindo-se perseguidos, voltam a lembrar-se com saudade dos tempos antigos. E então precisam de quem lhes dê ânimo e coragem. É isso mesmo que faz o autor da Carta aos Hebreus.

    A Carta aos Hebreus não é fácil nem de ler nem de interpretar. E a dificuldade maior está no facto de não sabermos bem o contexto em que ela aparece. Seja como for, uma boa pista é o facto de os cristãos provenientes do judaísmo terem nostalgia da solenidade de ritos e cerimónias que continuavam a realizar-se nas sinagogas judaicas e sobretudo no Templo de Jerusalém. O autor então procura demonstrar-lhes que, apesar de toda a solenidade dos ritos do Templo, essas cerimónias já não têm qualquer significado e sobretudo eficácia, porque os sacrifícios aí realizados foram abolidos pelo único sacrifício que tem valor diante de Deus: o sacrifício levado a cabo pelo próprio Filho de Deus para sempre.

    Um outro motivo por que a Carta aos Hebreus é difícil de interpretar parece o facto de o autor misturar a reflexão doutrinal com a sua aplicação à vida prática. Mas isso é só mais difícil para nós hoje, que não estamos a par do que se passava realmente. Para os cristãos a quem a Carta se dirige em primeiro lugar, as dificuldades de interpretação não existem. O autor parte duma experiência que aos seus leitores diz muito. É o chamado «Dia da Expiação». Só nesse dia é que o Sumo-sacerdote podia entrar na parte mais secreta do Tempo. Aí – estavam eles convencidos – Deus tornava-se presente, quando se derramava o sangue das vítimas oferecidas em holocausto.

22.4.  À descoberta da mensagem

   Pois bem! O autor da Carta parte dessa experiência para dizer aos seus cristãos que tudo isso era apenas uma imagem do que havia de acontecer no futuro. E o futuro já tinha começado, quando Jesus, o Sumo-sacerdote por excelência, tinha procedido à reconciliação do homem com Deus. O sacerdote judeu tinha que repetir todos os anos a mesma cerimónia para purificar as pessoas. Agora, isso já não é preciso, porque Jesus tinha entrado duma vez por todas junto de Deus e o acesso tinha ficado aberto para sempre. Por isso o cristão, conclui o autor várias vezes, não tem que ter saudades nem inveja desses tempos, porque agora a eficácia do sacrifício é muito maior, infinitamente maior, do que era antigamente.

 

 

23.  AS CARTAS «CATÓLICAS»

    Agora, gostaria de fazer uma espécie de intervalo para sugerir a ordem em que as cartas de Paulo devem ser lidas, para tirar o máximo proveito. Trata-se, naturalmente, apenas duma sugestão. Não é uma ordem de importância, mas sim uma ordem cronológica. Seguindo as várias etapas, a ordem que mais ajuda à sua interpretação é a seguinte: I e II aos Tessalonicenses (ano 51-52); I e II aos Coríntios (ano 57-58); Gálatas (ano 53-54?); Romanos (ano 57-58); Filipenses (ano 60-61?); Colossenses (ano 62); Efésios (ano 62-63); Filémon (ano 62-63); I e II a Timóteo (ano 64-67?); e Tito (ano 67). Quanto à chamada Carta aos Hebreus, como ficou dito, não terá sido escrita antes do ano 70.

23.1. Outras Cartas apostólicas

    Mas Paulo não é o único a escrever aos cristãos das várias comunidades. O NT conservou e transmite-nos outras cartas. Assim, entre o ano 49 e 62, Tiago recorda com vigor que não é possível servir a Deus e ao dinheiro, pondo em realce uma das ideias fortes que encontramos também nos Evangelhos. Quanto ao autor dessa Carta, não sabemos ao certo se é da autoria do que é conhecido por irmão do Senhor. Se for dele, a Carta não pode ter sido escrita depois do ano 62, porque é precisamente nesse ano que ele, sendo bispo da Igreja mãe Jerusalém, digamos assim, é lapidado. Seja como for, a Carta de Tiago é um escrito que diz coisas que continuam a ser muito atuais.

    A Carta de Tiago é uma das chamadas Cartas Católicas. Chamam-se assim porque não são endereçadas a nenhuma Igreja particular (como as de Paulo, embora estas também sejam para todos), mas sim a um círculo vasto de leitores; ou seja, a todos os cristãos. Tiago põe o acento no facto de ser preciso demonstrar a própria fé através das obras concretas de dedicação e amor aos outros, sobretudo aos mais necessitados.

    Não sei se a insistência de S. Tiago sobre a necessidade e valor das obras tem alguma coisa a ver com a correção de possíveis interpretações erradas originadas pelo pensamento de S. Paulo, que insiste na necessidade de pôr a fé em Jesus Cristo acima de tudo. Eu diria que, de alguma maneira, a Carta de Tiago complementa as Cartas de S. Paulo.

23.2.  Cartas de S. Pedro

   Além desta, temos também outras «Cartas Apostólicas». Por exemplo, as duas Cartas de S. Pedro merecem muito mais atenção do que a que se lhes costuma dar. Pedro é um homem prático e, em poucas palavras, é capaz de nos deixar uma obra-prima de sabedoria, entusiasmo e generosidade. A segunda é bastante diferente da primeira e, por isso, alguns atribuem-na a outro. Em todo o caso, representa também o pensamento de Pedro. Um motivo por que alguns dizem que a segunda não deve ter sido redigida por Pedro é o facto de não ser tão clara como a primeira e de a linguagem ser um pouco complicada. Seja como for, também ela mereceria uma atenção mais cuidada.

23.3.  Cartas de S. João e S. Judas

   Das Cartas Católicas fazem parte também as Cartas de S. João (três) e a Carta de S. Judas. Não se sabe ao certo de que Judas se trata, embora ele diga que é irmão de Tiago (mas qual Tiago?). Em todo o caso, escusado é dizer que não se trata de Judas Iscariotes. Será que a sua autoria pertence a Judas Tadeu? É difícil dizê-lo. Quanto às Cartas de S. João, devem ser mesmo do autor do quarto Evangelho, atendendo às muitas semelhanças de vocabulário, estilo, ideias e doutrina. Seja como for, nesta sede e pelo menos por enquanto, não há muito mais a dizer; não só porque são relativamente curtas, mas também porque a sua linguagem é relativamente fácil de ler e interpretar.

23.4.  Para ajudar na leitura

    A primeira Carta de S. João parece uma resposta direta a alguns que dizem que Jesus não passa dum intermediário de que Deus se serve para passar a sua mensagem. Mais concretamente, os seus «adversários» seriam gnósticos, que defendiam que podiam ter um conhecimento direto de Deus, sem ter ninguém como intermediário. Pois bem, João polemiza, de alguma forma, com eles e chega ao ponto de dizer: «Nós damos testemunho de que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo. Quem confessar que Jesus Cristo é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus» (cf. 1Jo 4,14).

    Quanto ao resto, tanto as outras Cartas de João como a Carta de Judas são de leitura relativamente fácil. À III de João eu chamaria quase uma espécie de «bilhete-postal» (15 versículos ao todo). Tanto é assim que é o escrito mais curto de toda a Bíblia. Mais curto ainda que a Carta a Filémon (25 versículos) e que o profeta Abdias (21 versículos). No que diz respeito ao NT, resta-nos dizer algo de mais concreto relativamente aos Evangelhos. E deixo-os para depois porque foram escritos depois das Cartas.

