IV DOMINGO DE PÁSCOA - B
Temas de fundo |
1ª leitura (Act 4,8-12): Naquele dia, Pedro, cheio do Espírito Santo, disse: «Chefes do povo e anciãos! Já que hoje somos interrogados sobre um benefício feito a um enfermo e sobre o modo como ele foi curado, ficai a saber todos vós e todo o povo de Israel: é em nome de Jesus de Nazaré, que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos, é por Ele que este homem se apresenta curado diante de vós. Ele (Jesus) é a pedra que vós, construtores, rejeitastes e que se transformou em pedra angular. E não há salvação em nenhum outro, pois não há debaixo do céu outro nome, dado aos homens, que nos possa salvar».
* Só em Jesus há salvação. Este trecho dos Atos é uma parte da resposta que o chefe dos apóstolos, Pedro, dá perante o Sinédrio, por causa da cura dum aleijado, à entrada do Templo. E a forma de Pedro pôr o problema é muito simpes: se aquele aleijado ficou curado em nome de Jesus de Nazaré, então isso é sinal de que Ele agora já não está morto, mas está vivo. É que ninguém pode ser curado em nome de alguém que está morto. Uma das grandes preocupações de Pedro é testemunhar esta realidade; ou seja, o facto de Jesus não ter ficado no sepulcro, mas ter voltado à vida. E Pedro reforça essa ideia da importância da ressurreição de Jesus ao afirmar que só nele é possível a salvação. Se Ele não tivesse ressuscitado, tudo teria acabado ali. Como é que e em que momento as pessoas têm a possibilidade de chegar a essa «confissão de fé» na divindade daquele Jesus que tinha morrido numa cruz, isso faz parte do mistério de Deus. Mas o facto está aí: alguém é curado em nome de Jesus. A conclusão é clara...
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2ª leitura (1Jo 3,1-2): Vede como é grande o amor que o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus. E realmente somo-lo! É por isso que o mundo não nos conhece, uma vez que O não conheceu a Ele. Caríssimos, agora já somos filhos de Deus. Mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é.
* Ainda não se manifestou o que havemos de ser. Esta leitura proposta para hoje é constituída só por dois versículos, mas são dois versículos intensos de conteúdo. Aqui está o fundamento, digamos assim, do grande «evangelho» (boa nova) de Deus à humanidade. Com efeito, por incrível que nos possa parecer, a grande e consoladora notícia é a de que somos filhos de Deus. É caso para dizer que não é nenhuma brincadeira podermos chamar a Deus nosso Pai. Quem não acredita em Deus é incapaz de «ver» essa realidade, mas para quem acredita tudo é possível, porque «a Deus nada é impossível» (cf. Lc 1,37): não só fazer-se Ele próprio um de nós, sem no entanto deixar de ser quem é, mas também fazer de nós seus filhos. É certo que ainda não somos filhos como um dia seremos, mas isso não invalida que, desde já, por obra do seu Filho, nós possamos retomar aquela «imagem e semelhança» que tínhamos tido originalmente (cf. criação do homem, Gn 1,26-28).
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Evangelho (Jo 10,11-18): Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. O mercenário, e o que não é pastor, aquele a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo e abandona as ovelhas, fugindo do lobo que as arrebata e espanta. Ele é mercenário e não lhe importam as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me, como o Pai me conhece e Eu conheço o Pai. E ofereço a minha vida pelas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas que não pertencem a este redil. Também estas eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz. E então haverá um só rebanho e um só pastor. É por isso que o meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho poder de a oferecer e poder de a retomar. Esse é o encargo que recebi de meu Pai.
* O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. Este trecho evangélico escolhido para o IV Domingo de Páscoa do Ano «B» continua o discurso sobre o Bom Pastor, iniciado no Ano «A». Como é evidente, as várias imagens estão ao serviço do conteúdo e da mensagem e, por isso, são «subsidiárias». Seja como for, há uma contraposição clara entre o bom pastor e aquele que o não é, na medida em que um está disposto a dar a vida pelos que lhe estão confiados e o outro foge à primeira dificuldade. Em todo o caso, o povo tem uma intuição especial para distinguir entre o autêntico pastor e o mercenário... Há, no texto, também um outro pormenor que acho importante realçar. E é o facto de Jesus, propondo-se como bom pastor, falar também de ovelhas que não pertencem a este redil. Se é certo que o alcance imediato desta frase se refere aos que não pertencem ao antigo «povo de Deus, não deixa de se poder também concluir que Ele queria mesmo referir-se àqueles que não pertencem formalmente ao novo «povo de Deus»?
