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Categoria: Domingos do Advento - Ano A
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fundo

 

 

IV DOMINGO DE AVENTO

1ª leitura (Is 7,10-14): O Senhor mandou dizer a Acaz: «Pede ao Senhor teu Deus que te dê um sinal. Tanto pode ser do fundo dos abismos como do alto dos céus». Acaz respondeu: «Não pedirei tal coisa; recuso-me a pôr à prova o Senhor». Então Isaías respondeu: «Escuta, herdeiro de David: já não te basta fazeres perder a paciência aos homens que também ousas fazê-la perder a Deus? Pois bem, o Senhor, por sua conta e risco, te dará um sinal. Eis que uma jovem está grávida e vai dar à luz um filho, a quem porá o nome de Emanuel».

 

* O Senhor te dará um sinal.

 

   Há, neste texto, circunstâncias históricas bem precisas: a pequena dinastia de David (a de Judá ou Reino do Sul, com sede em Jerusalém), à qual está ligada à promessa de proteção divina, corre sério perigo, pois os reis de Aram e de Israel (do Reino do Norte) querem eliminá-la, planeando colocar no trono um rei fantoche. E então Acaz, rei de Judá, em vez de se servir do profeta (Isaías) para pedir auxílio ao Senhor, faz imolar o seu próprio filho e procura aliar-se ao rei da Assíria (cf. 2Re 16,7), a fim de combater Aram e o Reino de Israel. O profeta faz tudo o que está ao seu alcance para convencer o rei a desistir dessa ideia absurda, prometendo inclusivamente um sinal extraordinário, mas Acaz não demonstra fé nenhuma em Deus e, por isso, sofrerá as consequências. Seja como for, não obstante a casmurrice e a infidelidade de Acaz, o sinal é dado à mesma. Já agora, acrescento que isso é válido tanto em relação ao rei Acaz, como também no que a nós diz respeito: assim, também nós somos afiançados de que, não obstante tudo, do trono de David nascerá o verdadeiro Messias, cuja missão é universal.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (Rm 1,1-7): (Saudações são dadas por parte) de Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado a ser um apóstolo escolhido para anunciar o Evangelho de Deus. A Boa Nova foi prometida de antemão por meio dos profetas, como está escrito nas santas Escrituras. (Essa Boa Nova) é acerca do seu Filho, o qual, segundo a carne, é da descendência de David. E, segundo o Espírito Santo santificador, foi constituído Filho de Deus em poder, graças à ressurreição de entre os mortos. Por Ele recebi a graça de ser apóstolo, a fim de levar à obediência da fé todos os gentios, para glória do seu nome. Entre eles, estais também vós, chamados a ser de Cristo Jesus. A todos os eleitos de Deus, que estão em Roma e santos por vocação, a graça e a paz de Deus, nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo!

 

* Somos chamados a ser de Cristo Jesus.

 

   O «prólogo» da Carta aos Romanos (que é o nosso texto para este domingo) pode-se considerar, no contexto da liturgia da palavra, como uma referência e aplicação à 1ª leitura. Jesus, nascido da estirpe de David, é o cumprimento da promessa da única salvação possível, que é a de Deus. Jesus é o sinal tangível da fidelidade de Deus ao seu povo, não obstante todas as infidelidades em que este se encontre. Esse papel de intermediação e reconciliação entre Deus e os homens por parte de Jesus estende-se a todos os homens (incluindo os gentios). Paulo diz isso mesmo sem rodeios (em particular na Carta ao Romanos). Também deixa a entender que nós, não fazendo parte do povo judeu, pertencemos, por isso mesmo, ao «núcleo dos gentios». E, contudo, mesmo assim, somos igualmente chamados a ser de Deus através de Jesus Cristo. Esta é uma bela e agradável notícia: embora «descendentes de pagãos», temos a certeza de que Deus, por Jesus, concebido por obra do Espírito Santo, se interessa por nós pessoalmente.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Mt 1,18-24):  Eis como se deu o nascimento de Jesus Cristo. Maria, sua mãe, estava desposada com José. Mas, antes de casar, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo. Ora, José, seu esposo, que era um homem justo, não querendo difamá-la em público, resolveu deixá-la em segredo. Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: «José, filho de David, não tenhas medo de receber Maria por tua esposa, pois ela concebeu por obra do Espírito Santo. Ela terá um filho, a quem tu porás o nome de Jesus, pois Ele salvará o povo dos seus pecados». Ora, tudo aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: «Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho que se chamará Emanuel» (quer dizer, «Deus connosco»). Quando despertou do sono, José recebeu a sua esposa, como lhe tinha dito o anjo do Senhor.