 

 

24.  REDAÇÃO DOS EVANGELHOS

24.1.  Evangelhos escritos depois

   É opinião corrente que os Evangelhos só foram escritos depois das Cartas. Vamos então falar deles agora. Como pode calcular, não poderá ser senão uma apresentação geral. Vou limitar-me a situá-los segundo a ordem por que foram aparecendo e talvez falar das suas características gerais. Sei lá, é uma espécie de sinalização do que me parecem ser as suas linhas gerais.

   Vou então começar não pelo que vem em primeiro lugar nas nossas Bíblias, mas sim pelo que foi escrito em primeiro lugar. E esse leva o nome de Evangelho segundo S. Marcos, que na Bíblia está em segundo lugar. É o mais curto de todos. Tem apenas 16 capítulos, contra os 28 de Mateus, os 24 Lucas e os 21 João. O autor do Evangelho de S. Marcos é provavelmente o jovem João Marcos do qual nos fala o livro dos Atos em várias passagens (cf. Act 12,12; 13,3-13; 15,36-40), bem como S. Paulo (cf. Cl 4,10) e S. Pedro (1Pe 5,13). É ele que, segundo os estudiosos, põe por escrito, aí pelos anos 70 da nossa era, a pregação de Pedro em Roma.

24.2. Teologia de S. Marcos

    Marcos é, em certo sentido, um teólogo. Porquê? Porque a perspetiva do seu Evangelho é salientar o drama que se passa com esse homem e Filho de Deus que é Jesus. Desde o início, ele põe as coisas com muita clareza. A primeira frase do seu Evangelho é: «Jesus é o Cristo, o Filho de Deus» (cf. 1,1). A partir daí, vai construir a sua história, a sua Boa Nova, procedendo psicologicamente por etapas, que se vão esclarecendo umas às outras. Ele como que anuncia a sua tese e, depois, pouco a pouco, vai procurando prová-la. Depois desse anunciado de que Jesus é o Filho de Deus, Marcos constrói a sua história falando de Jesus como homem, para chegar ao final e declarar solenemente pela boca dum pagão – o centurião romano (cf. Mc 15,39) – que aquele homem Jesus é realmente o Filho de Deus.

   Os estudiosos da matéria dizem que Marcos escreve, em primeiro lugar, para cristãos provenientes do paganismo e, por isso, tem a preocupação de traduzir todas expressões aramaicas que utiliza. Mas isso não quer dizer que não seja também o evangelista que mais se adapta à mentalidade dos dias de hoje. Ou seja, também os futuros cristãos – que são as pessoas de hoje – têm necessidade de ir descobrindo Jesus aos poucos. O Jesus de quem Marcos fala é uma pessoa muito especial, que provoca a admiração de quem entra em contacto com Ele. E realmente não é por nada que é um pagão que proclama aos pés da cruz que Ele é o Filho de Deus. E o centurião chega a essa conclusão depois de ter admirado Jesus como homem especial, digno de respeito e com indícios que há nele algo mais do que o simples facto de ser homem. Segundo o centurião, aquele Jesus eram muito mais do que só um homem.

24.3.  Um livro catequético

   Ao contrário do Evangelho de Marcos, o de Mateus é escrito proeminentemente para cristãos provindos do judaísmo. E, por isso, a maneira como Mateus estrutura o seu escrito é diferente da de Marcos. No Evangelho segundo S. Mateus, a Igreja aparece como uma comunidade bem estruturada: com uma vida sacramental e litúrgica já bem organizada; com um corpo de doutrina já bastante completo; e com um conjunto de normas morais bem definidas. Por este motivo e por outros, Mateus terá escrito o seu Evangelho pelos anos 80 e, segundo as indicações dos estudiosos, provavelmente na Síria.

   Uma outra característica do Evangelho de S. Mateus é o facto de procurar sempre demonstrar aos leitores que o que aconteceu a Jesus estava escrito e previsto no AT. Ora, esse tipo de «argumentação» ou forma de escrever não seria a mais adaptada a pessoas que não tivessem como base as antigas Escrituras. O que «prova» que o seu Evangelho se destina a cristãos provenientes do judaísmo.

24.4.  O Evangelho da bondade

   Quanto ao Evangelho segundo S. Lucas, já o conhecemos por eu ter dito que Lucas é o autor do Livro dos Atos. Estes são uma espécie de segundo volume da sua obra. Lucas era natural de Antioquia e, do que se sabe, de nacionalidade grega. Mas era sobretudo de mentalidade grega. Ele terá escrito o seu Evangelho também por volta do ano 80, como Mateus, para cristãos convertidos do paganismo. As suas comunidades não se sentem ligadas à tradição judaica. E, por isso, ao contrário de Mateus, a sua «argumentação» através de citações das Escrituras são raríssimas. Para os seus destinatários, tem mais sentido um Jesus de aspeto sublime, quase hierático, vivendo incessantemente em oração, na presença do Pai, cheio do Espírito e inteiramente livre perante os acontecimentos.

24.5.  Voando nas alturas

   Temos, por fim, o Evangelho segundo S. João. O seu autor é o «discípulo amado» do Senhor, identificado como o apóstolo João. O quarto Evangelho não segue o esquema dos outros três. Tem um esquema próprio.

   Os primeiros três, por serem parecidos, também são conhecidos hoje por «sinópticos», o que, à letra, quer dizer «visão simultânea de conjunto». Ou seja, se pusermos os três primeiros Evangelhos em três colunas, podemos ver facilmente quais são os pontos de contacto e os pontos que os distanciam. Mas já não se pode fazer isso com o Evangelho de João. É um escrito que não se enquadra no esquema dos outros.

    Obviamente, também o Evangelho de S. João tem coisas comuns aos outros três. É escrito depois deles e, naturalmente, João tinha conhecimento deles. Mas, bem vistas as coisas, é algo de diferente. Por exemplo, não tem alguns temas importantes que encontramos nos Sinópticos, como, por exemplo, a infância de Jesus e as tentações, o Sermão da Montanha, o ensino em parábolas, as expulsões de demónios, a transfiguração, a instituição da Eucaristia, e outros. Mas, por outro lado, só João apresenta as alegorias do bom pastor, da porta, do grão de trigo e da videira, o discurso do pão da vida, o discurso da Ceia e a chamada «Oração Sacerdotal», os episódios das bocas de Caná, da ressurreição de Lázaro, do cego de nascença, do lava-pés, do diálogo com Nicodemos e com a Samaritana.

   O evangelista João, que terá escrito já perto do final do primeiro século (entre os anos 80 e 100), gosta das grandes sínteses doutrinais. Não é o relato cronológico da vida de Jesus que mais lhe interessa. E, por isso, não vale a pena procurar saber aí o que se passou na vida de Jesus de forma sistemática e segundo dados cronológicos. O que não quer dizer que o que ele diz não tenha importância histórica. Seja como for, o objetivo do evangelista João é dar uma visão mais profunda de alguns aspetos da vida de Jesus e do seu ensinamento. Alguns dos temas de fundo são: a vida e a morte; o amor e o ódio; a liberdade e a escravidão; a luz e as trevas; o pão da vida; o trigo e a videira; a água viva...

 

 

25.  REGRESSO AO FUTURO

    Comecemos por ler: «Vi um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar desvanecera. E eu vi a cidade santa, a nova Jerusalém, a descer do céu, vinda de junto de Deus, preparada como uma nova vestida para receber o seu esposo. E então ouvi uma voz forte que vinha do trono: “Agora, a morada de Deus está com a humanidade. Ele viverá com os homens e eles serão o seu povo. O próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará as lágrimas dos seus olhos e não mais haverá nem morte, nem pranto, nem gritos, nem dor. As coisas de antes passaram”!» (cf. Ap 21,1-4).

