VII DOMINGO DE PÁSCOA - B
SOLENIDADE DA ASCENSÃO
Temas de fundo |
1ª leitura (Act 1,1-11): No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos apóstolos que escolhera, foi arrebatado aos céus. Foi a eles que ele apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus. No decurso duma refeição partilhada com eles, Jesus ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, «do qual - dissera Ele - me ouvistes falar. João batizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis batizados no Espírito Santo». E estavam todos reunidos quando lhe perguntaram: «Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?». Respondeu-lhes: «Os tempos e os momentos são fixados pela autoridade de Deus e não vos compete a vós saber quando chegam. Mas, quando o Espírito Santo vier sobre vós, ides receber uma força que fará de vós minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo». Dito isto, elevou-se à vista deles, enquanto uma nuvem o subtraiu aos seus olhos. Ainda estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, quando surgiram de repente dois homens vestidos de branco e lhes disseram: «Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado para o céu, virá da mesma maneira que agora o vistes partir para o céu».
* Porque estais assim a olhar para o céu? A «ascensão ao céu» é, por assim dizer, o ponto final da vida terrena de Jesus. Mas a história de Jesus não acaba aqui, porque é a partir deste momento que tem início uma nova fase da sua vida como cabeça do Corpo Místico, de que nós podemos fazer parte. Dito doutro modo, é o início da missão da Igreja: «Ide por todo o mundo e anunciai o evangelho...». Esta missão deve ser continuada pelos apóstolos e pelos seus sucessores e é confirmada pelo evento eficaz do Pentecostes. A missão de testemunhar Jesus, a partir de Jerusalém, estende-se até aos confins do mundo. A experiência da ascensão é ocasião privilegiada para os apóstolos descobrirem que não podem ficar ali parados. Jesus, embora estando à direita do Pai, não está ausente, mas sim presente, doutra maneira, através da ação do Espírito. Ele continua vivo e a agir através dos apóstolos e através da nova comunidade que acreditar nele por meio deles. Compete agora aos discípulos torná-lo novamente presente pelo seu anúncio e testemunho. É uma atitude inútil que os discípulos se limitem a olhar para o céu. Jesus está vivo e está sempre a interceder por eles, mas é necessário que vão pelo mundo dizer aos outros e a provar que Ele está vivo e que é possível salvar-se.
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2ª leitura (Ef 1,17-23): Que o Pai glorioso, Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, vos dê o Espírito de sabedoria que vos revelará Deus para O conhecerdes. Que os olhos do vosso coração sejam iluminados para saberdes qual é a esperança que nos vem do seu chamamento, que riqueza de glória contém, a herança que Ele nos reserva entre os santos e como é extraordinariamente grande o seu poder que opera nos que acreditam. A eficácia dessa força é tão poderosa como a que exerceu quando ressuscitou Cristo dos mortos e O sentou à sua direita, nos altos céus. Ele está muito acima de todo o Poder, Principado, Autoridade, Potestade e Dominação e acima de qualquer outra autoridade deste mundo e do que há-de vir. Sim, Deus submeteu tudo aos pés de Cristo e deu-o à Igreja como cabeça suprema. A Igreja é o seu Corpo, a plenitude daquele que, por seu lado, tudo preenche em todos.
