VII DOMINGO DA PÁSCOA

(SOLENIDADE DA ASCENSÃO)

Temas

de

fundo

1ª leitura (Act 1,1-11):  ... Jesus apareceu vivo aos apóstolos depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também sobre o Reino de Deus. No decurso duma refeição que partilhava com eles, Jesus ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, «do qual, dissera Ele, me ouvistes falar. João batizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis batizados no Espírito Santo». Quando estavam todos reunidos, perguntaram-lhe: «Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?». Respondeu-lhes: «Os tempos e os momentos são fixados pela autoridade de Deus e não vos compete a vós saber quando chegam. Mas, quando o Espírito Santo vier sobre vós, ides receber uma força que fará de vós minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo». Dito isto, elevou-se à vista deles, enquanto uma nuvem o subtraiu aos seus olhos. Ainda estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, quando surgiram de repente dois homens vestidos de branco e lhes disseram: «Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado para o céu, virá da mesma maneira que agora o vistes partir para o céu».

 

* Porque estais assim a olhar para o céu?

 

   A ascensão de Jesus ao céu é, por assim dizer, o ponto final da vida de Jesus sobre a terra. Mas a sua história não acaba aqui, pois é também a partir deste momento que começa uma nova fase da sua vida como cabeça do Corpo Místico. Sim, com a subida de Jesus ao céu e o envio do Espírito Santo, tem início a missão da Igreja, que deve ser continuada pelos apóstolos e pelos seus sucessores. A missão evangelizadora de Jesus, iniciada que é a fase definitiva em Jerusalém, estende-se até aos confins do mundo; e a experiência da ascensão é a ocasião privilegiada em que os apóstolos descobrem que não podem ficar ali parados. Jesus, embora estando à direita do Pai, não está ausente, mas sim presente, doutra maneira, através da ação do Espírito. Ele continua vivo e a agir pelos seus apóstolos e através da nova comunidade que acredita nele por meio deles. Compete agora aos discípulos torná-lo novamente presente através do seu anúncio e testemunho. É inútil que os discípulos se limitem a olhar para o céu, onde Ele está sempre a interceder por eles. Agora, torna-se necessário que vão pelo mundo a dizer e a provar que Ele está vivo e que é possível salvar-se.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (Ef 1,17-23):  Que o Pai glorioso, Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, vos dê o Espírito de sabedoria que vos revelará Deus para O conhecerdes. Que os olhos do vosso coração sejam iluminados para saberdes qual é a esperança que nos vem do seu chamamento, que riqueza de glória contém a herança que Ele nos reserva entre os santos e como é extraordinário e grande o seu poder que opera nos que acreditam. A eficácia dessa força é tão poderosa como a que exerceu quando ressuscitou Cristo dos mortos e o sentou à sua direita, nos altos céus. Ele está muito acima de todo o Poder, Principado, Autoridade, Potestade e Dominação e acima de qualquer outra autoridade deste mundo e do que há-de vir. Sim, Deus submeteu tudo aos pés de Cristo e deu-o à Igreja como cabeça suprema. A Igreja é o seu Corpo, a plenitude daquele que, por seu lado, tudo preenche em todos.

 

 

* Deus fez sentar Jesus à sua direita.

 

    Não interessa saber se a Carta aos Efésios é ou não da pena de Paulo e se foi dirigida em primeiro lugar aos cristãos de Éfeso ou a outros (alguns especialistas acham por bem levantar estas questões). Essas são questões secundárias. Agora, o que importa é que foi escrita para responder a uma necessidade específica dos cristãos e é precisamente nesse sentido que podemos extrair deste texto uma mensagem válida para hoje. Ora bem, quando esta Carta foi escrita, começava a propalar-se pelas cristandades primitivas uma ideia que irá dar origem a uma das grandes heresias de sempre: e que é o facto de partir do suposto que Jesus é um grande homem, mas nunca comparável ou igual a Deus, chegando mesmo alguns a defender que Ele era inferior aos anjos. Por isso, segundo essa teoria, Ele seria apenas um mediador. Pois bem, uma das grandes verdades em que o espírito da Páscoa não se cansa de insistir é que precisamente o Jesus que foi crucificado e morreu sob Pilatos é o Messias, o Filho de Deus, e agora está à direita de Deus Pai. Sem professar esta realidade da divindade de Jesus, ninguém tem autoridade para se declarar verdadeiramente cristão. E as testemunhas de Jesus Cristo não podem não dizer precisamente isso àqueles a quem falam dele, seja onde for e em que época for. Então é oportuno recordar, mais uma vez, o que se aprende nos encontros de catequese: Jesus Cristo é, ao mesmo tempo, verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. 

