Temas de fundo |
1ª leitura (Is 63,16b-17; 64,1.3b-8): Tu, Senhor, és o nosso pai, aquele que, desde sempre, é o nosso Redentor. Porque, Senhor, nos deixas extraviar dos teus caminhos? Porque permites que o nosso coração se endureça a ponto de não te temer? Volta-te para nós, por amor daqueles que te servem e das tribos que te pertencem! Quem dera que rasgasses os céus e descesses! Até os montes te haviam de ver e tremeriam todos diante de ti! Nunca ninguém ouviu ou viu que um Deus, excepto Tu, tenha feito tanto por quem nele confia. Tu vais ao encontro dos que praticam o bem com alegria e se recordam de seguir os teus caminhos. Perdoa as nossas faltas e seremos salvos. Éramos todos pecadores. As nossas melhores ações eram como panos ensanguentados. Mas Tu, Senhor, és o nosso pai. Nós somos como a argila e Tu como o oleiro. Todos nós fomos modelados pelas tuas mãos; por isso, não te irrites em demasia nem te lembres para sempre da nossa iniquidade: olha que todos nós somos o teu povo.
* Só Tu, Senhor, és nosso pai. Este texto pertence à terceira parte do Livro de Isaías (Terceiro Isaías) e o contexto histórico-social é Judá (Reino do Sul), e particularmente Jerusalém. Tinha-se passado algum tempo desdeo regresso dos exilados da Babilónia. Sabe-se que o regresso - e sobretudo a adaptação das pessoas à nova realidade - foi bastante menos fácil do que se esperava. Com efeito, tratava-se de «retornados» de segunda geração, que nem sequer conheciam o país de origem dos seus pais; ou seja Israel. Daí as dificuldades, o desânimo e a consequente pobreza generalizada. Nestas circunstâncias, o objetivo do profeta é instilar confiança e fé ao povo desalentado. Esta página então constitui precisamente esse incitamento a não desanimar, porque o Deus de Israel não é um Deus longínquo e indiferente, mas sim um Deus que é um pai para o povo. Nesse contexto, o trecho é uma espécie de oração que conserva toda a sua atualidade e nos pode servir também em momentos de desalento e de dificuldade.
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2ª leitura (1Cor 1,3-9): Que Deus, nosso Pai, e o Senhor Jesus Cristo vos dêem a graça e a paz. Eu agradeço cem cessar ao meu Deus pela graça que vos concedeu em Cristo Jesus. Nele fostes enriquecidos com todos os dons, tanto da palavra como do conhecimento. A mensagem de Cristo foi de tal maneira confirmada em vós que não vos falta graça alguma, a vós que esperais a manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele também vos manterá firmes até ao fim, de maneira que permaneçais irrepreensíveis até ao dia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é Deus, que vos chamou à comunhão com seu Filho, Jesus Cristo Nosso Senhor.
* Deus chamou-vos à comunhão com o seu Filho. O ambiente político, cultural e social da enorme cidade de Corinto não era muito favorável à difusão dos novos valores que os cristãos vinham pregando. A par de Roma, devia ser uma das cidades mais corruptas e menos interessadas no que quer que fosse de cariz espiritual e moral. Mas, não obstante tudo, S. Paulo, nos cerca de dezoito meses que lá terá ficado, fundou uma comunidade pujante de vida, constituída, como se compreende, maioritariamente, por pessoas provenientes do paganismo (de resto, Corinto era uma cidade profundamente pagã). Esta passagem, que faz parte do «prólogo» da I Carta aos Coríntios, dá-nos conta precisamente dessa realidade. Mas é também um convite a que façamos despertar em nós a certeza de que, no mundo em que vivemos, podemos e devemos ter sempre os mesmos sentimentos que teriam os Coríntios: o sentimento e a obrigação de agradecer a Deus o facto de o Senhor de nós ter feito também crentes por intermédio de Jesus Cristo e de nos ter feito seus filhos, devendo permanecer tais até ao fim.
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Evangelho (Mc 13,33-37): Estai atentos e vigiai, já que não sabeis quando chegará a hora. É como um homem que, indo de viagem e deixando a sua casa, delega a autoridade nos seus servos, atribuindo a cada um a sua tarefa e ordenando ao porteiro que vigie. Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se de manhãzinha. Ao chegar de repente, não vos encontre a dormir. O que vos digo a vós, digo-o a todos: vigiai!