* Ele chamar-se-á «Deus-connosco».

 

    Este trecho evangélico de S. Mateus está obviamente relacionado com a primeira leitura de hoje, pois faz dela uma citação praticamente à letra. Pese embora o facto de que o nascimento de Jesus exclua por completo o concurso humano, no entanto, no plano jurídico e social, por assim dizer, Ele é «assumido», através de José, como descendente e «filho de David». José, como é compreensível, tem muitas dificuldades em compreender o que se está a passar - como as tinha tido Maria no ato da anunciação - mas, depois de, no meio dum sonho, ter chegado ao conhecimento da vontade de Deus, reconhece, de bom grado, Jesus como seu filho. Então, dando-lhe o nome (segundo a versão de Mateus, é a José que cabe atribuir o nome ao Menino), transmite-lhe todos os direitos dum descendente da casa de David. Seja como for, o episódio (pontual, é verdade) parece-me que tem também a intenção e o condão de «demonstrar» que a salvação, que é exclusiva de Deus, não se concretiza, no entanto, sem a cooperação do homem. E isso é também verdade na sua aplicação. Ou seja, a salvação de Deus são será nossa salvação a não ser quando a acolhermos como tal.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

*    O teu filho chamar-se-á Emanuel.

*  

 J   Jesus foi constituído filho de Deus em poder.

 

*   Ele salvará o povo dos seus pecados.

 

MARIA

CONCEBEU

POR OBRA

DO

ESPÍRITO

SANTO.

 

     A ideia geral das leituras escolhidas para este domingo está claramente relacionada com a vinda iminente do Messias prometido. É, de facto, essa a ideia que preside, por exemplo, à escolha do trecho do profeta Isaías (1ª leitura), pese embora o facto de que os exegetas não estejam de acordo quanto ao sentido imediato e literal que o profeta quis dar às suas palavras. No entanto, neste contexto, trata-se de uma leitura que adquire um significado mais restrito e exato à luz da revelação posterior. Mais concretamente, a interpretação desse trecho isaiano está «condicionada» e sujeita ao facto de o Messias prometido ter incarnado, na pessoa de Jesus Cristo, no seio duma virgem chamada Maria.

 

     Que Isaías tenha tido em mente alguém em particular chamado Emanuel, porventura algum descendente do rei que governava então em Jerusalém, é assunto que ainda não parece ter sido completamente equacionado, embora as conjeturas de alguns apontem para essa possibilidade. Mas não é que isso, neste caso, tenha muita importância. Agora, que, pelo contexto, se possa inferir que Isaías tinha em mente a ideia de comunicar uma mensagem especial a Acaz, isso parece fora de dúvida. E isso é óbvio, mesmo que ele eventualmente tenha tido a intenção imediata de se referir a algum filho do rei em particular.

 

     Por seu lado, a tomada de posição do rei Acaz é também ela o paradigma, por assim dizer, da arrogância e auto-suficiência humanas. O reino de David tinha recebido da parte de Deus a garantia de que «permaneceria para sempre», que seria perpétuo (cf., por exemplo, 2Sam 7,1-16), mas Acaz não se fia muito dessa promessa, preferindo confiar nas estratégias e nos seus cálculos humanos. O profeta Isaías diz-lhe que não convém fazer nenhuma aliança com a poderosa Assíria contra os outros povos vizinhos que ameaçam a soberania nacional. Mas Acaz, se calhar já comprometido, não lhe dá ouvidos, porque não está disposto a mudar de política.

 

    O profeta então dá-lhe um sinal. É um sinal estranho: «A virgem dará à luz um filho e há-de pôr-lhe o nome de Emanuel» (Is 7,14). E digo que se trata de um sinal estranho, porque realmente é muito difícil perceber o que Isaías terá querido dizer e, mais, o que o rei Acaz terá entendido. Deixo, pois, aos críticos e estudiosos a tarefa e a responsabilidade de procurar descobrir o sentido original deste trecho profético. Seja como for, e independentemente de todas as discussões que se possam fazer sobre este assunto, o versículo em causa tem uma importância decisiva para os crentes, já que o evangelista Mateus (no trecho proposto para hoje) identifica claramente esse Emanuel com o Filho de Maria de Nazaré. E mais importante ainda é saber que esse Emanuel é o próprio Deus que, tomando a forma de homem, irrompe pela história dos homens de modo palpável e completamente original, tornando-se assim «Deus-connosco». E, para mim, ainda mais incrível é que Ele seja, além disso, um «Deus-para-nós».