* Deus fez sentar Jesus à sua direita. Não interessa muito saber se a Carta aos Efésios é ou não da autoria de Paulo - como alguns discutem - e se foi dirigida, em primeiro lugar, aos cristãos de Éfeso ou a outros. Deixemos aos especialistas dirimir estas questões. O que nos deve importar, em termos práticos, é que ela foi escrita para responder a uma necessidade específica dos cristãos daquele tempo. Então, é nesse sentido que podemos extrair deste texto uma mensagem válida para hoje. Quando esta Carta é escrita e enviada, começava a generalizar-se um pouco por todas as cristandades primitivas uma ideia perigosa que irá dar origem a uma das grandes heresias de todos os tempos: ou seja, a tendência a querer considerar a Jesus um grande homem, mas nunca comparável ou igual a Deus. Chega-se mesmo a defender que Ele era inferior aos anjos (no fundo, é essa a tentativa que se continua a fazer nos dias que correm, com a finalidade de relativizar e apoucar a figura de Cristo). Ora, segundo essa teoria, Ele seria apenas um mediador. Pois bem, uma das verdades fundamentais em que a letra e o espírito da Páscoa não se cansam de insistir é que precisamente o Jesus que foi crucificado e morreu sob Pilatos é o Messias, o Filho de Deus, e agora está à direita de Deus Pai. Sem aceitar esta realidade, não há legitimidade para alguém se dizer verdadeiramente cristão. As testemunhas de Jesus não podem não dizer precisamente isso àqueles a quem falam dele, seja onde for. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Evangelho (Mc 16,15-20): Jesus apareceu, finalmente, aos onze discípulos e disse-lhes: «Ide pelo mundo inteiro e proclamai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo; quem não acreditar será condenado. E eis os sinais que vão acompanhar os que acreditarem: em meu nome, expulsarão demónios, falarão línguas novas, apanharão serpentes com as mãos e, se beberem algum veneno mortal, não sofrerão nenhum mal; hão-de impor as mãos aos doentes e eles ficarão curados». Então, o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus. E eles, partindo, foram pregar por toda a parte. E o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam.
* Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho. O episódio da ascensão de Jesus aos céus é, digamos, o ponto final das suas aparições aos apóstolos, após a ressurreição, mas é também o momento que marca o início da missão de evangelização da Igreja pelo mundo inteiro. E sabe-se como as «últimas recomendações» de alguém têm sempre uma importância fundamental. Daí que se deva concluir que a obrigação de ir por todo o mundo a pregar o Evangelho seja uma vocação própria da comunidade cristã e dos seus membros. Este texto realça também a exigência de que os discípulos de Jesus não podem estar à espera que as coisas lhes caiam do céu. É preciso pôr-se a caminho, em missão, para levar pela palavra e pelo exemplo a mensagem de Jesus a toda a parte. Daí que o papa S. Paulo VI, depois da reforma litúrgica, tenha decidido - e bem - associar ao Domingo da Ascensão o «Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social». Aplicando o conceito à Igreja como tal, esta então tem o direito e o dever de pregar a Boa a Nova ao mundo inteiro através dos meios que a tecnologia põe à sua disposição. Isso significa também que há que usar as novas tecnologias, à medida que elas vão aparecendo, à grande missão de levar aos outros a pessoa de Jesus e a sua doutrina (a sua, não a nossa). A mudança na forma de expor a mensagem corresponde eventualmente em deixar de parte o uso de tecnologias e linguagem já ultrapassadas.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
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* Sereis minhas testemunhas até aos confins do mundo.
* O Pai fez sentar Jesus à sua direita, no alto do céu.
* Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho. |
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JESUS FOI ARREBATADO AO CÉU E SENTOU-SE À DIREITA DE DEUS. |
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A consumação do mistério
Em termos históricos, a Solenidade da Ascensão começou por ser celebrada juntamente com a do Pentecostes e com a própria Páscoa (Ressurreição). Mas, bem depressa, se tornou autónoma, se assim se pode dizer. Já S. João Crisóstomo (+405) e Sto. Agostinho (+430) falam duma sua celebração distinta, descrevendo-a como sendo parte, já no tempo deles, da «tradição universal».
A Ascensão é, ao mesmo tempo, o fim da peregrinação terrena de Jesus e o culminar do seu triunfo; é o cumprimento e a plenitude da sua glorificação pessoal após a humilhação do Calvário. Como me parece óbvio, em termos rigorosos, no que se refere a espaço e tempo, é muito difícil - senão impossível - dissociar quer a realidade da Ressurreição quer a da Ascensão, quer esta última do envio do Espírito Santo, celebrado no Pentecostes. O motivo é simples: Jesus, com a ressurreição, retoma a vida que tinha antes e recomeça a viver numa dimensão em que não contam já nem o tempo nem o espaço. Todavia, por razões de apreensibilidade, digamos assim, a Ascensão é algo «diferente» do Pentecostes, precisamente na medida em que nós temos necessidade de referências de tempo e espaço para compreendermos a realidade em geral e, por conseguinte, também a realidade espiritual.