* Vigiai, porque não sabeis quando virá o dono. O capítulo 13 do Evangelho de S. Marcos é preenchido pelo chamado «Discurso escatológico» ou apocalíptico e, por isso, é preciso cuidado para não o interpretar mal. Construído com base em imagens que dão a nítida sensação de que o autor quer dizer «coisas sérias», a mensagem principal a extrair é que ocorre estar sempre preparado, sobretudo para o encontro que mais importa na vida. Trata-se do encontro com Deus por intermédio de Jesus Cristo. Por ser o mais importante, também se pode dizer que é o último; mas só nesse sentido. Sendo assim, não interessa, em primeiro lugar, discutir quem é ou quem deixa de ser o homem que vai de viagem ou então o dono da casa que atribui a cada um a sua tarefa. O que realmente o evangelista Marcos quer dar a entender é que, perante Deus, a mais pequena «distração» pode ser «fatal». Por esse motivo, o cristão (neste caso, é o leitor do Evangelho) é quem vive constantemente na expetativa do seu Senhor e age tendo sempre em conta a presença do Senhor.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Só Tu, Senhor és o nosso pai.
* Esperamos a manifestação do Senhor nosso, Jesus Cristo.
* Vigiai porque não sabeis quando virá o dono da casa. |
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AO CHEGAR DE REPENTE, NÃO VOS ENCONTRE A DORMIR. |
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Deus vem como redentor...
Começo por uma premissa simples: é um facto indesmentível que as coisas nem sempre nos correm bem. Nesses momentos, podemos ser (e somo-lo frequentemente) assaltados e vencidos pela preocupação, pela angústia e pelo desespero. Só que é, precisamente nestas circunstâncias em que há que enfrentar situações humanamente complexas, que acontece também que surge em nós a tentativa de imaginar um ente superior capaz de nos livrar dessas e doutras situações e da ânsia que elas representam.
A verdade é que essa «projecção», por vezes, funciona. A imagem dum ser superior, mesmo que de contornos pouco definidos - o que, de resto, me parece normal, pois Deus é «inimaginável» - acaba por projectar, digamos assim, no mais profundo do ser, uma tranquilidade que se traduz numa certa sensação de reconforto e protecção. A imagem de Deus que daí deriva talvez não seja das mais correctas, mas estou a constatar um dado de facto.
À semelhança de qualquer outra pessoa, que tenha que enfrentar problemas, dificuldades e momentos de desânimo e desespero, também o crente está sujeito a essa «tentação» de recorrer de forma «milagreira» a Deus. Não é por ser crente que é excepção. Também ele, eventualmente, chega a recorrer a esse ente superior invocando-o «para que o livre do mal». Bem, para ser sincero, não vejo que duma evocação semelhante advenha algum mal ao mundo; antes pelo contrário. Aliás, julgo mesmo legítimo que, também nesses momentos, se recorra a Deus, até no caso do crente!
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Deus não é «central telefónica»
Todavia, não obstante a todos assista alguma legitimidade em recorrer a Ele, sinto-me no dever de lançar uma pergunta: não será demasiado restritiva e mesquinha uma concepção de Deus como «pára-raios» em dia de tempestade? Ora bem, é isso o que me parece que acontece às vezes. Isso se pode concluir da forma como se recorre a Ele. Mas, não, Ele não é apenas «apólice» para cobrir situações de risco e desgraça; nem é também uma «central telefónica» de serviço de emergência.
Dito doutra maneira, será inteiramente correcto invocar a Deus omnipotente para que me livre das trapalhadas em que eu próprio me meto? Porventura não será até mais honroso eu aceitar e lidar com as próprias derrotas sem recorrer automática e magicamente a alguém que (posso ser levado a pensar) «não está lá para outra coisa»? Não será mais educativo e adulto enfrentar com as próprias forças um destino que se me apresenta adverso, em vez de recorrer por tudo e por nada à força de Deus? Por outras palavras, ao confiar sobretudo ou até quase exclusivamente a solução dos meus problemas a Deus, não estarei a renunciar à própria originalidade e liberdade que Ele me quis outorgar e à responsabilidade que me cabe na construção do próprio futuro?