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Lc 24,46-53) [Conclusão do Evangelho segundo S. Lucas]: (Jesus disse-lhes): Está escrito que o Messias devia sofrer e ressuscitar de entre os mortos, ao terceiro dia; que, em seu nome, havia de ser anunciada a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém. Vós sois as testemunhas destas coisas. Eu vou mandar sobre vós o que o meu Pai prometeu. Entretanto, permanecei na cidade até serdes revestidos com a força do Alto. Depois, levou-os até junto de Betânia e, erguendo as mãos abençoou-os. Enquanto os abençoava, separou-se deles e elevou-se aos céus. Eles, depois de se terem prostrado diante dele, voltaram para Jerusalém com grande alegria. E estavam continuamente no templo a bendizer a Deus.

 

* Vós sois testemunhas destas coisas.

 

   A ascensão de Jesus aos céus é, digamos assim, o ponto final das suas aparições aos apóstolos, após a ressurreição, mas é também o momento que marca o início da missão de evangelização da Igreja pelo mundo. Sabe-se que as «últimas recomendações» de alguém são sempre de importância vital.  Daí que se deva concluir que a obrigação de anunciar, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos seja uma vocação incontornável da comunidade cristã. Este texto de S. Lucas realça e especifica o objetivo do testemunho que os discípulos de Jesus devem dar. Aos olhos dos apóstolos, Jesus entra na «vida nova» que a ressurreição implica. Eles vão tirar as devidas conclusões, mesmo que para isso seja preciso passar algum tempo a rezar e a refletir. E, de facto, sabemos que eles depressa se dão conta - sobretudo a partir do momento em que recebem a força do Espírito Santo - que não podem estar à espera que as coisas lhes caiam do céu. É preciso pôr-se a caminho, em missão, para levar pela palavra e pelo exemplo a mensagem de Jesus a toda a parte. Daí que o papa Paulo VI tenha decidido - e bem - associar ao Domingo da Ascensão o Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social, pois a Igreja como tal tem o direito e o dever de pregar, a Boa a Nova ao mundo inteiro, no respeito das várias culturas, através de todos os meios que a tecnologia põe à sua disposição.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *   Sereis minhas testemunhas

       até aos confins 

      do mundo.

 

 *   O Pai fez

      sentar Jesus

      à sua direita,

      no alto 

      do céu.  

 

 

 *   Ide por todo

      o mundo

      e proclamai

      o Evangelho.

JESUS

SEPAROU-

SE

DELES

E

ELEVOU-

SE

AO CÉU. 

 

  • A consumação do mistério

    Em termos históricos, a Solenidade da Ascensão começou por ser celebrada juntamente com a do Pentecostes e com a própria Páscoa (Ressurreição). A ligação entre estas três realidades é clara sobretudo a partir do Evangelho de S. João. Seja como for, bem depressa se tornou autónoma, se assim se pode afirmar. Já S. João Crisóstomo (+405) e Sto. Agostinho (+430) falam de celebração distinta, descrevendo-a como fazendo parte, já no tempo deles, da «tradição universal». 

 

   A Ascensão pode-se definir como o culminar do triunfo real de Cristo; é como o cumprimento e a plenitude da sua glorificação pessoal, após a humilhação do Calvário. É evidente que, em termos rigorosos, no que se refere a espaço e tempo, é muito difícil - senão impossível - dissociar quer a realidade da Ressurreição quer a da Ascensão, quer esta última do envio do Espírito Santo, que, por motivos de apreensão, se celebra no Pentecostes. E o motivo é simples: Jesus, com a ressurreição, retoma a vida que tinha antes e recomeça a viver numa dimensão em que não contam já nem o tempo nem o espaço. Todavia, por razões de apreensibilidade, digamos assim, a Ascensão é diferente do Pentecostes, precisamente na medida em que nós, como pessoas, precisamos de referências como o tempo e o espaço para compreendermos a realidade em geral e, por conseguinte, também a realidade espiritual.

 

   É, pois, legítimo, dividir, em termos didáticos, passe a expressão, tanto a Ressurreição como a Ascensão e o Pentecostes. Para nós, torna-se mais fácil refletir sobre cada um dos aspetos em separado, tendo assim a possibilidade de aprofundar os assuntos e as consequências que desses assuntos derivam.