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Um Homem à direita de Deus
A fórmula do Credo que se recita aos domingos - «Ressuscitou, subiu ao Céu e está sentado à direita do Pai» - exprime a fé pascal da Igreja em relação ao «destino» de Jesus de Nazaré. Este homem, com o qual os apóstolos «comeram e beberam» durante a sua existência terrena, depois da morte, tornou-se «Senhor», porque o Pai o associou de modo definitivo à sua vida e ao seu poder sobre os homens e sobre todo o mundo: «Todo o poder me foi dado no Céu e na Terra».
Depois da sua paixão, Ele continua presente no meio dos seus, segundo uma nova dimensão, e vai com eles pelos caminhos do mundo, para onde os manda como testemunhas da Ressurreição, ou seja, como anunciadores do perdão e da vida de Deus, feitos como que veículos da força motriz do Espírito, que reúne os homens de todas as nações da terra numa única Igreja. A fé e o batismo introduzem o homem na nova dimensão do Ressuscitado. O homem começa a participar assim, desde já, na vida plena que Cristo tem junto do Pai e que Ele comunica pelo seu Espírito.
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O céu não é um lugar, é Alguém
Sendo assim, afirmar que nós, pela pessoa de Jesus, podemos já viver a realidade do céu, ou paraíso, de alguma forma, é contestar a imagem de «céu espacial». Para Jesus, o céu é a plena participação na vida do Pai. Como diz o evangelista João, o céu consiste em acreditar/aceitar/acolher o Pai e Aquele que Ele enviou (cf. Jo 17,3). Ora, tendo assumido por completo, exceto no pecado, a natureza humana, Ele como que nos «empastou» também com a sua divindade, fazendo-nos participantes da sua própria vida. Nós somos feitos participantes dessa vida a partir da nossa aceitação de Jesus Cristo como Senhor e Filho de Deus, embora ainda não plenamente.
Mas virá o dia, como diz S. Paulo, em que se manifestará abertamente tudo o que já somos. O céu, assim, não é simplesmente a «recompensa» por uma vista justa e boa. Ou seja, em termos de «compra e venda», digamos assim, por mais justa e boa que seja a nossa vida, nunca merece essa «recompensa» infinita. De resto, é também Paulo que o diz à sua maneira: «Os sofrimentos do momento presente não são nada comparados com a glória futura que deverá ser revelada em nós» (Rm 8,18). E é precisamente a mensagem de Jesus que devemos fazer «render» todos os dias, para podermos usufruir um dia, em plenitude, numa outra dimensão, quando as últimas coisas - as simplesmente terrenas - tiverem passado para nós.
Por isso, interpretando teologicamente a Ascensão de Jesus (até segundo a primeira leitura), os anjos recomendam aos apóstolos que não estejam a olhar para o Céu, mas esperem e preparem o regresso glorioso do Senhor. E isso até ao fim dos tempos. O Céu não é, pois, um narcótico para gente passiva e resignada, uma desculpa para não trabalhar neste mundo pela realização, mesmo se imperfeita, daqueles valores de paz, liberdade, fraternidade, comunhão, vida, amor, alegria, que afinal são os anseios de todos os homens de todos os tempos.
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Ide e ensinai todas as gentes
A tarefa da Igreja - ou seja, de todos os que acreditam e aceitam a Jesus Cristo - em tensão entre o visível e o invisível, entre a realidade presente e a «cidade futura», é o serviço dos outros através dum amor concreto: «É por isso que os homens acreditarão que somos seus discípulos» (cf. Jo 13,35). Esse amor concreto e desinteressado é o testemunho convicto e convincente de que a nossa vida não é um beco sem saída, mas uma fase temporária da existência humana.
A tarefa da evangelização não é confiada só a um grupo particular de fiéis, mas a todos os que receberam o dom da fé. É certo que há pessoas que respondem com a doação de toda a própria vida à missão evangelizadora, dando o seu «sim» a uma vocação especial. Mas isso não exclui ninguém dos batizados. Sim, incumbe a todos os cristãos a obrigação de «ir por toda a parte e ensinar todas as gentes», com a palavra, mas sobretudo através do cumprimento escrupuloso e «dirigido segundo princípios cristãos» das próprias tarefas seculares.