 

     O episódio e contexto, a que Isaías faz alusão e a que eu tenho vindo a fazer referência, explica-se em palavras simples. Está inserido na ampla história das guerras de Judá (Reino do Sul) contra a Síria e, infelizmente, também contra Efraim (Reino do Norte) que, por sua vez, tinham que se haver com a potência daquela altura, a Assíria.

 

     Mas agora há um inimigo comum. Para combater a Assíria, os reis de Damasco e de Israel (Norte) procuraram associar a si também Acaz, rei de Judá (Sul). Perante a recusa de Acaz, os dois fazem chantagem, ensaiando uma tentativa de anexação. Acaz então, vendo-se em perigo, pensa em solicitar a ajuda do rei da Assíria, não obstante a advertência em contrário do profeta Isaías. É certo que a Assíria derrota os exércitos de Damasco e Samaria, que solicitavam a aliança do Reino do Sul (Acaz). E, nesse aspecto e só nesse aspecto, a decisão pontual do rei Acaz parece acertar em cheio, na medida em que os inimigos imediatos Damasco e o Reino do Norte ficam pelo caminho. Mas, infelizmente, como previra o profeta Isaías, o resultado é que a Assíria, após ter vencido a Síria e Efraim (o mesmo que Damasco e Samaria), também acaba por reduzir Judá (Jerusalém) à condição de vassalagem (isto por volta do ano 733-732 A.C.). Enfim, Acaz, mesmo politicamente falando, acaba por falhar também por insuficiência de visão global e futura...

 

    E, quanto a história, fiquemo-nos por aqui. Basta-nos concluir que o que Acaz julgava ser um golpe diplomático e que se lhe afigurava como uma vantagem militar, se revelou, afinal de contas e a longo prazo, um desastre completo para o seu país. Ele queria salvar o seu povo da invasão estrangeira e acabou mas é por arruinar politicamente Judá e, pior ainda, por via dos compromissos assumidos, acabou por ter que ceder no que se referia à introdução de práticas e ritos idolátricos importados da Assíria (cf. 2Re 16,1-20).

 

     Pois bem, é sobretudo neste aspecto que a atitude de Acaz tem pontos comuns com aquilo que também nós fazemos. Vivemos num mundo caracterizado por um crescente progresso em que parece que as capacidades da humanidade não têm limites. E, pouco a pouco, vamos eliminando da nossa vida todos os sinais que nos são dados por Deus e, julgando que estamos a fazer uma grande coisa, acabamos por cavar a fossa da desgraça e da derrocada.

 

    Alguns críticos e estudiosos do texto de Isaías afirmam que o menino a que o profeta se refere terá sido o próprio filho de Acaz, chamado Ezequias, o qual, segundo o que nos diz a história, foi um rei bom e religioso (cf. 2Re 18,3-7), ao contrário do seu pai. A ideia tem o seu interesse e originalidade, mas isso afigura-se apenas como uma tentativa de propor hipóteses de solução não totalmente comprovadas. Em todo o caso, o facto é que o «sinal» foi eficaz, tendo em conta que, sob o reinado de Ezequias, as coisas se compuseram em todos os campos, incluindo no político-militar. Apesar da derrota de Acaz às mãos da Assíria e apesar de todo o sofrimento e derrocada a que o povo foi sujeito, os projectos megalómanos de hegemonia da Assíria acabam por se desfazer e Judá pode, finalmente, continuar a trilhar os caminhos do Senhor.

 

    A história de Judá, a partir daí, continuará a ter altos e baixos. Basta dizer que Manassés, sucessor de Ezequias, com a sua política de alianças e de desrespeito pela identidade do seu povo (que se regia por um sistema especial, como Povo do Senhor), enveredará pela mesma política do seu avô Acaz e acabará por provocar desgraças ainda maiores, pesem embora os esforços de regeneração que foram  empreendidos por um dos seus descendentes, o rei Josias.