25.1.  Linguagem apocalíptica

    Esta é uma pequena amostra do último livro da Bíblia, chamado Apocalipse. Quando se fala de apocalipse, as pessoas quase se enchem de medo. Mas, afinal o que é apocalipse? Na altura em que a Bíblia foi escrita, a apocalíptica era um género literário vulgar. Como vulgares são para nós hoje o romance policial, a ficção científica, a história, a banda desenhada. Eu diria que a apocalíptica é bastante semelhante à ficção científica. Era um género literário em que as pessoas daquele tempo imaginavam, através de símbolos e linguagem cifrada, o que seria o desabrochar final do plano de Deus sobre a vida e o universo. Uma espécie de «guerras estrelares» ante litteram.

    É curioso que, nos dias de hoje, o termo «apocalipse», bem como os seus derivados, implica a ideia de «catástrofe», «guerras terríveis». Mas mais curioso ainda é que os apocalipses bíblicos apontam precisamente para o contrário. Implicam uma luta, é certo, mas uma luta que termina na vitória do Bem, da Verdade, de Deus. Os apocalipses bíblicos são uma linguagem figurada que afirma que tudo se encaminha para a vida e não para o nada, não obstante as aparências; são a afirmação de que, não obstante as vitórias pontuais do mal, tudo isso é passageiro. Segundo os apocalipses, Deus é o Senhor, a história pertence-lhe e tudo será restaurado nele. Aí está o sentido mais profundo do livro do Apocalipse.

25.2. À frente no tempo

    O autor dum apocalipse parece-se um pouco com um atleta que pratica salto em comprimento. Deve fazer o máximo a partir dum determinado ponto. Para que o salto resulte, ele recua 30, 40 ou 50 metros; percorre-os a toda a velocidade e, chegando à prancha de apoio ou ponto de arranque, faz o salto. O autor do Apocalipse quer esclarecer-nos sobre o final dos tempos. Então, para isso, recua no tempo, na história e no passado e, chegando à sua época, salta algumas etapas, projetando no futuro o plano de Deus que ele intui. Por isso, pode-se dizer que a Bíblia termina como começou: com uma visão poética. O apocalipse é, de alguma forma, o salto do próprio homem para o futuro de Deus. O autor do Apocalipse projeta para o fim dos tempos o que meio século de vida cristã lhe permitia já intuir. Mas isso não quer dizer que esteja a falar de coisas que estão para acontecer no próprio momento.

    Apocalipse, à letra, quer dizer «revelação». É uma palavra que vem do grego e que significa precisamente «revelar o que está oculto». Como o livro, escrito originalmente em grego, começa com essa palavra, o livro passou a chamar-se assim. O autor – com uma linguagem extremamente simbólica – aproveita-se das circunstâncias presentes para chegar a algo que ultrapassa essas circunstâncias. Ultrapassa os acontecimentos mais ou menos presentes para saltar para uma mensagem universal, que pode servir para todos e para todos os tempos.

    É como os filmes de ficção científica. Baseiam-se certamente na tecnologia atual e na linguagem cinematográfica de hoje, mas a ação é projetada para um futuro que ainda não se conhece e que apenas se intui. O que significa que o alcance da sua mensagem vai muito mais além da nossa era. Em relação aos filmes de ficção, temos é que ver qual é a intenção dos realizadores. Assim é também em relação ao autor do Apocalipse. Com imagens, com números e símbolos, ele procura dar-nos uma visão de como Deus há de estabelecer, no fim dos tempos e definitivamente, o seu reinado sobre o mundo.

25.3. Conhecer as circunstâncias

    Quando o livro do Apocalipse é escrito, a Igreja começa a ser duramente perseguida. Então, o autor sente que não bastam as palavras para levantar os ânimos e alimentar a esperança. Procura então colorir a visão do futuro e revelar, antecipadamente, aquilo que serão os «novos céus e a nova terra». Nós sabemos que, para exprimir certas sensações, temos que recorrer às imagens. Por outras palavras, temos que sonhar primeiro o futuro, para podermos começar a construí-lo no presente. É essa a intenção do autor do Apocalipse: fazer sonhar os cristãos com o mundo que os espera, para os ajudar a continuar a construir o presente segundo o modelo apresentado por Jesus Cristo.

    As artes em geral recorrem, com muita frequência, a certas imagens e símbolos. Uma simples imagem é capaz de ter mais força de expressão que um chorrilho de palavras. Costuma-se dizer que uma imagem vale por mil palavras. Ora bem, se isto faz parte da nossa vida diária, porquê admirar-se que a Bíblia, uma obra-prima da literatura mundial, recorra a imagens para nos transmitir uma determinada mensagem?

     Claro que há imagens mais fáceis de entender do que outras. E hoje algumas imagens do passado já não são tão compreensíveis como antes. É o caso de algumas imagens do Apocalipse. Mas, quando os símbolos não são muito conhecidos, o que há a fazer é recorrer a quem nos passa ajudar a interpretá-las. É algo disso que eu gostaria de fazer: levantar um pouco o véu do mistério, dar a chave de leitura da linguagem cifrada do Apocalipse.

25.4.  Falando do autor

     Quem é o autor do Apocalipse? Ele chama-se a si mesmo João e apresenta-se como «profeta». Será o mesmo João que escreveu o IV Evangelho e algumas Cartas? Os estudiosos e entendidos na matéria continuam a discutir, ainda hoje, se sim ou se não. Claro que não vou ser eu a decidir a questão, que não sou nem entendido na matéria nem, se calhar, um estudioso. De resto, como tenho vindo a dizer, a autoria do livro é uma questão secundária. Eu já disse, mais que uma vez, que o facto de um determinado livro pertencer a este ou àquele autor não lhe retira ou aumenta a autoridade.

    Mas, enquanto os entendidos não resolvem o assunto, aceitemos o Apocalipse como sendo do apóstolo João. Agora, quanto à data – que também não é uma questão essencial – posso afirmar, com os tais estudiosos, que terá sido escrito entre o ano 90 e 97. Há motivos para dizer isso? Há. Além de outros, é possível que realmente tenha sido escrito por altura das perseguições do imperador Domiciano aos cristãos. Nessa altura de crise, há a necessidade de reafirmar aos cristãos, sem o dar a entender aos que o não eram, que, apesar de tudo, os destinos da humanidade continuam nas mãos de Deus. Enfim, por outras palavras, é preciso dizer-lhes que Deus continua a ser, perdoe-se a expressão, o «patrão da história».

25.5.  Género literário particular

    O Apocalipse é um livro todo particular. É preciso ter bem presente que o seu género literário comporta muitos símbolos. Mas também é evidente que daí não podemos concluir que tenha que se ver simbolismo em todas as palavras. Em todo o caso e como de facto se trata de um livro difícil para a mentalidade de hoje, penso que é bom dar uma ideia geral sobre o seu conteúdo. E faço-o porque parto do princípio – se erradamente, peço perdão – que as pessoas geralmente não leem o Apocalipse ou então, se o começam a ler, depressa desistem, precisamente porque se trata de linguagem pouco comum.

    Ainda me lembro de ter dito, quando dei início a esse curso, que, quando queremos ter uma ideia geral sobre o conteúdo dum livro qualquer, a primeira coisa a fazer é dar uma vista de olhos pelo índice. Pois bem, se isso é verdade em relação a qualquer livro, parece-me ainda mais evidente em relação ao Apocalipse. A Bíblia não tem nenhum índice especial em relação a este livro, mas nós podemos contornar o problema olhando para os subtítulos que vão aparecendo no texto das edições atuais. Com os títulos e subtítulos (que foram postos depois e não fazem parte do texto), podemos fazer uma espécie de esqueleto.