 

  • Um Homem à direita de Deus

    A fórmula do Credo que recitamos aos domingos - «Ressuscitou, subiu ao Céu e está sentado à direita do Pai» - exprime a fé pascal da Igreja em relação ao «destino» de Jesus de Nazaré. Este homem, com o qual os apóstolos «comeram e beberam» durante a sua existência terrena, depois da morte, tornou-se «Senhor», porque o Pai o associou de modo definitivo à sua vida e ao seu poder sobre os homens e sobre todo o mundo: «Todo o poder me foi dado no Céu e na Terra». 

 

   Depois da paixão, Ele está presente no meio dos seus, segundo uma nova dimensão, e caminha com eles pelos caminhos do mundo, para onde os manda como testemunhas da Ressurreição, e como anunciadores do perdão e da vida de Deus, feitos como que veículos da força motriz do Espírito, que reúne os homens de todas as nações da terra numa única Igreja. A fé e o batismo introduzem o homem na nova dimensão do Ressuscitado, começando a participar assim, desde já, na vida plena que Cristo tem junto do Pai e que Ele comunica pelo seu Espírito.

 

  • O Céu não é um lugar, é Alguém

   Afirmar que, pela pessoa de Jesus, podemos já viver a realidade do Céu, ou paraíso, é contestar, de certa maneira, a imagem limitada de «céu espacial». Para Jesus, a noção de «céu espacial» não faz sentido, porque o Céu é, em suma, a participação na vida do Pai. Por isso, desde já, podemos participar dessa vida, embora ainda não de forma definitiva Tendo assumido por completo, exceto no pecado, a natureza humana, Ele como que nos «empastou» também com a sua divindade, fazendo-nos participantes da sua própria vida. Somos feitos participantes dessa vida a partir da nossa aceitação de Jesus Cristo como Senhor e Filho de Deus, embora ainda não plenamente. 

 

   Mas virá o dia, como diz S. Paulo, em que se manifestará abertamente tudo o que já somos. O céu, assim, não é simplesmente a «recompensa» por uma vida justa e boa, até porque, por mais justa e meritória que fosse a nossa vida, nunca mereceríamos essa «recompensa» infinita. Essa vida devemo-la sobretudo a Ele. Mas nós temos que O aceitar tal como Ele é, mesmo na «vertente», digamos assim, da paixão. Ou seja, este aspeto não pode ser apagado na «personalidade» de Jesus. Em qualquer caso, a nossa «recompensa» não tem comparação com o que nós estejamos em condições de «fazer». De resto, é Paulo que o diz bem à sua maneira: «Os sofrimentos do momento presente não são nada comparados com a glória futura que deverá ser revelada em nós» (Rm 8,18). Mas é precisamente a própria vida de Jesus que devemos fazer «render» todos os dias, por forma a possuí-la um dia em plenitude numa outra dimensão, quando as últimas coisas terrenas tiverem passado para nós.

 

   Por isso, interpretando teologicamente a Ascensão de Jesus (mesmo segundo a 1ª leitura), os anjos recomendam aos apóstolos para não estarem a olhar para o Céu, mas para esperarem e prepararem o regresso glorioso do Senhor. E isso até ao fim dos tempos. O Céu não é, pois, um narcótico para gente passiva e resignada, uma desculpa para não trabalhar neste mundo pela realização, mesmo que imperfeita, daqueles valores de paz, liberdade, fraternidade, comunhão, vida, amor, alegria, que afinal são os anseios de todos os homens de todos os tempos. O Céu é, isso sim, algo que só terá a sua plenitude na outra dimensão, é certo, mas deve ser começado a construir nesta dimensão.

 

  • Ide e ensinai todas as gentes

  A tarefa da Igreja (ou seja, de todos os que acreditam e aceitam a Jesus Cristo) em tensão entre o visível e o invisível, entre a realidade presente e a «cidade futura», realiza-se pelo serviço dos outros através dum amor concreto: «É por isso que os homens acreditarão que somos discípulos de Cristo» (cf. Jo 13,35). Esse amor concreto e desinteressado é o testemunho convicto e convincente de que a nossa vida não é um beco sem saída, mas uma fase temporária da existência humana. 