 

    Seja com for, no meio destas vicissitudes e apesar de todos os sinais negativos, vai-se caldeando e fortalecendo, cada vez mais, a ideia lançada por Isaías: a de que há-de chegar um descendente da dinastia de David capaz de cumprir a profecia na sua plenitude. Sim, vai chegar um rei especial que será realmente o «Deus-connosco».

 

     A certeza de que, apesar das aparências, Deus continua a «mexer os cordelinhos» da história - passe a expressão - é a ideia que perpassa também pela introdução da Carta aos Romanos. O próprio autor da Carta, Paulo, é o exemplo indesmentível de como Deus pode servir-se de acontecimentos menos positivos para levar avante a sua obra de salvação. A este propósito, não nos esqueçamos de que o grande impulsionador do cristianismo entre os gentios foi precisamente Paulo, aquele que tão acerrimamente começara por perseguir os primeiros cristãos.

 

    Paulo, na introdução à Carta aos Romanos (como, de resto, faz em outras cartas), utilizando termos que possivelmente faziam parte do núcleo central da pregação cristã primitiva, dá a entender, sem margem para dúvidas, que chegou finalmente o tempo em que se cumpriu a profecia de Isaías: Jesus é o descendente de David «constituído Filho de Deus em poder» (cf. Rm 1,4). Esta sua carta pode ser lida, pois, à luz deste facto, que para ele é claro e decisivo. Por outro lado, está também como que latente no corpo da Carta aos Romanos (cf. em particular cc. 3-11) uma espécie de dialéctica, em que a «tese», digamos assim, é o endurecimento e a recusa por parte dos judeus em relação à pessoa de Cristo, a «antítese» é o reconhecimento de Jesus como Messias por parte dos não judeus, e a grande «síntese», a realizar-se num futuro que Paulo desconhece (e nós também), é a aceitação do mesmo Cristo como Messias por parte de crentes de todos os «quadrantes», sendo de destacar naturalmente e em primeiro lugar os judeus. Será a vinda gloriosa de Jesus,

 

 O Messias está inserido na nossa história e, por conseguinte, o seu reconhecimento como tal está também sujeito às contingências próprias de tudo quanto é humano. Se é verdade que, como diziam os antigos, a natureza não dá saltos, não é menos verdade que, como regra, também não há saltos bruscos no processo do conhecimento.

 

 

 O reconhecimento da messianidade de Jesus segue o mesmo processo que seguiu a sua passagem terrestre. Dele se diz que se fez «carne». Nesse sentido, em termos bíblicos, ao contrário do que possa parecer, não há necessariamente antagonismo entre «carne» e «espírito». Esta dicotomia, que persiste ainda nossa cultura de índole judaico-cristã, é muito mais de origem grega do que de origem bíblica. À cultura chamada «ocidental» chegou e lançou raízes esta divisão do homem em matéria e espírito. Mas a visão bíblica não é bem essa. Para a Bíblia, o homem é ao mesmo tempo matéria e espírito. O que, de resto, até é compreensível e defensável em teoria segundo os parâmetros da cultura bíblica.

 

 Quando deparamos nas páginas bíblicas com o binómio «carne-espírito», não se trata necessária e propriamente duma contraposição e muito menos duma oposição, mas sim duma constatação que diz respeito à totalidade do homem como tal. Esses termos não têm que ser entendidos necessariamente no seu sentido imediato, mas sim como uma espécie de estado de alma. Ou seja, o homem «carnal» é aquele (matéria e espírito) cuja existência é pautada por tudo aquilo que conduz à morte; e o homem «espiritual» é aquele (matéria e espírito) cuja existência é pautada por tudo aquilo que conduz à vida.

 

 

  Por isso, quando lemos no evangelista João, logo no prólogo do seu Evangelho (cf. Jo 1,14), que o «Verbo se fez carne», devemos entender simplesmente que o Verbo assumiu a natureza humana (tornou-se um ser humano, material e espiritual ao mesmo tempo), para restituir novamente ao homem a sua situação de «espírito», no sentido de lhe transmitir de novo aquele gérmen de vida que o liberta dos laços que o prendem à morte.