    É como quando queremos visitar um lugar que não conhecemos. Antes de nos aventurarmos, procuramos alguns mapas, guias turísticos e outras informações que nos permitam orientar-nos, para não nos perdermos pelo caminho. O Apocalipse não será fácil, mas podemos tentar. Só peço uma coisa: é que não espere por um esquema absolutamente perfeito e geométrico, digamos assim. A finalidade dum esquema não é senão ajudar as pessoas a guiar-se. Mais nada. E, nesse aspeto, cada um tem os seus. O meu é, portanto, apenas uma ajuda. Mais nada.

25.6. Procurar entender

     O Apocalipse começa com uma introdução que nos dá logo o assunto do livro. Deus encarregou o autor de manifestar aos seus servos o sentido das coisas que em breve vão acontecer. Logo a seguir à introdução, podemos destacar uma primeira parte. Essa parte, em poucas palavras, diz que a Igreja, representada pelas sete (=totalidade) Igrejas da Ásia, tem também uma face humana e pecadora. Essas Igrejas representam as comunidades cristãs de sempre, com a sua santidade e os seus pecados. O número sete está a indicar a totalidade da Igreja. O que até é compreensível se atendermos a uma expressão que existe em português e que soa assim: «As sete partidas do mundo»; o que quer dizer pura e simplesmente «todo o mundo». Para João, é um facto que a Igreja de todos os tempos e de todo o mundo é, ao mesmo tempo, santa e pecadora. Com algumas variações, é esse o grande tema da primeira parte.

     Na segunda parte, o autor apresenta a passagem que se dá duma Igreja judaica para uma Igreja universal; também aberta aos pagãos. E vai mais longe ao dizer que a Igreja como tal tem de enfrentar os poderes totalitários, simbolizados por vários animais reais ou lendários: o dragão, as bestas, os flagelos; e pelo flagelo máximo: a Babilónia que, no AT, é conhecida por «grande besta». Esta é a parte mais longa do livro do Apocalipse, pois vai do capítulo 4 até ao capítulo 21.

     A terceira parte é a parte em que é «cantada» a esperança na vitória e na capacidade de Deus em resolver todos os problemas e em recriar sempre «novos céus e nova terra».

25.7. Mensagem simbólica

    As lutas entre as forças do Mal e as forças do Bem são lutas que não conhecem tréguas. Mas eis que, em linguagem figurada, nos últimos capítulos da segunda parte, se desenha a vitória final, conseguida na batalha de Armagedon, a que se segue o juízo final. Ora bem, deixemos as imagens para segundo lugar, porque a intenção do autor é transmitir uma mensagem. E a mensagem é relativamente simples de intuir: o Bem, apesar de tudo, acabará por vencer. E, por isso, as imagens e os símbolos têm a importância que têm. Ou, por outras palavras, os símbolos e as imagens estão ao serviço da mensagem. E a linguagem é em símbolos por causa das perseguições, de forma que os leitores do livro – os cristãos – possam entender, sem que os perseguidores desconfiem.

    No Apocalipse, Deus está sentado num trono. Fala-se de Alguém que está descrito num livro selado por sete selos. É o AT, cujo verdadeiro sentido permanece selado até que Cristo vem e revela o sentido. Cristo é simbolizado pelo Cordeiro oferecido para a salvação de todos. É Ele o grande vencedor. O cosmo é simbolizado pelos quatro seres vivos; e a humanidade é representada pelos 24 anciãos. Mas isso não quer dizer que a luta não tenha ainda que continuar. O auge da luta entre a Igreja e os poderes contrários a Deus é simbolizado pelo combate entre a mulher e o dragão (cap. 12), luta que é retomada no capítulo 20. Os números que encontramos nestes capítulos são também simbólicos e, como regra, indicam um tempo relativamente longo de prova e de combate.

    A propósito de números, qualquer versão da Bíblia – sobretudo de entre as mais atuais – nos vai dando elementos preciosos nas suas notas de rodapé. Assim, se consultar o capítulo 20, numa das notas relativas ao reino dos mil anos, eu leio o seguinte: «Tempo indefinido. Não podemos interpretar à letra este número simbólico... O número 1000 provém talvez das especulações judaicas sobre a vida de Adão que, chamado a viver no paraíso, durante 1000 anos, apenas aí terá vivido 930 devido ao seu pecado». Isso para dizer que tomar à letra os números do Apocalipse – bem como de outros livros – é cair no ridículo. Por isso, não faz sentido basear-se nesta ou noutras passagens para vir afirmar que o fim do mundo acaba no 1000 ou no ano 2000 ou seja em que ano for. Esse número é simbólico e refere-se fundamentalmente à luta prolongada entre o Bem e o Mal.

25.8. A chave de leitura

     Com o capítulo 21, começa a terceira parte do livro. Quanto a este capítulo em especial, eu penso que ele é como que a chave de leitura de todo o livro. Trata-se de um texto extraordinário. Eu diria que é quase um modelo do romance fantástico. Os dois últimos capítulos do Apocalipse, de facto, apresentam-nos uma visão grandiosa da Igreja, que é apresentada como a «Jerusalém celeste», ou seja, a Igreja vista, em antecipação, como ela se há de apresentar transfigurada. É como que o Êxodo levado até às últimas consequências: a libertação total, o paraíso aberto; ou seja, Deus-connosco definitivamente.

     Bem vistas as coisas, o Apocalipse é como que o resumo fantástico e ao mesmo tempo poético de toda a história da salvação. Neste livro, são como que percorridas, em flashes rápidos, as principais etapas dessa história que não ficará completa enquanto o Dragão não for vencido definitivamente. A mensagem final do autor é, pois, a seguinte: embora tenham que sofrer, os cristãos serão, duma maneira definitiva, os vencedores desta luta tremenda contra Satanás. «O Apocalipse é, assim, a grande epopeia da esperança cristã, o canto de triunfo da Igreja perseguida», como diz um estudioso da Bíblia chamado P. Benoit.

25.9. História e «ficção»

     Numa qualquer abordagem do Apocalipse, há que dizer que se trata duma linguagem altamente simbólica. Portanto, é muito diferente daquilo que, por exemplo, é história propriamente dita, como, por exemplo, o I livro de Samuel. É, pois, uma linguagem que se não pode tomar à letra, sob pena de compreender tudo ao contrário. A linguagem simbólica pretende sugerir emoções, sentimentos, sofrimentos, esperanças; enfim, transmitir uma mensagem. No caso do Apocalipse, como em outros livros da Bíblia, trata-se duma mensagem de carácter religioso. Quem pretender servir-se da Bíblia para provar uma teoria científica qualquer, está a inverter por completo a sua finalidade.

    Quando se lê o Apocalipse, não se pode seguir uma interpretação palavra por palavra ou mesmo frase por frase. Há coisas que não se podem dizer por palavras. Recorre-se então a imagens, que podem estar contidas em várias palavras ou frases. A título de exemplo, se quisermos representar o Mal – um conceito abstrato – o que é que fazemos? Recorremos à criação de personagens ou criaturas que deem às pessoas a sensação de repugnância e de terror. Quer então dizer que as imagens correspondem a uma criatura real? Certamente que não! O que as imagens querem transmitir é uma determinada ideia. Sei lá, quando eu digo de alguém que é feio como o demónio, será que temos ali a imagem do demónio em pessoa? É apenas uma maneira de dizer que a pessoa é muito feia. É o mesmo quando eu digo, por exemplo, que uma menina é linda como um anjo.