 

   A tarefa da evangelização não é confiada só a um grupo particular de fiéis, mas a todos os que receberam o dom da fé. É certo que há pessoas que respondem com a doação de toda a própria vida à missão evangelizadora, dizendo «sim» a uma vocação especial. Mas incumbe a todos os cristãos a obrigação de «ir por toda a parte e ensinar todas as gentes», com a palavra, mas sobretudo através do cumprimento escrupuloso e «dirigido segundo princípios cristãos» das próprias tarefas seculares. 

 

   Somos admoestados, com frequência, de que «nada vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois a gente se perde a si mesmo» (cf. Lc 9,25). Todavia, a esperança duma «nova terra» não deve enfraquecer a solicitude pelo trabalho desta terra, onde já cresce aquele corpo da humanidade nova de que o cristão deve ser o sinal e o modelo. A este propósito, podem ler-se com muito proveito textos fundamentais do Concílio como, por exemplo, Lumen Gentium, nn. 20, 39, 43 e 57. Para além destes textos, que não vou aqui reproduzir, seja-me permitido também sugerir a leitura de um outro documento conciliar fundamental, a Gaudium et Spes, que trata precisamente da missão e tarefa dos cristãos no que se refere aos assuntos terrenos.

 

  • Anunciar a toda a gente «hoje»

   Sendo a principal tarefa da Igreja levar a mensagem de Cristo a todo o mundo, é lógico que ela tem obrigação de se ir adaptando não só à mentalidade, cultura e usos e costumes dos diversos povos, mas também aos diversos tempos. A mensagem de Cristo é obviamente una e imutável na sua essência. Mas é precisamente para ser fiel ao seu conteúdo e ao mandato de o transmitir que tem de se mudar de linguagem e de categorias linguísticas, à medida que a linguagem e as categorias linguísticas mudam. Sim, o motivo parece-me muito simples:  a linguagem e as categorias mudam constantemente com o tempo e com as inovações técnicas. Como consequência, o que um termo significou ontem pode não ter o mesmo sentido hoje. Ora, se continuarmos a usar sempre os mesmos termos ou expressões que, entretanto, mudaram de sentido, corremos o risco de perder também a mensagem original que eles antes continham.

  

    Celebrando-se neste dia também, desde 1966, o Dia Mundial das Comunicações Sociais, estas considerações parecem sobremaneira úteis e actuais. A missão da Igreja é -  e será sempre - em termos genéricos, promover a evangelização e a promoção humana. Mas hoje terá que o fazer utilizando também os chamados mass media, ou seja, os meios que o tempo e as novas tecnologias põem à sua disposição no mundo actual. Pode ser trabalhoso adaptar-se aos novos tempos, mas, por outro lado, nada mais natural do que a adopção desses meios para melhor desempenhar a sua tarefa.

 

  • Princípios para utilizar os mass media

    Seria caso para aqui fazer uma nota à parte sobre o tema, mas o espaço não no-lo consente (mas isso não exclui que seja proposta a mensagem do Santo Padre para este Dia Mundial, depois deste comentário); pelo que me limito a repetir uma citação do texto que João Paulo II enviou por altura do Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social de 1987, que acho elucidativo e plenamente actual. Diz ele: «A experiência da comunicação tem-se desenvolvido de modo extraordinário no nosso tempo e requer da Igreja e dos seus filhos um novo empenho de conhecimento e aprofundamento da sua linguagem». 

 

    «Ocorre, pois, aprofundar o que se vê, o que se ouve e o que se lê, discutindo os conteúdos com educadores e pessoas competentes. A Igreja nada tem a temer do desenvolvimento dos mass media. Antes pelo contrário, é sua intenção apelar aos seus filhos no sentido de se empenharem em primeira linha para que esta "obra" humana esteja verdadeiramente ao serviço do crescimento integral da pessoa».

 

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O LIII DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS
(2 DE JUNHO DE 2019)

« “Somos membros uns dos outros” (Ef 4, 25):
das comunidades de redes sociais à comunidade humana »

Queridos irmãos e irmãs!

   Desde quando se tornou possível dispor da Internet, a Igreja tem sempre procurado que o seu uso sirva o encontro das pessoas e a solidariedade entre todos. Com esta Mensagem, gostaria de vos convidar uma vez mais a refletir sobre o fundamento e a importância do nosso ser-em-relação e descobrir, nos vastos desafios do atual panorama comunicativo, o desejo que o homem tem de não ficar encerrado na própria solidão.