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Deus não é «tapa-buracos»
Creio que não estou a laborar em nenhum erro teológico ao defender a necessidade de purificar, de alguma forma, a imagem de «tapa-buracos» (seja-me perdoada a expressão) que, por vezes, se faz de Deus. Mas então não se pode recorrer a Deus na adversidade? É claro que pode e deve; na certeza, porém, que Ele quer ser sobretudo tratado como Pai. E um pai quer estar assim presente tanto nas circunstâncias adversas como em todas as outras.
Seja como for, o facto de Deus ser omnipresente e de eu o considerar assim na minha vida, não me confere o direito de fazer dele (seja-me permitida a expressão pouco educada) «um criado» sempre às minhas ordens. Eu é que sou «criado» (servo do Senhor) e, por conseguinte, não posso avançar com pretensões ou exigências descabidas.
E, no entanto, por vezes, é isso mesmo o que se faz dele: alguém que tem a obrigação de estar sempre disponível quando as coisas, infelizmente, dão para o torto. É óbvio que, mesmo nessas circunstâncias, Ele está lá. Mas, com frequência, quem a Ele recorre não ultrapassa esse estágio rudimentar de «pedincha», na medida em que, se calhar, não O imagina senão apenas como uma espécie de «bombeiro de serviço». O que (obviamente, sem desprimor para os soldados da paz) não honra nem glorifica nada a Deus. E, além disso, não dignifica nada quem tem a obrigação de fazer todo o possível para resolver os próprios problemas em que se mete.
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Apesar de tudo, Ele «está presente»
Em todo o caso, tenho a sensação, ou melhor, a convicção, de que Deus, ao fim e ao cabo, até não «se importa» muito que às vezes O tratemos sem «respeito». O mínimo de respeito é nossa obrigação; obrigação tanto mais exigente quanto de facto mais deveríamos partir do suposto de que estamos familiarizados com Ele. Quanto mais familiarizados estivermos com Ele, mais saberemos tratá-lo como deve ser. E, nessa altura, Ele também não se importará lá muito que eu Lhe conte tudo o que me vai na alma.
Nesse sentido, também não se me afigura nada de teologicamente aberrante afirmar que Ele até está atento aos meus clamores, contanto que isso contribua para eu O descobrir cada vez mais. Enfim, como é costume dizer em linguagem popular, incluindo nas circunstâncias aparentemente mais «desfavoráveis», Deus ainda não se esqueceu de como se «escreve direito por linhas tortas».
Seja como for, recorrer a Ele apenas quando a tempestade enfurece é, sem dúvida, defender uma ideia demasiado redutiva sobre a sua maneira de ser. Mas também é evidente que, mesmo assim ou sobretudo por isso, o facto de recorrer a Ele como última e única fonte de solução equivale a acentuar a sua transcendência; equivale a dizer que Ele é «o Totalmente Outro». O que, por conseguinte, equivale a reconhecer implicitamente que Ele não se parece nada com o que possamos imaginar.
E então, com o profeta Isaías (cf. Is 64, 8-9), no fundo, nós acabamos por afirmar e reconhecer que a salvação (pelo menos a salvação plena e total) só pode vir do Senhor. Em todo o caso, continuo a reafirmar que me parece muito pouco esperar dele apenas «que nos livre do mal». Ao menos, poderíamos fazer, por exemplo, o que fazia invariavelmente Paulo ao escrever aos fiéis das suas comunidades: dar graças a Deus por tudo o que lhe acontecia, nos momentos bons e nos momentos menos bons.
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O «Outro» bem perto de nós
Como cristão, tenho obrigação de saber, certamente mais que os conterrâneos de Isaías (e também mais que os não cristãos), que Deus não tem que estar na disposição de satisfazer os meus pedidos e «exigências» exactamente como eu quero e quando eu quero. Aliás, a propósito, devo acrescentar que Ele não deixa de ter razão só porque eu acho que não tem. Não raramente, eu quero as coisas fora de tempo e duma maneira tonta. E Deus, que, sem dúvida, quer o meu maior bem, certamente não quer que eu aja de maneira tonta.
Com base na Bíblia, seria injusto concluir que Deus não se interessa minimamente por mim; ou que eu lhe sou completamente indiferente. Não é essa a ideia subjacente à história bíblica. Esta é, ao contrário, uma demonstração prática de como o seu amor por mim se manifesta continuamente na vida concreta, mesmo quando ou sobretudo quando não me dou conta do facto. E isto apesar de todas as provas de ingratidão de que é alvo da minha parte, em particular, e por parte do seu povo em geral.