    O Apocalipse é um enorme quadro de muitas cores e de muitas formas que nos sugere muitas coisas. Agora, o que não podemos é procurar nestas cores uma correspondência à realidade. É preciso é ver o sentido do quadro no seu conjunto. Este é o princípio básico que não podemos esquecer. Seja como for, é sempre possível descobrir um certo código de imagens que se pode decifrar um pouco. Não quer dizer – repito – que todas as palavras e frases do Apocalipse tenham um valor simbólico, mas alguns exemplos ajudar-nos-ão a ter uma ideia mais exata do que significam e, portanto, fornecer-nos algumas chaves de interpretação.

25.10.  Vários códigos de interpretação

     Podemos então dizer que no Apocalipse temos vários códigos de interpretação. O primeiro pode ser, por exemplo, o código das cores. Pois bem, no género apocalíptico, o branco, por exemplo, sugere pureza e vitória; o encarnado simboliza o sangue e, portanto, a luta, a violência, o sofrimento, o martírio, a morte; o preto sugere também a morte, a impiedade, o poder do Mal. Tão simples como isso. De resto, bem vistas as coisas, isso não é novidade nenhuma para ninguém, porque faz parte da linguagem audiovisual de todos os dias. Se repararmos com atenção para a maneira como se vestem os atores nos filmes de fantasia e de outras produções, havemos de reparar que o papel da roupa é importante na caracterização dos heróis e dos vilões.

    Um outro código usado pelo Apocalipse é o dos números. Se tivermos em conta que o Apocalipse – como, de resto, todos os outros livros bíblicos – nasceu num ambiente oriental, então sabemos que o poder sugestivo dos números é muito forte. Vou dar apenas alguns exemplos. O sete é considerado o número perfeito e, por isso, sugere plenitude, universalismo. E, por exemplo, o seis – que é sete menos um – então já sugere imperfeição. Se forem dois ou três seis em série, muito pior. Não é então de admirar que o número que simboliza o Mal por excelência seja precisamente o 666. Aliás, devo acrescentar que este número escrito em letras hebraicas correspondia ao número de Nero César.

    Nesta ordem de ideias, também o número três e meio, por exemplo, sendo metade de sete – que é símbolo de plenitude – significa imperfeição, sofrimento, tempo de prova e perseguição. O número doze, por exemplo, também está carregado de sentido: simboliza tanto o Israel do AT (as doze tribos) como o Israel do NT, que é a Igreja. O número 1000, bem como os seus múltiplos, é outro número simbólico que sugere grande quantidade. De resto, ainda hoje, na nossa linguagem comum significa isso mesmo: «Já te disse isso mil vezes!». Os chineses, para realçarem ainda mais esta ideia, multiplicam o «dez» (que é 7 mais 3, dois números perfeitos) por mil para significar muito, grande quantidade... E, nesta linha, poderíamos eventualmente referir outros números.

25.11. Cuidado com a leitura

     Pelo que acabo de dizer, parece-me claro que, quando se lê o Apocalipse, é preciso ter cuidado para não tirar conclusões pretensamente históricas ou científicas a partir de dados ou números que não têm senão valor simbólico. Se eu tomar à letra a expressão chinesa «desejo-te dez mil anos de vida», é sinal de que ainda não entrei no espírito e no génio da língua chinesa. Ora bem, temos coisas assim no Apocalipse. Estou a lembrar-me agora dum número que no Apocalipse causa muita confusão. Trata-se do número 144.000 (cf. cap. 7). Comete um erro grave de interpretação quem diz que se salvam apenas 144.000...

    Se fizermos umas contas muito simples, reparamos que 144.000 não é mais do que o resultado de 12 (a totalidade do povo de Israel) ao quadrado (AT e NT) multiplicado por 1000. E isso não é a quantidade exata dos que se salvam – isso só Deus o pode saber – mas sim que se trata dum número incalculável de eleitos. Além do mais, se porventura tivéssemos dúvidas quanto a isso, bastava continuar a ler o texto onde está o número 144.000 eleitos. Veríamos então imediatamente a seguir a isso: «Depois disto, apareceu na visão uma multidão enorme que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas» (cf. Ap 7,9).

     Para terminar, mais alguns símbolos em traços telegráficos. Temos, por exemplo, a palavra chifre. Devo dizer que, na Bíblia, quase nunca significa a haste própria dos animais, mas indica força, poder e autoridade. É, de resto, um objeto, digamos assim, que ainda é utilizado por certas tribos; e os filmes dão-nos conta disso com alguma frequência. Outra expressão é a dos cabelos brancos. Sabemos que até na nossa linguagem comum significam idade avançada e maturidade. Na Bíblia, além disso, a expressão significa também eternidade, sabedoria. Por exemplo, a veste ou a túnica branca é geralmente símbolo da função sacerdotal. Como estes, há outros que temos que interpretar corretamente.

 

 

26. COMO LER O EVANGELHO

26.1.  Aprender a ler

   «O riacho, que se alimentara gulosamente da chuva generosa da tarde anterior, acordou, folgazão e maroto, e foi espreguiçar-se, roçando-se, prazenteiro, por entre as ervas gostosas que se abraçavam às margaridas a sorrir para o sol, que lhes beijava as faces com o ardor dos seus raios entretecidos em fios de oiro a repousar sobre a terra acolhedora e fecunda». Hoje, parece que não se escreve assim. Seja como for, quem ler esta frase não se preocupa por saber se é a descrição da realidade. É uma frase feita de imagens e não quer dizer senão, por exemplo, que estava uma bela manhã. Quem quiser ver nesta frase algo de enigmático provavelmente está a inverter por completo a intenção de quem a escreveu.

    É este tipo de raciocínio que nós temos que fazer também em relação a algumas páginas da Bíblia: do AT e do NT. A intenção dos autores bíblicos é muito mais do que simplesmente satisfazer a nossa curiosidade. Bem, com isto, eu gostaria de dedicar agora mais algum espaço aos Evangelhos, porque acho que as pessoas estão mais familiarizadas com estes escritos.

    Pois bem, antes de mais, nos nossos textos evangélicos, encontramos unidades que nascem separadas umas das outras. Provavelmente, terão nascido em diferentes ambientes e comunidades como resposta a perguntas ou questões levantadas por essas mesmas comunidades.

26.2.  Para além da curiosidade

     É muito natural que as pessoas tenham curiosidade em saber o mais possível sobre Jesus, uma vez que as testemunhas diretas e oculares vão desaparecendo. Além disso, com o tempo, há o perigo de se irem esquecendo algumas coisas. O que, por seu lado, pode provocar alguns desvios em relação às palavras que os apóstolos pregam. Surge então a ideia de pôr tudo por escrito. Assim, fica tudo mais seguro. Além do mais, há uma outra vantagem. À medida que as comunidades se vão espalhando, há cada vez mais dificuldades de encontrar quem possua de memória todos os dados necessários. É muito mais fácil que textos escritos cheguem mais fielmente aonde os apóstolos ou os seus discípulos não chegam.

    É certo que já havia várias Cartas de Paulo. Mas Paulo não fala muito da vida e dos gestos de Jesus. Ora, as pessoas também querem ouvir falar um pouco desse Jesus, cuja doutrina é explicada nas Cartas. Se eles não tinham conhecimento sobre o que Ele tinha ensinado e feito, quem era Ele, era muito difícil entender o conteúdo das Cartas. É então que quatro redatores resolvem reunir esses relatos que correm, em narrações unitárias ou Evangelhos. Como é natural, cada um desses quatro redatores realça uma determinada faceta de Jesus. Seja como for, a pessoa que esses diferentes redatores querem revelar é precisamente a mesma pessoa. Eles não têm a intenção de provar seja o que for, mas sim, e acima de tudo, falar e propor a pessoa de Jesus. Pois bem, então uma coisa a ter em consideração na leitura dos Evangelhos é: lê-los para descobrir essa pessoa.