As metáforas da «rede» e da «comunidade»

   Hoje, o ambiente dos mass-media é tão invasivo que já não se consegue separar do círculo da vida quotidiana. A rede é um recurso do nosso tempo: uma fonte de conhecimentos e relações outrora impensáveis. Mas numerosos especialistas, a propósito das profundas transformações impressas pela tecnologia às lógicas da produção, circulação e fruição dos conteúdos, destacam também os riscos que ameaçam a busca e a partilha duma informação autêntica à escala global. Se é verdade que a Internet constitui uma possibilidade extraordinária de acesso ao saber, verdade é também que se revelou como um dos locais mais expostos à desinformação e à distorção consciente e pilotada dos factos e relações interpessoais, a ponto de muitas vezes cair no descrédito.

   É necessário reconhecer que se, por um lado, as redes sociais servem para nos conectarmos melhor, fazendo-nos encontrar e ajudar uns aos outros, por outro, prestam-se também a um uso manipulador dos dados pessoais, visando obter vantagens no plano político ou económico, sem o devido respeito pela pessoa e seus direitos. As estatísticas relativas aos mais jovens revelam que um em cada quatro adolescentes está envolvido em episódios de cyberbullying.[1]

   Na complexidade deste cenário, pode ser útil voltar a refletir sobre a metáfora da rede, colocada inicialmente como fundamento da internet para ajudar a descobrir as suas potencialidades positivas. A figura da rede convida-nos a refletir sobre a multiplicidade de percursos e nós que, na falta de um centro, uma estrutura de tipo hierárquico, uma organização de tipo vertical, asseguram a sua consistência. A rede funciona graças à comparticipação de todos os elementos.

   Reconduzida à dimensão antropológica, a metáfora da rede lembra outra figura densa de significados: a comunidade. Uma comunidade é tanto mais forte quando mais for coesa e solidária, animada por sentimentos de confiança e empenhada em objetivos partilháveis. Como rede solidária, a comunidade requer a escuta recíproca e o diálogo, baseado no uso responsável da linguagem.

   No cenário atual, salta aos olhos de todos como a comunidade de redes sociais não seja, automaticamente, sinónimo de comunidade. No melhor dos casos, tais comunidades conseguem dar provas de coesão e solidariedade, mas frequentemente permanecem agregados apenas indivíduos que se reconhecem em torno de interesses ou argumentos caraterizados por vínculos frágeis. Além disso, na social web, muitas vezes a identidade funda-se na contraposição ao outro, à pessoa estranha ao grupo: define-se mais a partir daquilo que divide do que daquilo que une, dando espaço à suspeita e à explosão de todo o tipo de preconceito (étnico, sexual, religioso, e outros). Esta tendência alimenta grupos que excluem a heterogeneidade, alimentam no próprio ambiente digital um individualismo desenfreado, acabando às vezes por fomentar espirais de ódio. E, assim, aquela que deveria ser uma janela aberta para o mundo, torna-se uma vitrine onde se exibe o próprio narcisismo.

   A rede é uma oportunidade para promover o encontro com os outros, mas pode também agravar o nosso autoisolamento, como uma teia de aranha capaz de capturar. Os adolescentes é que estão mais expostos à ilusão de que a social web possa satisfazê-los completamente a nível relacional, até se chegar ao perigoso fenómeno dos jovens «eremitas sociais», que correm o risco de se alhear totalmente da sociedade. Esta dinâmica dramática manifesta uma grave rutura no tecido relacional da sociedade, uma laceração que não podemos ignorar.

   Esta realidade multiforme e insidiosa coloca várias questões de caráter ético, social, jurídico, político, económico, e interpela também a Igreja. Enquanto cabe aos governos buscar as vias de regulamentação legal para salvar a visão originária duma rede livre, aberta e segura, é responsabilidade ao alcance de todos nós promover um uso positivo da mesma.

   Naturalmente não basta multiplicar as conexões, para ver crescer também a compreensão recíproca. Então, como reencontrar a verdadeira identidade comunitária na consciência da responsabilidade que temos uns para com os outros inclusive na rede on-line?