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Não há salvação em nenhum outro.
* Agora somos filhos de Deus.
* O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas. |
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TENHO AINDA OUTRAS OVELHAS QUE NÃO SÃO DESTE REDIL. |
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A imagem do pastor e do rebanho
O IV Domingo da Páscoa é também designado por «Domingo do Bom Pastor», pois, em cada um dos três ciclos do ano litúrgico, é retomado o capítulo 10º do Evangelho de S. João, que trata precisamente do assunto em questão. A essa circunstância não é também alheia - antes pelo contrário - a iniciativa de ter associado a este domingo o Dia Mundial das Vocações.
A imagem do pastor que guia as suas ovelhas era familiar em Israel e em outros povos vizinhos. A imagem do «pastor» para exprimir o Deus bíblico é originária da civilização agrícola oriental, onde o pastor tinha um papel importante e imprescindível à subsistência da própria comunidade. A imagem foi utilizada não porque essa «profissão» fosse em si muito respeitada - que o não era de facto (antes pelo contrário) - mas porque se tratava de uma imagem facilmente compreendida por toda a gente, e dum modo particular pelos chefes religiosos, que «ditavam lei» no tempo de Jesus. É muito importante este pormenor para compreender melhor todo o texto de João em referência.
A Bíblia respira, digamos assim, esse ambiente da pastorícia, sobretudo no ciclo dos Patriarcas (cf. Gn cc. 12-50). Seja como for, a função de pastor não diz só respeito à «civilização» pastoril. Ela contém em si uma riqueza de imagens e de simbolismos que têm enorme repercussão em toda a histórica bíblica e evangélica. A essa imagem estão associadas outras de importância relevante: a procura da água; as noites passadas à luz do céu estrelado; o caminhar/peregrinar dum lado para o outro, conduzindo o rebanho; a vida comum entre pastor e rebanho; os pastos abundantes ou não...
Mais tarde, a imagem de rebanho aplicar-se-á, dum modo particular, ao Povo de Israel, que, ao início, até tem como chefes pessoas que, «por acaso», em determinado período da sua vida, começaram por ser pastores, como, por exemplo, Moisés e o Rei David. Que a imagem e o título de pastor sejam aplicados também ao Messias, descendente de David, não deve causar, pois, qualquer admiração. Aliás, é uma representação que ainda nos dias de hoje é compreendida e aceite com facilidade, mesmo por aqueles que nunca tenham tido essa experiência pessoal. O seu simbolismo e significado parecem evidentes.
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O Bom Pastor e os «pastores»
É talvez por isso que o trecho do evangelista S. João sobre o o papel do Bom Pastor, apesar da multiplicidade de pormenores, não apresenta qualquer dificuldade de interpretação no seu sentido global; mesmo para os que não estejam muito familiarizados com a realidade e as dificuldades da vida pastoril.
Jesus é o pastor segundo o coração de Deus, é o pastor anunciado pelos profetas. Ele guia os seus com a autoridade de quem ama e dá a vida por eles. Essa imagem aplica-se também, sem dificuldade, aos «pastores» atuais. Os pastores da Igreja são chamados a continuar esta missão de guias dos seus irmãos na fé, seguindo esse modelo e pondo em prática o estilo do Bom Pastor. À semelhança de Jesus, que se substitui ao próprio rebanho no momento do sacrifício, aceitando o papel de cordeiro que morre pelos pecados do seu povo, assim o ministério dos «pastores» da Igreja tem que ser visto em chave evangélica de serviço e não de honra e privilégio: o papa como mestre e garante da fé e centro de unidade e coesão, e não como chefe político ou como monarca absoluto; os bispos como mestres e guias da família diocesana, e não como dignitários ou altos funcionários do espírito; e os sacerdotes como pastores que guiam e animam a comunidade cristã com dedicação, tacto e desvelo, e não já como burocratas e como que funcionários dos sacramentos.