Somos admoestados, com frequência, que «nada vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois se perde a si mesmo» (cf. Lc 9,25). Todavia, a esperança duma «nova terra» não deve enfraquecer a solicitude pelo trabalho desta terra, onde já cresce aquele corpo da humanidade nova de que o cristão deve ser o sinal e o modelo. A este propósito, podem ler-se com muito proveito textos fundamentais do Concílio como, por exemplo, Lumen Gentium, nn. 20, 39, 43 e 57. Para além destes textos, que não vou aqui reproduzir, seja-me permitido também sugerir a leitura de um outro documento conciliar fundamental que é a Gaudium et Spes, que trata precisamente da missão e tarefa dos cristãos no que se refere aos assuntos terrenos.
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Anunciar a toda a gente «hoje»
Se a principal tarefa da Igreja é levar a mensagem de Cristo a todo o mundo, então é lógico que ela tem obrigação de se ir adaptando não só à mentalidade, cultura e usos e costumes dos vários povos, mas também aos diversos tempos. É certo que a mensagem de Cristo é una e imutável na sua essência, mas é precisamente para ser fiel ao seu conteúdo e ao mandato de assim o transmitir que tem de se mudar de linguagem e de categorias linguísticas. Nesse sentido, a tão propalada «inculturação» do século passado, a meu ver, ainda não passou de moda.
O motivo parece-me óbvio: é que a linguagem e as categorias mudam constantemente com o tempo e com as inovações técnicas. Como consequência, o que um termo significou ontem pode não ter - e não tem às vezes - o mesmo sentido hoje. Por outro lado, uma determinada categoria linguística da cultura ocidental pode não dizer nada - ou então, desvirtuar o cerne da mensagem. Ora, se continuarmos a usar termos ou expressões que mudaram de sentido, corremos o risco de perder também a mensagem original que eles antes continham.
Celebrando-se neste dia também, desde 1966, o Dia Mundial das Comunicações Sociais, estas considerações parecem-me sobremaneira úteis e actuais. A missão da Igreja é, em princípio, tentar promover a evangelização (a Boa Nova de Jesus) e a promoção humana. Mas hoje terá que o fazer utilizando também os chamados mass media, ou seja, os instrumentos que o tempo e a técnica põem à sua disposição no mundo actual. Por isso, nada mais natural que a adopção desses meios para melhor desempenhar a sua tarefa. E é por isso que, este ano, a mensagem do papa para o Dia Mundical das Comunicações Sociais se lance na «aventura da Inteligência Artificial».
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Princípios para utilizar os mass media
Seria caso para aqui fazer, de forma mais desenvolvida, uma nota à parte sobre o tema, mas o espaço não no-lo consente (mas isso não exclui que eu proponha à mesma a mensagem do Santo Padre para este Dia Mundial, depois deste comentário). Em todo caso, não quero deixar de recordar uma citação do texto que João Paulo II enviou por altura do Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social de 1987. E faço-o porque o acho elucidativo e plenamente atual. Escreveu ele: «A experiência da comunicação tem-se desenvolvido de modo extraordinário no nosso tempo e requer da Igreja e dos seus filhos um novo empenho de conhecimento e aprofundamento da sua linguagem».
E João Paulo II conclui: «Ocorre, pois, aprofundar o que se vê, o que se ouve e o que se lê, discutindo os conteúdos com educadores e pessoas competentes. A Igreja nada tem a temer do desenvolvimento dos mass media. Antes pelo contrário, é sua intenção apelar aos seus filhos no sentido de se empenharem em primeira linha para que esta "obra" humana esteja verdadeiramente ao serviço do crescimento integral da pessoa».
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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O LVIII DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS
(12 de maio de 2024)
Inteligência artificial e sabedoria do coração:
para uma comunicação plenamente humana
Queridos irmãos e irmãs!