«Somos membros uns dos outros»

   Pode-se esboçar uma resposta a partir duma terceira metáfora – o corpo e os membros – usada por São Paulo para falar da relação de reciprocidade entre as pessoas, fundada num organismo que as une. «Por isso, despi-vos da mentira e diga cada um a verdade ao seu próximo, pois somos membros uns dos outros» (Ef 4, 25). O facto de sermos membros uns dos outros é a motivação profunda a que recorre o Apóstolo para exortar a despir-se da mentira e dizer a verdade: a obrigação de preservar a verdade nasce da exigência de não negar a mútua relação de comunhão. Com efeito, a verdade revela-se na comunhão; ao contrário, a mentira é recusa egoísta de reconhecer a própria pertença ao corpo; é recusa de se dar aos outros, perdendo assim o único caminho para se reencontrar a si mesmo.

   A metáfora do corpo e dos membros leva-nos a refletir sobre a nossa identidade, que se funda sobre a comunhão e a alteridade. Como cristãos, todos nos reconhecemos como membros do único corpo cuja cabeça é Cristo. Isto ajuda-nos a não ver as pessoas como potenciais concorrentes, considerando os próprios inimigos como pessoas. Já não tenho necessidade do adversário para me autodefinir, porque o olhar de inclusão, que aprendemos de Cristo, faz-nos descobrir a alteridade de modo novo, ou seja, como parte integrante e condição da relação e da proximidade.

   Uma tal capacidade de compreensão e comunicação entre as pessoas humanas tem o seu fundamento na comunhão de amor entre as Pessoas divinas. Deus não é Solidão, mas Comunhão; é Amor e, consequentemente, comunicação, porque o amor sempre comunica; antes, comunica-se a si mesmo para encontrar o outro. Para comunicar connosco e Se comunicar a nós, Deus adapta-Se à nossa linguagem, estabelecendo na história um verdadeiro e próprio diálogo com a humanidade (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 2).

   Em virtude de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus, que é comunhão e comunicação-de-Si, trazemos sempre no coração a nostalgia de viver em comunhão, de pertencer a uma comunidade. Como afirma São Basílio, «nada é tão específico da nossa natureza como entrar em relação uns com os outros, ter necessidade uns dos outros».[2]

   O panorama atual convida-nos, a todos nós, a investir nas relações, a afirmar – também na rede e através da rede – o caráter interpessoal da nossa humanidade. Por maior força de razão nós, cristãos, somos chamados a manifestar aquela comunhão que marca a nossa identidade de crentes. De facto, a própria fé é uma relação, um encontro; e nós, sob o impulso do amor de Deus, podemos comunicar, acolher e compreender o dom do outro e corresponder-lhe.

   É precisamente a comunhão à imagem da Trindade que distingue a pessoa do indivíduo. Da fé num Deus que é Trindade, segue-se que, para ser eu mesmo, preciso do outro. Só sou verdadeiramente humano, verdadeiramente pessoal, se me relacionar com os outros. Com efeito, o termo pessoa conota o ser humano como «rosto», voltado para o outro, comprometido com os outros. A nossa vida cresce em humanidade passando do caráter individual ao caráter pessoal; o caminho autêntico de humanização vai do indivíduo que sente o outro como rival para a pessoa que nele reconhece um companheiro de viagem.

Do «like» ao «amen»

   A imagem do corpo e dos membros recorda-nos que o uso da social web é complementar do encontro em carne e osso, vivido através do corpo, do coração, dos olhos, da contemplação, da respiração do outro. Se a rede for usada como prolongamento ou expetação de tal encontro, então não se atraiçoa a si mesma e permanece um recurso para a comunhão. Se uma família utiliza a rede para estar mais conectada, para depois se encontrar à mesa e olhar-se olhos nos olhos, então é um recurso. Se uma comunidade eclesial coordena a sua atividade através da rede, para depois celebrar juntos a Eucaristia, então é um recurso. Se a rede é uma oportunidade para me aproximar de casos e experiências de bondade ou de sofrimento distantes fisicamente de mim, para rezar juntos e, juntos, buscar o bem na descoberta daquilo que nos une, então é um recurso.

   Assim, podemos passar do diagnóstico à terapia: abrir o caminho ao diálogo, ao encontro, ao sorriso, ao carinho... Esta é a rede que queremos: uma rede feita, não para capturar, mas para libertar, para preservar uma comunhão de pessoas livres. A própria Igreja é uma rede tecida pela Comunhão Eucarística, onde a união não se baseia nos gostos [«like»], mas na verdade, no «amen» com que cada um adere ao Corpo de Cristo, acolhendo os outros.

Vaticano, na Memória de São Francisco de Sales, 24 de janeiro de 2019.

Franciscus