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«Pastores» e «ovelhas» do Povo de Deus
É um problema delicado e difícil o da relação entre os pastores e os fiéis do Povo de Deus. É esse o objetivo de todo um tratado teológico (Eclesiologia) dedicado à vida da Igreja. Mas esta não é a sede apropriada para nos adentrarmos no assunto. Em todo o caso, e em jeito de resumo, a Palavra de Deus dá-nos algumas indicações claras a esse respeito:
* Acolhimento sem distinções. O «bom pastor» não acolhe só as ovelhas sem defeitos, belas e bem nutridas, mas também as enfezadas, as coxas, as doentes. Isso significa acolher os outros com os seus gostos, as suas ideias, a sua ignorância religiosa, os seus limites, as suas provocações, os seus pecados, a sua diversidade. Utilizando linguagem simbólica, significa também ir à procura da ovelha que se tresmalhou, embora correndo o risco de deixar as outras noventa e nove no redil (cf. Mt 18,12-13).
* Conhecimento mútuo. É o que se deduz das palavras evangélicas de hoje que dizem: «Chama uma a uma pelo nome as suas ovelhas... e elas seguem-no, porque conhecem a sua voz. Mas não seguirão um estranho, porque não conhecem a voz de estranhos». Não há, portanto, autêntico rebanho quando, para o pastor, as ovelhas são anónimas. Pior ainda quando se acha que algumas delas são «ranhosas». Só um conhecimento pessoal permite uma linguagem franca e um diálogo sincero, sem segundas intenções e mal-entendidos.
* Estreita colaboração. Este aspeto da vida «intra-eclesial» é expresso com bastante precisão por um documento fundamental do Concílio Vaticano II: «Os pastores reconheçam e promovam a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja, sirvam-se positivamente dos seus prudentes conselhos, confiem-lhes encargos no serviço da Igreja e deixem-lhes liberdade e margem de acção; melhor, encorajem-nos no sentido de tomar iniciativas de tipo pessoal» (cf. LG = Lumen Gentium, Luz das Nações, 37). São palavras sábias que, todavia, como outras, tantas vezes, pouca repercussão têm na vida prática.
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Pastores e guias dos irmãos
Falar nos dias de hoje de «pastores» na Igreja não é fácil, por causa das incrustações históricas que deformaram e falsearam as mentalidades, mesmo entre os fiéis. Os pastores são vistos ainda em muitas partes como chefes políticos, como altos dignitários ou como funcionários e burocratas do espírito; quando não são mesmo tidos como «intercessores» junto dos poderosos; hoje, muito menos que em tempos passados. Felizmente, cada vez menos. Mas isso não impede que os preconceitos da sociedade em geral sejam ainda o «pão nosso de cada dia».
Todavia, a autoridade da Igreja ou, melhor dizendo, dos principais responsáveis pela Igreja, é a que lhes deriva do facto de a mesma Igreja ser depositária das chaves dum Reino que não é deles nem é deste mundo. Assim sendo, pode-se afirmar que a Igreja não é um absoluto, mas o lugar privilegiado onde, no reino que é este mundo, se constrói esse outro Reino que tem o Senhor Ressuscitado como referência e come chefe único e supremo. Nessa linha, mais do que chefes, os pastores devem constituir-se como guias no caminho para o Pai, peregrinos que se juntam aos outros peregrinos para fazer propostas que não são as propostas normais dos governantes desta terra e deste mundo; profetas que interpretam os acontecimentos sob uma luz e uma ótica diferentes.
A sua «política» de atuação tem que ser, portanto, diferente. Quem o diz de forma inequívoca é o próprio Jesus: «Vós sabeis como os governantes das nações fazem sentir o seu domínio sobre elas e os magnates a sua autoridade. Pois bem, não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, faça-se o escravo de todos. Pois o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos» (Mc 10,42-45). Princípios que não carecem de explicações. Mas quão longe se está ainda destes princípios simples!