 

 Mas, deixando de parte estas considerações filosofejantes que, se calhar, pouco interesse têm para o teor destes comentários, importa realçar a condição do Verbo simultaneamente como Filho de Deus e como filho do homem (ser humano). É enquanto tal que o Verbo estabelece a ponte entre Deus e os homens. Com efeito, Ele sempre foi Deus desde toda a eternidade (como professa S. João no prólogo do seu Evangelho), mas foi também plenamente homem, porque, a partir e durante um determinado período histórico, Ele assumiu também todos os condicionalismos inerentes à natureza humana.

 

 

 É que, bem vistas as coisas, tenho por certo que só pode estabelecer esta ponte de contacto entre o Infinito e o finito alguém que seja ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem (como, de resto, se aprende na catequese). O finito (natureza humana compreendida naturalmente), por mais perfeito que seja, nunca poderá ter a capacidade de estabelecer contacto com o Infinito. Isso só é possível, de facto, se o próprio Infinito tomar a decisão de estabelecer esse contacto. «Nascido da descendência de David, segundo a carne, e constituído Filho de Deus... pela ressurreição de entre os mortos» (Rm 1,3-4) é uma outra forma de Paulo traduzir a mesma ideia.

 

 

 Estes pressupostos lançam a base para a mensagem fundamental da narração evangélica deste dia, que fala do nascimento de Jesus em circunstâncias extraordinárias. Obviamente, Mateus não estava em condições de utilizar o tipo de linguagem (teológica) utilizada por nós e que, só muito mais tarde, começou a fazer parte da cultura cristã. De qualquer forma, o que ele quer dizer é que tudo se passa fora dos esquemas normais. Tanto é que nem sequer José, a quem é dado o título de justo, está em condições de entender.

 

  O evangelista Mateus provavelmente não se pôs tantas perguntas como nós para narrar estes acontecimentos: Porque é que José queria abandonar Maria em segredo se a própria Lei lho permitia fazer abertamente? Porque é que Maria não contou logo como é que as coisas se tinham passado? Ou tê-las-á contado e, mesmo assim, a situação não ficou esclarecida? Ou, ao contrário, a intenção de Mateus era muito mais simples, de tal maneira que nem sequer suspeitou de que iria criar tantas complicações aos estudiosos com a sua descrição? Seja como for, a verdade é que, no texto de Mateus, há alguns factos que são claros e peremptórios: aquele era um nascimento muito especial, pelo que adveio uma intervenção extraordinária por parte de Deus; esse Jesus era, ao mesmo tempo, «Emanuel» (ou seja, «Deus-connosco») e descendente de David, através da paternidade que lhe era outorgada por José, longínquo descendente da casa de David.

 

 Em conclusão, o evangelista Mateus utiliza vários instrumentos, digamos assim, para nos transmitir que, afinal, o nascimento de Jesus (que significa «o Senhor salva» e, por isso mesmo, Salvador) se insere naquilo a que teologicamente se designa por «mistério da Encarnação». Por outras palavras, o próprio Deus faz-se «sócio» e companheiro de viagem, encarnando na pessoa de Jesus de Nazaré, nascido de Maria e perfilhado por José.

 

 

 As razões ou desígnios por que Deus se «dá ao trabalho» de prescindir, por assim dizer, de todas as suas prerrogativas divinas (cf. Fl 2,7), para se fazer um de nós, eu não os compreendo. O que posso é  suspeitar de que tenha sido por amor (e o amor, capaz de fazer coisas impossíveis, não se explica). Mas duma coisa estou absolutamente certo: Deus até pode fazer o impossível (passe a expressão contraditória) porque «a Deus nada é impossível» (cf. Lc 1,37).

 

     Ora, se, baseado na fé, eu partir do princípio de que a Deus nada é impossível, então não vejo por que lhe seria impossível fazer-se também homem e, mais, também não custa nada a admitir que o pudesse fazer pela colaboração e pelo «sim» duma Virgem que, apesar de ser mãe, não deixa de ser virgem. Partindo desse princípio como premissa, é claro que a Deus não é impossível fazer com que uma virgem seja mãe, sem por isso deixar de ser virgem. É claro que, em linha de princípio, Ele também poderia ter encarnado através dum processo normal de gestação. Não haveria no caso nenhuma impossibilidade ontológica, digamos assim. Isso é certo, mas que melhor forma de Deus acentuar a sua intervenção absolutamente excecional na história da humanidade senão também através dum nascimento por via excecional, como é o que se celebra com a festa do Natal de Jesus?