26.3. Métodos de leitura

    Assim, já é possível fazer a leitura dos Evangelhos com mais exatidão. Há vários métodos, como é óbvio. Pode-se, por exemplo, fazer a leitura por secções ou então interessando-se por este ou aquele episódio, por este ou por aquele milagre, por este ou por aquele discurso. Trata-se de fórmulas que nos ajudam a fixar as coisas. É este o método, digamos assim, utilizado pelo evangelista Mateus. E talvez seja por isso mesmo que ele foi sempre o mais popular e o mais conhecido. E não deve ser também por acaso que o Evangelho de Mateus está em primeiro lugar; isto apesar de, por exemplo, o Evangelho de Marcos ter sido escrito primeiro. O Evangelho de Mateus é o que mais se parece, se assim posso dizer, com o catecismo.

     Ler por partes é talvez a forma mais usual de ler o Evangelho; sobretudo se queremos saber o que ele diz sobre um determinado assunto. Mas talvez não seja a forma preferida pelas pessoas simples, a quem interessam mais os factos do que as palavras. Se calhar, estas interessam-se mais por uma visão de conjunto. Ter uma visão de conjunto dos quatro Evangelhos não é fácil. Mas, se calhar, é o que dá mais resultado.

     É natural que as pessoas tenham preferência por um evangelista mais do que por outro. Isso depende da formação. Mas acontece assim com todos os livros. É normal e não temos nada que nos admirar. Cada um tem os seus gostos e a sua maneira de ser. Muitas vezes, sem sequer nos darmos conta disso, somos impressionados mais por isto ou por aquilo. Isso não deve ser nenhum problema. Claro que seria bom que os lêssemos todos, mas não é possível exigir isso a todos e em todas as circunstâncias.

26.4.  Uma sugestão

     Eu, se tivesse que recomendar a leitura do Evangelho a um descrente, talvez lhe dissesse para começar com o Evangelho de Marcos. Todo ele pretende ser uma resposta à seguinte pergunta: «Quem é este homem chamado Jesus?». E Marcos quer que nós cheguemos à mesma resposta que deu o centurião aos pés da cruz: «Ele é na verdade o Filho de Deus». Mas digo mais: este Evangelho é também o mais simples e direto para os mais novos. É muito concreto, tem uma linguagem bastante colorida, tem poucos discursos e também – o que, por vezes, não deixa de ser importante – Marcos é o mais curto de todos. Terminada a leitura do Evangelho de Marcos, então talvez o leitor tenha mesmo a curiosidade de ir saber o que é que os outros três dizem sobre Jesus.

    Depois da leitura de Marcos, eu aconselharia o Evangelho de Lucas. É um Evangelho para pessoas que ainda não se encontram muito identificadas com a Igreja como instituição. A essas pessoas agrada muito mais a ideia de Igreja, não como instituição, mas como comunidade. Os próprios descrentes são também seduzidos, digamos assim, pela «vertente social» de Lucas, pela sua opção preferencial pelos pobres e desprotegidos. Lucas apela aos sentimentos e ao coração e até, de alguma forma, a tudo o que a pessoa tem de poético dentro de si.

    Quanto ao evangelista Mateus, eu diria que é mais para os que já são cristãos e que se sentem bem numa Igreja como instituição. Aí encontram tudo o que é essencial saber sobre Jesus.

    Quando ao Evangelho de João é, em poucas palavras, um Evangelho para as pessoas contemplativas. O que não quer dizer necessariamente mais inteligentes e ilustradas. O que é certo é que João, em largos círculos concêntricos, leva-nos cada vez mais longe e leva-nos a mergulhar profundamente nessa vida que já começou na eternidade, que se prolonga nesta vida através do amor, e que vai desembocar de novo na eternidade.

26.5.  Onde começar a leitura?

     Quando se trata da leitura dos livros da Bíblia, cada um tem a liberdade de começar por onde quiser. Mas a leitura será muito mais proveitosa se tivermos uma visão de conjunto. E é isso o que eu tenho vindo a procurar fazer. Sei que se trata de pistas e mais nada. Mas, se calhar, com algumas pistas, é mais fácil seguir por um determinado caminho. E devo acrescentar que, nas nossas Bíblias atuais, as pistas também não faltam. Por isso, acho que é bom que saibamos aproveitar as introduções e notas que encontramos, não só antes de cada uma das duas grandes partes da Bíblia, como também as que explicam cada um dos livros.

    Acho também que devemos evitar uma coisa: partir do suposto que basta ler o NT, pelo facto de este ter ultrapassado o Antigo. Dizer que não tem interesse ler o AT porque já temos o Novo, a meu ver, é errado. Para entendermos melhor um determinado volume, é conveniente lê-lo todo. Como regra, a última parte do livro só se entende depois de ter lido o que está antes. Pois bem, no caso da Bíblia, o NT é, digamos assim, a sua segunda parte. E, de acordo com este raciocínio, compreender-se-á melhor depois de ter sido lida a primeira parte, ou seja, o Antigo. Há, por exemplo, muitas expressões no NT e até muitos títulos dados a Jesus que têm a sua explicação no AT. Por exemplo, os títulos de «Senhor», «Ungido», «Filho do Homem».

26.6.  Suponhamos que...

     Suponhamos que não temos nenhuma formação cristã e que pegamos, a primeira vez, no NT. Imaginemos que começamos a ler os Evangelhos. Pois bem, aí temos, por exemplos, as aclamações que os populares entoaram e Jesus antes de Ele entrar solenemente na cidade de Jerusalém; e, mais concretamente, a expressão «Hosana, Filho de David». Ora bem, como é a primeira vez que lemos esta expressão, não conseguimos captar-lhe o significado. Pode acontecer que fiquemos a pensar que Jesus era descendente de sangue dum sujeito qualquer que, por acaso, se chamava David; este seria o seu pai genético. Poderemos até pensar que é algo de parecido com o que encontramos em qualquer bilhete de identidade, estilo: Manuel da Silva, filho de Fernando Silva e Maria Ferreira.

     Ora bem, mesmo quem não tenha qualquer formação cristã, se tiver contacto com a primeira parte da Bíblia, descobrirá, se puser alguma atenção no que lê, que a expressão «Filho de David» tem um sentido especial e que não tem a ver com filiação carnal imediata. Descobrirá que esse é, isso sim, um título que tem a ver com todo um plano e um programa religioso e político. Portanto, no caso dessa expressão, não se pode atender apenas ao seu sentido literal, mas a todo o contexto que está por detrás e que implica toda uma ação parecida à que teve o rei David no AT. Foi David que deu uma unidade nacional ao povo de Israel. Então, o «Filho de David» no futuro significa que a missão dele (Jesus) é ser o promotor e autor, por assim dizer, da identidade nacional dum novo povo, à semelhança do antigo povo de Israel.