A evolução dos sistemas da assim chamada «inteligência artificial», sobre a qual já me debrucei na recente Mensagem para o Dia Mundial da Paz, está a modificar de forma radical também a informação e a comunicação e, através delas, algumas bases da convivência civil. Trata-se de uma mudança que afeta não só aos profissionais, mas a todos. A rápida difusão de maravilhosas invenções, cujo funcionamento e potencialidades são indecifráveis à maior parte de nós, suscita um espanto que oscila entre entusiasmo e desorientação e põe-nos inevitavelmente diante de questões fundamentais: o que é o homem, qual é a sua especificidade e qual será o futuro desta nossa espécie chamada homo sapiens na era das inteligências artificiais? Como podemos permanecer plenamente humanos e orientar para o bem a mudança cultural em curso?
A partir do coração
Antes de mais nada, convém limpar o terreno das leituras catastróficas e dos seus efeitos paralisadores. Já há um século Romano Guardini, refletindo sobre a técnica e o homem, convidava a não se inveterar contra o «novo» na tentativa de «conservar um mundo belo condenado a desaparecer». Ao mesmo tempo, porém, com veemência profética advertia: «O nosso posto é no devir. Devemos inserir-nos nele, cada um no seu lugar (...), aderindo honestamente, mas permanecendo sensíveis, com um coração incorruptível, a tudo o que nele houver de destrutivo e não-humano». E concluía: «Trata-se – é verdade – de problemas de natureza técnica, científica e política; mas só podem ser resolvidos passando pelo homem. Deve-se formar um novo tipo humano, dotado duma espiritualidade mais profunda, duma nova liberdade e duma nova interioridade». [1]
Neste tempo, que corre o risco de ser rico em técnica e pobre em humanidade, a nossa reflexão só pode partir do coração humano. [2] Somente dotando-nos dum olhar espiritual, recuperando uma sabedoria do coração é que poderemos ler e interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma comunicação plenamente humana. O coração, entendido biblicamente como sede da liberdade e das decisões mais importantes da vida, é símbolo de integridade e de unidade, mas evoca também os afetos, os desejos, os sonhos, e sobretudo é o lugar interior do encontro com Deus. Por isso a sabedoria do coração é a virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as suas consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o eu com o nós.
Esta sabedoria do coração deixa-se encontrar por quem a busca; e deixa-se ver a quem a ama; antecipa-se a quem a deseja e vai à procura de quem é digno dela (cf. Sab 6, 12-16). Está com quem aceita conselho (cf. Pr 13, 10), com quem tem um coração dócil, um coração que escuta (cf. 1 Re 3, 9). É um dom do Espírito Santo, que permite ver as coisas com os olhos de Deus, compreender as interligações, as situações, os acontecimentos e descobrir o seu sentido. Sem esta sabedoria, a existência torna-se insípida, pois é precisamente a sabedoria que dá gosto à vida: a sua raiz latina sapere associa-a ao sabor.
Oportunidade e perigo
Não podemos esperar esta sabedoria das máquinas. Embora o termo inteligência artificial já tenha suplantado o termo mais correto utilizado na literatura científica de machine learning (aprendizagem automática), o próprio uso da palavra «inteligência» é falacioso. É certo que as máquinas têm uma capacidade imensamente maior que os seres humanos de memorizar os dados e relacioná-los entre si, mas compete ao homem, e só a ele, descodificar o seu sentido. Não se trata, pois, de exigir das máquinas que pareçam humanas; mas de despertar o homem da hipnose em que cai graças ao delírio de omnipotência, crendo-se sujeito totalmente autónomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura.
Realmente o homem sempre teve a experiência de não se bastar a si mesmo, e procura superar a sua vulnerabilidade valendo-se de todos os meios. Partindo dos primeiros instrumentos pré-históricos, utilizados como prolongamento dos braços, passando pelos meios de comunicação como extensão da palavra, chegamos hoje às máquinas mais sofisticadas que funcionam como auxílio do pensamento. Entretanto cada uma destas realidades (próprias do homem) pode ser infectada pela tentação primária de se tornar como Deus sem Deus (cf. Gen 3), isto é, a tentação de querer conquistar com as próprias forças aquilo que deveria, pelo contrário, acolher como dom de Deus e viver na relação com os outros.