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Aprender a dizer «sim»
O encontro com o Ressuscitado (como ficou escrito no comentário do domingo anterior) provoca sempre, implícita ou explicitamente, uma missão. E essa missão pode ser uma missão toda particular; semelhante à missão dos próprios Apóstolos. É claro que a missão de testemunhar a experiência de Jesus deriva da própria condição de batizado. Mas, quando o Domingo do Bom Pastor foi escolhido para ser também o Dia das Vocações, teve-se a intenção de falar mais do que apenas da vocação fundamental de todo o cristão. Nunca foi fácil - nem é - falar de vocação sacerdotal ou religiosa. Mas é um tema que não se pode ignorar quando se comenta este Domingo do Bom Pastor. Hoje, a vocação especial não oferece atrativos nem de poder, nem de dinheiro nem de «status» social, como eventualmente ofereceria em tempos mais recuados. E ainda bem. É sinal de que já foi feito um caminho de purificação importante, já que essa motivação não é válida e não condiz com as condições do Reino.
Para concluir esta reflexão, relativamente ao tema que também se celebra hoje (Dia Mundial das Vocações), limito-me a propor só o seguinte: «Sim, Senhor! Tu és o único que pode satisfazer as minhas aspirações mais profundas. Porque eu fui criado por Ti com aspirações de infinito, pois me fizeste à tua imagem e semelhança, estou pronto e disponível para ir contigo. Aqui estou. Manda-me. Afinal, eu sou teu. E, se sou teu, tens direito ao meu ser. Creio que só Tu me podes dar a felicidade. Confio plenamente no teu projeto a meu respeito. Eu sei que sou fraco, feito a partir do barro da terra. Mas conto com a tua força, que é omnipotente. É tudo. Ponho a minha vida nas tuas mãos para servir os outros...».
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Mensagem do Papa para o 61º Dia Mundial de Oração pelas Vocações (21 de abril de 2024)
O Domingo do Bom Pastor, que este ano se celebra a 21 de abril, é dedicado a rezar especialmente pelas várias vocações na Igreja. O Papa escreveu uma mensagem na qual nos recorda que cada um de nós, no seu próprio lugar, pode, com a ajuda do Espírito Santo, ser um semeador de esperança e de paz.
Queridos irmãos e irmãs!
O Dia Mundial de Oração pelas Vocações convida-nos, cada ano, a considerar o precioso dom da chamada que o Senhor dirige a cada um de nós, seu povo fiel em caminho, pois dá-nos a possibilidade de tomar parte no seu projeto de amor e encarnar a beleza do Evangelho nos diferentes estados de vida. A escuta da chamada divina, longe de ser um dever imposto de fora – talvez em nome de um ideal religioso –, é antes o modo mais seguro que temos de alimentar o desejo de felicidade que trazemos no nosso íntimo: a nossa vida realiza-se e torna-se plena quando descobrimos quem somos, as qualidades que temos e o campo onde é possível pô-las a render, quando descobrimos que estrada podemos percorrer para nos tornarmos sinal e instrumento de amor, acolhimento, beleza e paz nos contextos onde vivemos.
Assim, este Dia proporciona-nos sempre uma boa ocasião para recordar, com gratidão, diante do Senhor o compromisso fiel, quotidiano e muitas vezes escondido daqueles que abraçaram uma vocação que envolve toda a sua vida. Penso nas mães e nos pais que não olham primeiro para si mesmos, nem seguem a tendência dum estilo superficial, mas organizam a sua existência cuidando das relações com amor e gratuidade, abrindo-se ao dom da vida e pondo-se ao serviço dos filhos e seu crescimento. Penso em todos aqueles que realizam, dedicadamente e em espírito de colaboração, o seu trabalho; naqueles que, em diferentes campos e de vários modos, se empenham por construir um mundo mais justo, uma economia mais solidária, uma política mais equitativa, uma sociedade mais humana, isto é, em todos os homens e mulheres de boa vontade que se dedicam ao bem comum. Penso nas pessoas consagradas, que oferecem a sua existência ao Senhor quer no silêncio da oração quer na atividade apostólica, às vezes na linha de vanguarda e sem poupar energias, servindo com criatividade o seu carisma e colocando-o à disposição de quantos encontram. E penso naqueles que acolheram a chamada ao sacerdócio ordenado, se dedicam ao anúncio do Evangelho, repartem a sua vida – juntamente com o Pão Eucarístico – pelos irmãos, semeiam esperança e mostram a todos a beleza do Reino de Deus.