     Deixe-me sugerir-lhe um outro exemplo. É a expressão «Filho do Homem». Jesus aplica-a a si mesmo. Que terá de tão especial essa expressão que leva os sacerdotes do tempo de Jesus a dizer que Ele blasfema ao aplicá-la a si mesmo? Com frequência, não basta a análise gramatical para descobrir o verdadeiro sentido duma determinada expressão. Eu dou um exemplo em português: «Se não fazes isto, comes!». Claro que a simples análise das palavras não nos dá o seu sentido. Assim também, «Filho do Homem» no AT – e sobretudo nos profetas Daniel e Ezequiel – indica claramente atributos divinos, embora as palavras em si o não digam. E é uma expressão exclusivamente aplicada ao Messias. Ora, não é possível saber essas coisas sem recorrer ao AT.

    Da mesma forma, para compreendermos, no seu sentido mais profundo, palavras como «pastor», «vinha», «mar», «núpcias» e outras que encontramos nos Evangelhos, há que recorrer ao AT. Bem vistas as coisas, essas palavras, no seu significado literal e óbvio, não têm nada de especial. Mas a verdade é que, quando os autores dos Evangelhos as utilizam, têm a intenção de lhes atribuir um sentido muito particular. É como quando usamos, por exemplo, a expressão «o 25 de Abril». Alguém que não esteja a par do que se passou nessa data em Portugal, não pode senão ler e interpretar essas palavras à letra.

26.7.  Como uma construção

    Além disso, o AT também tem aplicação à nossa vida. A humanidade, apesar de todos os avanços tecnológicos, lá bem no mais íntimo, é fundamentalmente a mesma de sempre. E há livros do AT que são o espelho das grandes experiências humanas. Estou a recordar-me, neste momento, por exemplo, do extraordinário livro sobre o sentido do sofrimento, que é o livro de Job. É difícil encontrar melhor. O próprio S. Paulo diz mais ou menos a mesma coisa quando afirma que os acontecimentos de que o povo de Israel foi protagonista são o «tipo», o «paradigma» daquilo que nos acontece a nós. São os moldes, as maquetas, digamos assim, os modelos de que nos podemos servir para construir a nossa própria vida.

    Quando um arquiteto faz uma casa, ele pensa nela já acabada, mesmo antes de começar a construí-la. Para isso, faz esquemas e esboços no papel. O desenho vai-se completando à medida que novos elementos vão aparecendo. Mas só em atenção ao conjunto é que alguns pormenores têm sentido. Sozinhos, esses pormenores ou essas peças não têm qualquer sentido. Pois bem. Os acontecimentos vividos pelo povo de Israel, embora pareçam coisas isoladas, talvez não sejam apenas uma coisa que só interessa a eles. Esses acontecimentos faziam parte – eram o esboço – duma obra que Deus queria (e quer) realizar com toda a humanidade. Nós acreditamos num Deus que age na história – e particularmente na história dos homens. E, sendo assim, reconhecemos que Deus agia já no AT em função da realidade que estava para vir: Cristo e a sua Igreja.

26.8.  Divisão em 10 Cantos

    Para recordar, muito resumidamente, como é esse roteiro, o amigo permita-me que, mais uma vez, eu deixe aqui as etapas principais do AT. Nesse sentido, poderei dizer que o AT é como uma grande epopeia em 10 Cantos.

 1) Primeiro Canto

   O primeiro Canto está contido nos primeiros capítulos do Génesis (cc. 1-10). É a época das origens: as origens do universo, do homem e da primeira comunidade humana. Trata-se duma época que, naturalmente, não é datável.

 2) Segundo Canto

O livro do Génesis contém ainda a segunda etapa, que é época dos Patriarcas, que vai do século XIX ao século XVII a.C.

 3) Terceiro Canto

   O segundo livro da Bíblia, o Êxodo, assinala a terceira etapa. Este livro dá um salto histórico de 4 séculos, que é o período em que os hebreus estão escravos no Egipto. O início do regresso dá-se por volta do ano 1250 a.C. e os principais episódios são: a opressão dos hebreus; a missão de Moisés; a passagem do Mar Vermelho; a viagem pelo deserto, sobretudo a partir do Sinai, onde é estabelecida uma aliança com Deus concretizada nos Dez Mandamentos; e, dum modo geral, as peripécias do povo eleito, durante os 40 anos de peregrinação pelo deserto, que os leva a chegar à Terra prometida. A época termina com a morte de Moisés e a chegada. Desta época falam também os livros do Levítico e dos Números e também o livro do Deuteronómio.

 4) Quarto Canto

   Por volta do ano 1200 a.C., tem início a quarta época, que vai desde a entrada na Terra Prometida até à implantação da monarquia. O povo passa a ser comandado por Josué e, depois, pelos chamados Juízes. Tanto Josué como os Juízes são uma espécie de chefes carismáticos dum povo ainda não organizado de forma estável. Na prática, a cada uma das 12 tribos que compunham Israel corresponde um desses chefes, que vão dando uma certa unidade, preparando o povo para a etapa seguinte. Desta quarta época, dão-nos conta sobretudo os livros de Josué, dos Juízes e, em parte, I Samuel e também o livro de Rute.

 5) Quinto Canto

   A quinta etapa é a que inclui sobretudo os primeiros anos da monarquia, que vai do ano 1050 ao ano 1000 a.C. As figuras principais desta época são o profeta Samuel e os reis Saul e David. Saul é o primeiro grande rei de Israel. David, enquanto Saul é vivo, deve considerar-se mais como rival do que propriamente rei, pois, embora tenha sido consagrado, tem que viver vários anos escondidos e a defender-se de Saul. Os acontecimentos deste período estão contidos nos I e II de Samuel e no I das Crónicas, que vem logo depois do II dos Reis.

 6) Sexto Canto

   Vem depois a sexta etapa, que vai do ano 1000 até ao ano 930 a.C. mais ou menos. É neste período que Jerusalém é definitivamente conquistada e constituída como capital de todo o Reino de Israel. Dá-se finalmente a unificação como monarquia estável e respeitada. O culto recebe um impulso sem precedentes e a monarquia atinge o seu apogeu com Salomão. Mas, infelizmente, é também com Salomão que começam os primeiros sinais de decadência, porque começa a imperar um certo absolutismo que lesa os interesses do povo. E este, muito naturalmente, começa a dar mostras de cansaço.

 7) Sétimo Canto

   Por volta do ano 930 a.C., começa o descalabro. Estamos na sétima etapa. É uma época em que Israel é dividido em dois reinos: o Reino do Norte, com a capital na Samaria; e o Reino do Sul, com a capital em Jerusalém. Esta divisão é acompanhada duma apostasia religiosa no Norte. Sem um forte sentido de identidade nacional, o povo deixa-se levar facilmente pelas práticas religiosas de outros povos mais progredidos em termos sociais e políticos. Na falta de líderes fortes, aparece, nessa altura, uma classe de pessoas importantíssimas em Israel: os profetas; primeiro, os profetas não escritores, como Elias e Eliseu; e, depois, os escritores, como Amós, Oseias, Isaías e outros. Este período termina em 586 a.C., quando Israel desaparece do mapa por ocasião do exílio em massa para a Babilónia.

 8) Oitavo Canto

   A oitava época é constituída pelo Exílio da Babilónia e vai de 586 a 538 a.C. Jerusalém capitula definitivamente perante as investidas dos babilónios, chefiados pelo rei Nabucodonosor. Os elementos mais influentes da sociedade são dispersos, para que não haja a possibilidade de organizar qualquer resistência. É a derrocada política. Mas, paradoxalmente, começa um período de purificação no aspeto religioso, na medida em que a religião se torna o que realmente deve ser: primordialmente relação mais profunda com Deus. Papel importante, nesta renovação, têm, mais uma vez, os profetas, sobretudo Jeremias, Ezequiel e Daniel e outros dois que completam as profecias de Isaías.