Todavia, não deixa de ser certo que o seu amor é infinito e imprevisível; e, por isso mesmo, incompreensível para mim. Pelo que me diz respeito, eu nem sempre aceito a forma como esse amor se manifesta. Mas, em última análise, embora por vezes me não aperceba disso, esse amor é também adaptado à minha (in)capacidade de entendimento na altura. Sim, como regra, eu não atinjo o alcance das coisas (sobretudo dos acontecimentos aparentemente negativos) no exacto momento em que se dão.
Para Deus, tudo se passa no mesmíssimo instante, se assim nos podemos exprimir. Assim, a «visão» que Ele tem das coisas é instantânea, quer se trate do passado, quer se trate do presente, quer se trate do futuro, pois para Ele as coordenadas de tempo não contam. Deus é, sem sombra de dúvida, o «Totalmente Outro», mas é também, em todo o caso, o «Deus dos homens», o «Deus de Abraão, Isaac e Jacob», o «nosso Pai», o «nosso Redentor»; mais, segundo o NT, Ele é o «Deus-connosco», o Deus que se interessa pessoalmente por nós.
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Aquele a quem nada é impossível
O facto de Deus ser «Aquele que é» (portanto, inacessível e inefável) não O impede de estar bem perto de mim. Se é certo que, em razão da sua natureza e também da minha incapacidade congénita, eu estou impossibilidade de aceder a Ele, não é menos verdade que Ele «se torna acessível» fazendo-se Ele mesmo um de nós, pura e simplesmente «porque a Deus nada é impossível» (cf. Lc 1,37). Consequentemente, até Lhe é possível tornar-se «captável» por mim (de forma sempre parcial, como é evidente, porque eu sou limitado).
Ele será sempre para mim um mistério. Tudo o que se possa dizer dele será sempre imperfeito e limitado, precisamente porque as minhas capacidades são limitadas. Mas, com toda a sinceridade, alguma coisa é possível saber dele. Nesse sentido, é minha convicção de que não é um puro acaso eu estar, neste preciso momento, a falar dele. Pelo contrário, julgo que faz também parte dos seus «planos» de auto-revelação deixar-se «aprisionar», pelo menos em certa medida, pela inteligência humana. Graças a essa condescendência da sua parte, tenho a sensação de que, à medida que mais vou reflectindo sobre Ele, cada vez vou entendendo mais um pouco dele.
A ideia dum Deus cósmico e longínquo pode até ser (e sê-lo-á teologicamente falando) legítima e verdadeira, mas não me parece muito completa (nenhuma ideia acerca dele é completa), porque Ele, através de Jesus de Nazaré, passou a viver também paredes-meias comigo e consigo, com a gente. De resto, no fundo, é esta a grande «notícia» que se comunica, se celebra e se vive no período que antecede e acompanha o Natal. Melhor dizendo, é este o acontecimento fulcral (mas muito esquecido) da quadra natalícia.
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O homem: objecto de amor?
Atendendo aos dados da narração bíblica da «história das origens» (primeiros capítulos do Génesis), Deus imprimiu em cada ser humano a sua imagem. Traduzindo este conceito por outras palavras, a minha identidade de homem não pode prescindir, por assim dizer, do que é possível designar por «fisionomia» que Ele imprimiu em mim. Quer dizer, eu serei tanto mais homem quanto mais me parecer com Ele.
Eu, pessoalmente, sob a perspectiva humana, não compreendo o motivo por que Deus se «deu ao trabalho» de criar o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27), porque, em termos estritos e «racionais», Ele não precisava - nem precisa - do homem para nada. Mas, por outro lado, o certo é que tudo o que tem a ver com o amor não cabe muito bem no estritamente «racional». O facto é que, não obstante a «obscuridade» que representa para mim a criação «à imagem e semelhança de Deus», é essa «imagem e semelhança» que está implícita e talvez claramente patente na narrativa das origens.
Ele, que me deu a vida de maneira misteriosa, «faz parte» da minha história também de forma misteriosa, fazendo o milagre contínuo de, em conformidade com essa imagem e semelhança originais, me manter na existência. Como consequência e nessa perspectiva, o meu futuro não é susceptível de realização cabal senão na medida em que, duma forma ou doutra, eu actuar os seus projectos originais.