Cada coisa nas mãos do homem torna-se oportunidade ou perigo, segundo a orientação do coração. O próprio corpo, criado para ser lugar de comunicação e comunhão, pode tornar-se instrumento de agressão. Da mesma forma, cada prolongamento técnico do homem pode ser instrumento de amoroso serviço ou de domínio hostil. Os sistemas de inteligência artificial podem contribuir para o processo de libertação da ignorância e facilitar a troca de informações entre diferentes povos e gerações. Por exemplo, podem tornar acessível e compreensível um património enorme de conhecimentos, escrito em épocas passadas, ou permitir às pessoas comunicarem em línguas que lhes são desconhecidas. Mas simultaneamente podem ser instrumentos de «poluição cognitiva», alteração da realidade através de narrações parcial ou totalmente falsas, mas acreditadas – e partilhadas – como se fossem verdadeiras. Basta pensar no problema da desinformação que enfrentamos, há anos, no caso das fake news [3] e que hoje se serve da deep fake, isto é, da criação e divulgação de imagens que parecem perfeitamente plausíveis mas são falsas (já me aconteceu a mim também ser objeto delas), ou mensagens áudio que usam a voz duma pessoa, dizendo coisas que ela própria nunca disse. A simulação, que está na base destes programas, pode ser útil em alguns campos específicos, mas torna-se perversa quando distorce as relações com os outros e com a realidade.
Já a partir da primeira vaga de inteligência artificial – a das redes sociais – compreendemos a sua ambivalência, constatando, a par das oportunidades também os riscos e as patologias. O segundo nível de inteligências artificiais geradoras marca, indiscutivelmente, um salto qualitativo. Por conseguinte é importante ter a possibilidade de perceber, compreender e regulamentar instrumentos que, em mãos erradas, poderiam abrir cenários negativos. Os algoritmos, como tudo o mais que sai da mente e das mãos do homem, não são neutros. Por isso é necessário prevenir propondo modelos de regulamentação ética para contornar os efeitos danosos, discriminadores e socialmente injustos dos sistemas de inteligência artificial e contrastar a sua utilização para a redução do pluralismo, a polarização da opinião pública ou a construção do pensamento único. Assim reitero aqui a minha exortação à «Comunidade das Nações a trabalhar unida para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas». [4] Entretanto, como em todo o âmbito humano, não é suficiente a regulamentação.
Crescer em humanidade
Somos chamados a crescer juntos, em humanidade e como humanidade. O desafio que está diante de nós é realizar um salto de qualidade para estarmos à altura duma sociedade complexa, multiétnica, pluralista, multirreligiosa e multicultural. Cabe a nós questionar-nos sobre o progresso teórico e a utilização prática destes novos instrumentos de comunicação e conhecimento. As suas grandes possibilidades de bem são acompanhadas pelo risco de que tudo se transforme num cálculo abstrato que reduz as pessoas a dados, o pensamento a um esquema, a experiência a um caso, o bem ao lucro, com o risco sobretudo de que se acabe por negar a singularidade de cada pessoa e da sua história, dissolvendo a realidade concreta numa série de dados estatísticos.
A revolução digital pode tornar-nos mais livres, mas certamente não conseguirá fazê-lo se nos prender nos modelos designados hoje como echo chamber (câmara de eco). Nestes casos, em vez de aumentar o pluralismo da informação, corre-se o risco de se perder num pântano anónimo, favorecendo os interesses do mercado ou do poder. Não é aceitável que a utilização da I.A. conduza a um pensamento anónimo, a uma montagem de dados não certificados, a uma desresponsabilização editorial coletiva. A representação da realidade por big data (grandes dados), embora funcional para a gestão das máquinas, implica na realidade uma perda substancial da verdade das coisas, o que dificulta a comunicação interpessoal e corre o risco de danificar a nossa própria humanidade. A informação não pode ser separada da relação existencial: implica o corpo, o situar-se na realidade; pede para correlacionar não apenas dados, mas experiências; exige o rosto, o olhar, a compaixão e ainda a partilha.