 9) Novo Canto

   A nona época é representada pelo período em que os hebreus, graças a um decreto favorável do novo grande rei da região, Ciro, voltam do exílio em 538 a. C. Este período vai até à época dos Macabeus. Até aos Macabeus, os judeus começam a refletir sobre os acontecimentos do passado e a pôr isso por escrito. É nessa altura que aparece a versão definitiva de muitos dos escritos do AT.

10) Décimo Canto

Com os Macabeus, há ainda tentativas de revoltas; algumas bem-sucedidas. É a décima época, que precede a vinda de Jesus. Nesta altura, já os gregos são os donos da região. Os focos de resistência serão definitivamente apagados com a chegada dos romanos. Israel ficará para sempre sob o domínio estrangeiro e acabará mesmo por desaparecer como nação, até à metade do século XX (1947).

 

 

27. A DESPEDIDA

   Eis-nos chegados ao fim deste curso bíblico. Pelo que me diz respeito, o curso poderia ainda continuar, pois que se tratou apenas de uma viagem organizada pelo mundo da Bíblia. Mas, por outro lado, suponho que, como visão de conjunto, já vai sendo suficiente. Agora, este curso não terá muita eficácia se o amigo ouvinte não começar a pegar na Bíblia e não fizer também o seu trabalho pessoal. Seja como for, não gostaria de deixar de ter esta conversa de hoje. A finalidade é insistir, mais uma vez, num ponto que eu acho importantíssimo. E é o seguinte: a leitura da Bíblia será tanto mais frutuosa quanto mais o leitor se interessar pessoalmente pelo assunto. E isso, obviamente, depende da vontade de cada um.

    Eu costumo dizer – e acho que é verdade – que temos sempre tempo para o que queremos. Se eu gosto muito da tal telenovela ou do tal desafio de futebol, por mais que tenha que fazer, arranjo sempre tempo para não perder os episódios da telenovela ou o desafio de futebol. O mesmo se passa com a leitura da Bíblia ou de qualquer outro livro ou revista. Se realmente me interessar, arranjo sempre tempo para voltar a essa leitura.

    A Bíblia não pode ser um documento morto, ou objecto de análise fria de estudioso. Não é matemática nem, em primeiro lugar, objeto de estudo, mas sim vida. Ler e interpretar a Bíblia sem olhar para a realidade de ontem e de hoje é o mesmo que ter o sal fora da comida, a semente fora da terra, a luz debaixo da mesa. Se a Bíblia tem a importância que tem – e até tão grande êxito de vendas – é porque se trata de um livro especial; de um livro que é vida. Mas só será vida quando pautarmos o nosso dia-a-dia por ela. Senão, será uma coisa do passado.

    A realidade é assim tão importante para poder entender a Bíblia? É, porque ela é anterior à Bíblia. O primeiro livro que Deus nos deu é a natureza, são os acontecimentos, a história, tudo o que existe e acontece na vida das pessoas: na história do povo eleito de então e na história do povo de Deus de agora. Por meio da vida – concretamente, da nossa vida – Deus quer transmitir-nos a sua mensagem de amor e de perdão, de justiça e de verdade. Ele quer ser o nosso Deus e quer que nós sejamos o seu povo.

    Fundamentalmente, nós somos iguais ou pelo menos semelhantes às pessoas de há três ou quatro mil anos. E assim como Deus se interessou por elas, também agora Ele se interessa por nós. A história de amor de Deus pelos homens é contida e contada pela Bíblia é o modelo de amor de Deus por nós. Como ontem, também nós hoje organizamos o mundo de maneira injusta. Então, podemos e devemos recorrer à Bíblia para ver como é que há que proceder e corrigir as situações que estão erradas. Quem lê e estuda a Bíblia sem esta perspectiva está sujeito a não perceber nada e porventura a achá-la inútil e até aborrecida.

    Do que tenho dito, creio que podemos concluir que o estudo da Bíblia é uma coisa muito séria. Parece claro que não podemos ler a Bíblia como lemos, por exemplo, a «Morgadinha dos Canaviais». A leitura da Bíblia é também contacto com Deus. Ora, quando a gente conversa com alguém, não o deve fazer como se estivesse a tratar de uma coisa. Se, pela Bíblia, Deus conversa connosco e nós conversamos com Ele, então devemos saber o que é que as palavras de Deus querem dizer. E, para isso, para além da sua leitura, eu tenho que procurar estudar um pouco as palavras que Ele utiliza para falar comigo. Ora Deus, para falar comigo, utiliza a linguagem que é a minha linguagem. Por isso, tenho que estar atento às regras próprias da linguagem. Isto para eu não tirar do texto da Bíblia o que lá não está. E é por isso que eu nunca posso manipular a Bíblia em favor das minhas ideias.

    Para perceber uma conversa, é preciso saber a língua em que essa conversa é feita. Mas, mesmo assim, pode-se ouvir uma conversa de duas maneiras: com interesse ou sem interesse. Assim, também se pode fazer a leitura da Bíblia com duas mentalidades. A gente pode perceber uma conversa e ficar completamente indiferente. Ou então pode-se escutar essa conversa com interesse. Ora bem, quanto à leitura da Bíblia, é algo de parecido. Pode ler-se com interesse ou sem interesse. Eu cá julgo que devemos ser generosos e abertos para que a Bíblia produza fruto. Por outras palavras, ler não só as linhas, mas também e, se calhar, sobretudo as entrelinhas, como se costuma dizer. É que a vida também está nas entrelinhas.

   As introduções a cada livro da Bíblia, as notas no rodapé da página, que estão espalhadas pelas nossas edições da Bíblia, as referências a outros textos bíblicos, os mapas geográficos, os índices, tudo isso é feito para nos ajudar a descobrir o sentido exacto das linhas e das entrelinhas do texto bíblico. Além disso, devo confessar que a prática e o exercício valem muito. O que não se descobre numa primeira leitura, talvez se descubra depois numa segunda leitura ou numa terceira; enfim, na leitura que foi. Aprende-se a nadar nadando. Pois bem, o conhecimento da Bíblia e a capacidade de a aplicar à vida adquire-se através duma prática constante de leitura., e digo mais: quanto mais a lermos, mais gostaremos de a ler.

    A Bíblia foi surgindo da caminhada dum povo oprimido e constantemente infiel. Ora bem, esse povo, podemos ser nós. Hoje também a leitura da Bíblia não deve ser feita separadamente da vida. A Bíblia não é neutra. A Bíblia tem que mexer connosco. Ela deve ser o fermente de Deus neste processo de conversão e mudança da morte para a vida, do medo para coragem, do desespero para a esperança, da escravidão para a liberdade plena. A sua leitura e interpretação não dependem só da inteligência e do estudo. A inteligência é importante – pois não podemos tirar proveito daquilo que não conhecemos – mas depende também do coração, ou seja, do mais íntimo e vital que há em nós. E depende também do Espírito Santo.

    O próprio Jesus Cristo disse: «Agora ainda não compreendeis muitas coisas. Mas o Consolador, o Espírito Santo, esse ensinar-vos-á todas as coisas e recordar-vos-á tudo o que Eu vos tenho dito» (cf. Jo 16,12-13; 14,26). A Bíblia não me dirá muito se eu não me deixar envolver com o coração e com a vida toda. Quando isso suceder, a Bíblia pode ter um papel importante; pode suscitar em mim aquela mudança radical da dúvida para a certeza de que Deus está connosco e de que nós caminhamos em direcção a Ele, para estarmos para sempre com Ele. Oxalá que, com este curso, eu tenho conseguido o interesse pela leitura e manuseamento deste livro único e maravilhoso!