A razão por que Deus decidiu, desde toda a eternidade, fazer do homem um objecto de eleição e de amor, eu nunca chegarei a sabê-la completamente (pelo menos na dimensão desta vida). Mas, por outro lado, se calhar, as coisas mais importantes da vida não são necessariamente as de mais fácil conceptualização, pois só são compreensíveis através do coração ou da interioridade...
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Deus é mesmo o «nosso pai»
Além do mais, numa perspectiva de fé (que é o meu caso), as páginas da Bíblia não enganam. Sendo assim, essa familiaridade de Deus com o homem é um facto plenamente demonstrado por tantas e tantas páginas, sem excluir as da liturgia da palavra de hoje. Isaías, por exemplo, numa oração que, segundo os entendidos da língua original (e esta é uma opinião que não contesto), é um dos textos mais belos da literatura bíblica, chama a Deus «Pai nosso» (mais que uma vez no mesmo texto). Exactamente assim lhe chamará, séculos mais tarde (cinco após este escrito), o próprio Jesus.
Por outras palavras, Deus fez de mim objecto de amor paternal sem qualquer merecimento da minha parte. Se há lugar para o merecimento é o de, no caso, fazer o melhor possível por aceitar essa condescendência e procurar retribuir. E, por isso mesmo, para que eu fosse capaz de lhe responder, Deus ofereceu-me o livre arbítrio. Sem ele, essa resposta não seria possível. Ele não força, pois, as minhas decisões, seja eu quem for. Ele intervém «com respeito» e espera com paciência que eu, como pessoa livre e responsável, acate o diálogo de amor com Ele. A partir do momento em que Ele forçasse uma reacção da minha parte (positiva ou negativa), a minha resposta deixaria de ser uma resposta humana e livre e, portanto, não seria uma resposta de amor.
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Rasga os céus e faz prodígios...
Deus é o Pai que, por amor do homem, não duvida entregar o seu próprio Filho, como muito bem se expressam o evangelista S. João e o apóstolo S. Paulo (cf. Jo 3,16; Rm 8,32). Isso constitui mais um mistério a que não podemos aceder e que apenas podemos intuir através da interioridade. Só esse facto pode «explicar» então porque é que Ele permite circunstâncias tão dolorosas na vida das pessoas e tolera filhos tão desobedientes. É a eterna questão da liberdade humana na origem do mal, que Isaías (1ª leitura) não é capaz de resolver.
Isaías anuncia, em todo o caso, a «boa nova» da intervenção dum Deus que rasgará os céus e fará prodígios e maravilhas na terra. Mas não explica como. Isto deve-se, muito provavelmente, ao facto de esses prodígios e maravilhas não serem «explicáveis» no mesmíssimo momento em que acontecem. É o caso das circunstâncias históricas em que o profeta se situa. Em todo o caso, embora não o entenda, o profeta intui que, através de circunstâncias históricas muito concretas, Deus está a querer dizer algo de novo ao seu povo. Por isso, o profeta limita-se a intuir que algo vai acontecer e que Deus, para usar a nossa linguagem, está por detrás de tudo isso.
De resto, como regra, é assim que as coisas acontecem. E o facto é que, com frequência, só se compreende o significado pleno de certos acontecimentos «anteriores» quando se «ultimam os capítulos finais» do romance da nossa vida. (Já agora, a propósito de romance, seja-me permitido dizer que, quando o romance está literariamente bem estruturado, é natural que só no fim se descubra a solução dos problemas sugeridos e levantados pelo enredo ou pelas várias situações que foram sendo criadas).
Pois bem, continuando com a mesma a imagem, Deus é como o grande romancista que, embora respeitando a minha liberdade, vai tecendo, por assim dizer, os capítulos da minha vida, e tudo vai coordenando para que o final seja um final compreensível, feliz e pleno de significado. Pode acontecer, porém, que esses capítulos, por si mesmos, eventualmente não sejam nem muito edificantes nem muito claros e compreensíveis antes de chegarmos ao final. Concluindo, diria que, sob a óptica da fé, é necessário, pois, fiarmo-nos de Deus para que possamos sair-nos bem da «aventura» da vida.
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«Direito por linhas tortas»...