Penso na narração das guerras e naquela «guerra paralela» travada por campanhas de desinformação. E penso em tantos repórteres que ficam feridos ou morrem no local em efervescência para nos permitir a nós ver o que viram os olhos deles. Pois só tocando pessoalmente o sofrimento das crianças, das mulheres e dos homens é que poderemos compreender o caráter absurdo das guerras. A utilização da inteligência artificial poderá dar um contributo positivo no âmbito da comunicação, se não anular o papel do jornalismo no local, antes pelo contrário se o apoiar; se valorizar o profissionalismo da comunicação, responsabilizando cada comunicador; se devolver a cada ser humano o papel de sujeito, com capacidade crítica, da própria comunicação.
Interrogativos de hoje e de amanhã
E surgem então, espontâneas, algumas questões: como tutelar o profissionalismo e a dignidade dos trabalhadores no campo da comunicação e da informação, juntamente com a dos utentes em todo o mundo? Como garantir a interoperabilidade das plataformas? Como fazer com que as empresas que desenvolvem plataformas digitais assumam as suas responsabilidades relativamente ao que divulgam daí tirando os seus lucros, de forma análoga ao que acontece com os editores dos meios de comunicação tradicionais? Como tornar mais transparentes os critérios subjacentes aos algoritmos de indexação e desindexação e aos motores de pesquisa, capazes de exaltar ou cancelar pessoas e opiniões, histórias e culturas? Como garantir a transparência dos processos de informação? Como tornar evidente a paternidade dos escritos e rastreáveis as fontes, evitando o para-vento do anonimato? Como deixar claro se uma imagem ou um vídeo retrata um acontecimento ou o simula? Como evitar que as fontes se reduzam a uma só, a um pensamento único elaborado algoritmicamente? E, ao contrário, como promover um ambiente adequado para salvaguardar o pluralismo e representar a complexidade da realidade? Como podemos tornar sustentável este instrumento poderoso, caro e extremamente energívoro? Como podemos torná-lo acessível também aos países em vias de desenvolvimento?
A partir das respostas a estas e outras questões compreender-se-á se a inteligência artificial acabará por dar origem a novas castas baseadas no domínio informativo, gerando novas formas de exploração e desigualdade ou se, pelo contrário, trará mais igualdade, promovendo uma informação correta e uma maior consciência da transição de época que estamos a atravessar, favorecendo a escuta das múltiplas carências das pessoas e dos povos, num sistema de informação articulado e pluralista. Dum lado, vemos assomar o espetro duma nova escravidão, do outro uma conquista de liberdade; dum lado, a possibilidade de que uns poucos condicionem o pensamento de todos, do outro a possibilidade de que todos participem na elaboração do pensamento.
A resposta não está escrita; depende de nós. Compete ao homem decidir se há de tornar-se alimento para os algoritmos ou nutrir o seu coração de liberdade, sem a qual não se cresce na sabedoria. Esta sabedoria amadurece valorizando o tempo e abraçando as vulnerabilidades. Cresce na aliança entre as gerações, entre quem tem memória do passado e quem tem visão de futuro. Só em conjunto é que cresce a capacidade de discernir, vigiar, ver as coisas a partir do seu termo. Para não perder a nossa humanidade, procuremos a Sabedoria que existe antes de todas as coisas (cf. Sir 1, 4), que, passando através dos corações puros, prepara amigos de Deus e profetas (cf. Sab 7, 27): há de ajudar-nos também a orientar os sistemas da inteligência artificial para uma comunicação plenamente humana.
Roma – São João de Latrão, 24 de janeiro de 2024.
[Francisco]
[1] Cartas do Lago de Como (Brescia 52022), 95-97
[2] Em continuidade com as anteriores Mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, dedicadas a «encontrar as pessoas onde estão e como são» (2021), «escutar com o ouvido do coração» (2022) e «falar com o coração» (2023).
[3] Cf. Mensagem para o LII Dia Mundial das Comunicações (2018): «“A verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32). Fake news e jornalismo de paz».
[4] Mensagem para o LVII Dia Mundial da Paz: 1 de janeiro de 2024, 8.