Aos jovens, especialmente a quantos se sentem distantes ou olham a Igreja com desconfiança, gostaria de dizer: deixai-vos fascinar por Jesus, dirigi-Lhe as vossas perguntas importantes, através das páginas do Evangelho, deixai-vos desinquietar pela sua presença que sempre nos coloca, de forma benfazeja, em crise. Ele respeita mais do que ninguém a nossa liberdade, não Se impõe mas propõe-Se: dai-Lhe espaço e encontrareis a vossa felicidade no seu seguimento e, se vo-la pedir, na entrega total a Ele.
Um povo em caminho
A polifonia dos carismas e das vocações, que a Comunidade Cristã reconhece e acompanha, ajuda-nos a compreender plenamente a nossa identidade de cristãos: como povo de Deus em caminho pelas estradas do mundo, animados pelo Espírito Santo e inseridos como pedras vivas no Corpo de Cristo, cada um de nós descobre-se membro duma grande família, filho do Pai e irmão e irmã de seus semelhantes. Não somos ilhas fechadas em si mesmas, mas partes do todo. Por isso, o Dia Mundial de Oração pelas Vocações traz gravada a marca da sinodalidade: há muitos carismas e somos chamados a escutar-nos reciprocamente e a caminhar juntos para os descobrir discernindo aquilo a que nos chama o Espírito para o bem de todos.
Além disso, no momento histórico presente, o caminho comum conduz-nos para o Ano Jubilar de 2025. Caminhamos como peregrinos de esperança rumo ao Ano Santo, para, na descoberta da própria vocação e pondo em relação os diversos dons do Espírito, podermos ser no mundo portadores e testemunhas do sonho de Jesus: formar uma só família, unida no amor de Deus e interligada pelo vínculo da caridade, da partilha e da fraternidade.
Este é um dia é dedicado de modo particular à oração para implorar do Pai o dom de santas vocações para a edificação do seu Reino: «Rogai ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe» (Lc 10, 2). E, como sabemos, a oração é feita mais de escuta que de palavras dirigidas a Deus. O Senhor fala ao nosso coração e quer encontrá-lo aberto, sincero e generoso. A sua Palavra fez-Se carne em Jesus Cristo, que nos revela e comunica toda a vontade do Pai.
Neste ano de 2024, dedicado precisamente à oração como preparação para o Jubileu, somos chamados a descobrir o dom inestimável de poder dialogar com o Senhor, de coração a coração, tornando-nos assim peregrinos de esperança, porque «a oração é a primeira força da esperança. Tu rezas e a esperança cresce, avança. Diria que a oração abre a porta à esperança. A esperança existe, mas com a minha oração abro a porta» (Francisco, Catequese, 20/V/2020).
Peregrinos de esperança e construtores de paz
Mas que significa ser peregrinos? Quem empreende uma peregrinação procura, antes de mais nada, ter clara a meta, e conserva-a sempre no coração e na mente. Mas, para atingir esse destino, é preciso ao mesmo tempo concentrar-se no passo presente: para o realizar, é necessário estar leve, despojar-se dos pesos inúteis, levar consigo apenas o essencial e esforçar-se cada dia por que o cansaço, o medo, a incerteza e a escuridão não bloqueiem o caminho iniciado. Por isso ser peregrino significa partir todos os dias, recomeçar sempre, reencontrar o entusiasmo e a força de percorrer as várias etapas do percurso que, apesar das fadigas e dificuldades, sempre abrem diante de nós novos horizontes e panoramas desconhecidos.