Hoje em dia, não é raro (antes pelo contrário, é comum) encontrar pessoas, mesmo entre os que se classificam de cristãos, cuja vida, na prática, se passa sem referência nenhuma a Deus. Isso é um dado que não vale a pena escamotear. Algo semelhante aconteceu aos israelitas em várias fases da sua história; tanto nos momentos de angústia como nos momentos de sossego e abundância.
Quando as coisas corriam bem, os israelitas esqueciam-se da presença de Deus; aparentemente, não precisavam dele. Por outro lado, quando começava a imperar o desespero, eles abandonavam facilmente o «Deus de seus pais» para inventarem outros ídolos a quem recorrer sem que, em contrapartida, estes lhes fizessem quaisquer exigências. Em todo o caso, nos períodos prolongados de angústia e frustração, os israelitas, ao fim e ao cabo, acabavam por se voltar para Ele. E, neste capítulo particular, qualquer um de nós não é muito diferente deles. É pena que, tantas vezes, de facto, sejam precisamente e apenas as situações de falhanço, angústia e remorso a conduzir-me de novo a Deus. Só que, mais uma vez e sempre, felizmente, Deus tem uma paciência infinita para permitir que eu faça a experiência do falhanço e do fracasso para me poder «apanhar», por assim dizer, de novo, na próxima curva do caminho.
Deus é paciente, nunca desiste e vai «inventando» sempre novas formas de se fazer encontrar, para estabelecer novos e imprevisíveis contactos com o homem. Esses encontros realizam-se num crescendo dinâmico em que se vai descobrindo cada vez mais alguma coisa sobre Ele. Até que, na pessoa de Cristo, Deus se manifesta de maneira especialíssima (2ª leitura), actuando segundo critérios que «não cabem na cabeça de ninguém». É isso! Por impossível, inimaginável e incrível que pareça, Ele próprio se «transforma» em homem, correndo o risco de não ser reconhecido. Como, efectivamente, o não foi; sobretudo pelos que deviam estar mais preparados para fazer essa descoberta. E tudo para quê? Para me revelar que, quando me fez à sua imagem e semelhança, não estava a brincar comigo.
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Deus leva-me a sério
Que Deus me leve a sério e se interesse por mim pessoalmente, é algo que não cabe lá muito bem na cabeça dum ser finito como eu. É algo de estranho, senão mesmo paradoxal, absurdo e «escandaloso». Não era só absurdo e escandaloso para «gregos e judeus» do tempo de Paulo. A pergunta, no fundo, é sempre a mesma: porque é que Deus, Ser infinito e perfeito, se interessará por criaturas finitas e imperfeitas como nós? Ora bem, nesse aspecto, sem a base e o arrimo que nos proporciona a fé, só o simples facto de me ter criado é já, de alguma forma, um absurdo e um escândalo.
Esse escândalo e esse absurdo continuam a ser o cavalo de batalha de muitos homens de hoje. Até um grande número de crentes se recusa a admitir que Deus, sendo o «Totalmente Outro», queira entrar em contacto connosco, encarnando numa forma estranha e paradoxal como é precisamente a forma humana. E não é que se apresenta mesmo de forma estranha!? Eu pelo menos, se fosse Deus - posso dar comigo a pensar - não faria o que Ele fez. Ora, já alguma vez se viu um Deus fazer-se homem? Por isso, no fundo, tantas vezes, a minha recusa de Deus é a incapacidade de desistir de construir um Deus segundo a minha medida. Mas Deus não cabe na minha cabeça, porque Ele é infinitamente maior do que ela.
Sim, no fundo, como regra, a minha recusa de Deus é a incapacidade de aceitar como certa uma simples frase citada acima e que é de capital importância no Natal (e não só): «A Deus nada é impossível» (cf. Lc 1,37). «Nada» quer dizer mesmo «nada». Nessa linha, uma das consequências dessa frase é muito simples: nem sequer fazer-se homem Lhe é impossível.
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A salvação por meio do Filho
No tempo dos profetas (e não só, porque, nesse capítulo, as coisas continuam a ser iguais), as pessoas, sobretudo os responsáveis políticos, pensavam que a solução dos problemas dependia das próprias capacidades de negociação e de controlo do mundo, da eficácia das próprias alianças com os mais poderosos. O mundo de hoje (como o mundo de sempre) pensa também que possui os instrumentos de controlo suficientes para gerar e construir a própria salvação.