Este é precisamente o sentido da peregrinação cristã: estamos em caminho à descoberta do amor de Deus e, ao mesmo tempo, à descoberta de nós mesmos, através duma viagem interior, mas sempre estimulados pela multiplicidade das relações. Portanto, peregrinos porque chamados: chamados a amar a Deus e a amar-nos uns aos outros. Assim, o nosso caminho sobre esta terra nunca se reduz a uma labuta sem objetivo nem a um vaguear sem meta; pelo contrário, cada dia, respondendo à nossa chamada, procuramos realizar os passos possíveis rumo a um mundo novo, onde se viva em paz, na justiça e no amor. Somos peregrinos de esperança, porque tendemos para um futuro melhor e empenhamo-nos na sua construção ao longo do caminho.
Tal é, em última análise, a finalidade de cada vocação: tornar-se homens e mulheres de esperança. Como indivíduos e como comunidade, na variedade dos carismas e ministérios, todos somos chamados a «dar corpo e coração» à esperança do Evangelho neste mundo marcado por desafios epocais: o avanço ameaçador duma terceira guerra mundial aos pedaços, as multidões de migrantes que fogem da sua terra à procura dum futuro melhor, o aumento constante dos pobres, o perigo de comprometer irreversivelmente a saúde do nosso planeta. E a tudo isto vêm ainda juntar-se as dificuldades que encontramos diariamente com o risco de nos precipitar, às vezes, na resignação ou no derrotismo.
Por isso é decisivo, para nós cristãos, cultivar um olhar cheio de esperança no nosso tempo, para podermos trabalhar frutuosamente respondendo à vocação que nos foi dada ao serviço do Reino de Deus, Reino do amor, de justiça e de paz. Esta esperança – assegura-nos São Paulo – «não engana» (Rm 5, 5), porque se trata da promessa que o Senhor Jesus nos fez de permanecer sempre connosco e de nos envolver na obra de redenção que Ele quer realizar no coração de cada pessoa e no «coração» da criação. Tal esperança encontra o seu centro propulsor na Ressurreição de Cristo, que «contém uma força de vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição. É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas também é certo que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 276). E o apóstolo Paulo afirma ainda que fomos salvos na esperança (cf. Rm 8, 24). A redenção realizada na Páscoa dá a esperança, uma esperança certa, fiável, com a qual podemos enfrentar os desafios do presente.
Então ser peregrinos de esperança e construtores de paz significa fundar a própria existência sobre a rocha da ressurreição de Cristo, sabendo que todos os nossos compromissos, na vocação que abraçamos e levamos por diante, não caiem no vazio. Apesar dos fracassos e retrocessos, o bem que semeamos cresce de modo silencioso e nada pode separar-nos da meta última: o encontro com Cristo e a alegria de viver na fraternidade entre nós por toda a eternidade. Esta vocação final, devemos antecipá-la cada dia: a relação de amor com Deus e com os irmãos e irmãs começa desde agora a realizar o sonho de Deus, o sonho da unidade, da paz e da fraternidade. Que ninguém se sinta excluído desta chamada! Cada um de nós, no seu lugar próprio, no seu estado de vida, pode ser, com a ajuda do Espírito Santo, um semeador de esperança e de paz.
A coragem de se envolver
Por tudo isso digo mais uma vez, como durante a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa: «rise up – levantai-vos!» Despertemos do sono, saiamos da indiferença, abramos as grades da prisão em que por vezes nos encerramos, para que possa cada um de nós descobrir a própria vocação na Igreja e no mundo e tornar-se peregrino de esperança e artífice de paz! Apaixonemo-nos pela vida e comprometamo-nos no cuidado amoroso daqueles que vivem ao nosso lado e do ambiente que habitamos. Repito-vos: tende a coragem de vos envolver! Padre Oreste Benzi, apóstolo incansável da caridade, sempre da parte dos últimos e indefesos, repetia que ninguém é tão pobre que não tenha algo para dar, e ninguém é tão rico que não precise de receber alguma coisa.
Levantemo-nos, pois, e ponhamo-nos a caminho como peregrinos de esperança, para que também nós, como fez Maria com Santa Isabel, possamos comunicar boas-novas de alegria, gerar vida nova e ser artesãos de fraternidade e de paz.
Roma, São João de Latrão, no IV Domingo de Páscoa, 21 de abril de 2024.
FRANCISCO