Nos dias que correm, espera-se tudo da técnica e da propalada «irreversibilidade do progresso». Mas a almejada equação dos termos trabalho/tempo livre, produção/consumo, riqueza/pobreza, fecundidade/mortalidade, progresso técnico/progresso social, autoridade/liberdade, etc., poderá porventura ser resolvida por qualquer programa electrónico de computador?
Depositar confiança ilimitada nos meios técnicos e electrónicos seria alimentar um optimismo ingénuo. É que, na verdade, cada dia que passa, o homem tem que chegar à conclusão amarga de que, apesar de todos os avanços no campo tecnológico e científico, continua a construir muitas torres de Babel sobre as areias movediças da divisão, do pecado, da destruição e da morte. O progresso tecnológico não tem resposta para tudo. Por isso, não façamos dele o deus que não é. Há respostas que estão para além do alcance da tecnologia, por mais sofisticada que se apresente.
Ora, é nesse espaço que a fé joga o seu papel imprescindível. É nesse campo que o cristão deve oferecer o seu contributo específico, vendo e reconhecendo a Deus como Pai e Redentor. É tarefa específica do cristão afirmar que a libertação total do homem não é possível sem a intervenção de Deus. E Deus normalmente não actua através da sua «omnipotência», digamos assim, mas através do seu Filho feito um de nós. Por outras palavras, o cristão sabe que só quem acredita no Filho e põe em prática as suas palavras será realmente salvo (cf. Jo 3,18.36; 5,24). E não se trata só de salvação eterna. Ou melhor, é uma salvação eterna que começa já neste mundo.
Todavia, essa salvação, que contém em si a resposta aos anseios mais profundos do ser humano, não é, e não pode ser, uma salvação imposta. Não só não é imposta àqueles que se dizem cristãos, como muito menos, diria eu, àqueles que o não são. Em todo o caso, a salvação «integral» não pode prescindir do «aperfeiçoamento» da semelhança e da imagem de Deus que existe dentro do homem e lhe tece o cunho da identidade. Portanto, não se realiza senão em relação com Deus, à imagem do qual o homem foi criado.
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... Na expectativa da sua vinda
Se, na óptica da fé, é assim, então é evidente qual deve ser a nossa atitude de fundo: «fiar-se» de Deus, disponibilizar a vida na linha do serviço e da cooperação no seu projecto. Isso implica uma disponibilidade perene à «novidade» de Deus que está sempre a vir. E, por isso, no dizer de S. Paulo aos cristãos de Corinto, não se pode dormir, mas deve-se vigiar, de maneira a reconhecê-lo em cada uma das suas vindas.
Se nos mantivermos vigilantes, nunca seremos surpreendidos por nada do que aconteça (mesmo que seja o «fim do mundo»), porque sabemos que Ele está sempre a passar, ou melhor, Ele está sempre presente. Mais, Ele vive numa espera ansiosa (seja-me permitido dizer assim) pelo nosso regresso definitivo. A comunidade deve estar aberta ao Espírito e disponível para agir segundo as suas directrizes. E, nesse sentido, pouca importância tem saber quando será o fim? Mas... o fim de quê? Isso é um assunto que não nos diz respeito. De resto, uma eventual revelação sobre a data e as circunstâncias do fim do mundo não viria resolver as nossas angústias (antes pelo contrário) e, muito menos, traria nada de definitivo para a nossa salvação.
O «fim do mundo» (se quisermos insistir na expressão!) diz respeito apenas e só a Deus. Mas nem sequer a Jesus? Mas então Ele não sabia quando era o fim? Frase misteriosa esta que está no texto evangélico; o facto é que há muitas coisas misteriosas até na nossa própria vida ordinária! O que a Jesus, o Verbo incarnado (sujeito às contingências dos homens), realmente importava era comunicar às pessoas do seu tempo (e de todos os tempos) uma mensagem de salvação e não forçosamente os segredos de Deus (como seja a data do fim dos tempos).
No fundo, pensando bem, porventura, revelar a data dos fim dos tempos teria sido uma «boa notícia»? Jesus, como sabemos, veio trazer a «Boa Nova». Sendo assim, não seria então uma «notícia» muito mais simpática comunicar aos homens que, com Ele, é possível começar aqui e agora um mundo novo que vai muito para além do aqui e do agora?