VII DOMINGO DA PÁSCOA
(SOLENIDADE DA ASCENSÃO )
Temas de fundo |
1ª leitura (Act 1,1-11): ... Depois da sua paixão, (Jesus) apresentou-se vivo com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando-lhes do Reino de Deus. Um dia, no decurso duma refeição partilhada com eles, Jesus ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, «do qual - dissera Ele - me ouvistes falar. João batizava em água, mas, dentro de pouco tempo, sereis batizados no Espírito Santo». Quando estavam todos reunidos, perguntaram-lhe: «Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?». Respondeu-lhes: «Os tempos e os momentos são fixados pela autoridade de Deus e não vos compete a vós saber quando chegam. Mas, quando o Espírito Santo vier sobre vós, ides receber uma força que fará de vós minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo». Dito isto, elevou-se à vista deles, enquanto uma nuvem o subtraiu aos seus olhos. Ainda estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, quando surgiram de repente dois homens vestidos de branco que lhes disseram: «Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado para o céu, virá da mesma maneira que agora o vistes partir para o céu».
* Arrebatado para o céu. Em certo sentido, o texto do livro dos Actos proposto é «factual», porque vai muito para além do campo da ficção. Por isso, não precisa de grandes explicações. Isso quer dizer que, atrás dos «factos», há uma preocupação e um objetivo doutrinal. O episódio da ascensão de Jesus ao céu, que está ligado de maneira íntima à sua ressurreição, implica que, a partir deste momento, os apóstolos e os discípulos têm que seguir o seu próprio caminho sem a presença física de Jesus. E este é o «facto» de maior relevância. É verdade que não irão conseguir atingir sozinhos os seus intentos (ser testemunhas de Jesus até aos confins da terra), mas a promessa da força do Espírito é uma das ideias mais explícitas no texto e é por isso que os homens vestidos de branco (anjos?) dizem aos apóstolos que não adianta nada estarem ali a olhar para o céu. De alguma forma, a procura das «coisas lá de cima» não é razão para evadir das «coisas cá de baixo»; é preciso fazer uma coisa, sem omitir a outra.
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2ª leitura (Ef 1,17-23): Que o Pai glorioso, Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, vos dê o Espírito de sabedoria que vos revelará Deus para o conhecerdes. Que os olhos do vosso coração sejam iluminados para saberdes qual é a esperança que nos vem do seu chamamento, que riqueza de glória contém a herança que Ele nos reserva entre os santos e como é extraordinariamente grande o seu poder que opera nos que acreditam. A eficácia dessa força é tão poderosa como a que exerceu quando ressuscitou Cristo dos mortos e o sentou à sua direita, nos altos céus. Ele está muito acima de todo o Poder, Principado, Autoridade, Potestade e Dominação e acima de qualquer outra autoridade deste mundo e do que há-de vir. Sim, Deus submeteu tudo aos pés de Cristo e deu-o à Igreja como cabeça suprema. A Igreja é o seu Corpo, a plenitude daquele que, por seu lado, tudo preenche em todos.
* Deus submeteu tudo a Cristo. É muito provável que a Carta aos Efésios tenha como destinatários privilegiados cristãos provenientes do paganismo. É um facto que estes (não judeus) eram mais propensos a acolher certas «modas» do que propriamente os cristãos vindos do judaísmo. Ora bem, é nessas circunstâncias que Paulo se sente impelido a comunicar a mensagem de Jesus na sua integridade. Por outras palavras, nessa altura, nessas cristandades, eram objeto de alguma simpatia e adesão certas doutrinas que insinuavam no espírito dos fiéis a dúvida se os anjos, arcanjos e outras Potestades e Dominações não estariam acima de Cristo; ou pelo menos a par de Cristo. Paulo, ao mesmo tempo que reza ao Pai que dê aos seus cristãos a autêntica sabedoria, não «faz cerimónia» em colocar esses outros poderes «aos pés» de Cristo. O próprio Pai ressuscitou a Jesus de entre os mortos e o fez sentar à sua direita, entregando-lhe todo o poder.
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Evangelho (Mt 28,16-20): Os onze discípulos partiram para a Galileia, em direção ao monte que Jesus lhes tinha indicado. Ao verem Jesus, adoraram-no. Alguns, no entanto, ainda duvidavam. Jesus então aproximou-se deles e disse-lhes: «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, por toda a parte e fazei discípulos de todos os povos. Batizai-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo e ensinai-os a cumprir tudo quanto vos mandei. E Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos».
* Ide por toda a terra e fazei discípulos. Trata-se da última parte do Evangelho de Mateus. A ascensão do Senhor, aqui implícita, é o ponto final da presença física de Jesus e é também o início da missão dos apóstolos e, através deles, da Igreja nascente. Mas o texto evangélico é muito claro também num outro aspeto: apesar de Jesus abandonar fisicamente os seus, Ele, todavia, não deixa de estar presente. Muda a forma de o fazer, mas dá a garantia de que estará sempre com os apóstolos - e também com todos os que acreditarem por intermédio da sua palavra - até ao fim dos tempos. Como fez ao início do seu Evangelho, Mateus, mesmo no fim, volta a dizer-nos que o nosso Deus continua a ser «Deus-connosco» até ao fim dos tempos. Em todo o caso, agora, compete ao grupo dos seus discípulos - e dos seus continuadores - torná-lo visível pela palavra (ou Evangelho) e pelo testemunho de vida. E, como é natural, os sucessores dos seus apóstolos e discípulos, ao longo dos tempos, terão que ir adaptando a mensagem à cultura e à maneira de ser dos vários povos e das várias circunstâncias em que terão que viver.
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* Jesus elevou-se ao Céu.
* O Pai fez sentar Jesus à sua direita.
* Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. |
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EU ESTAREI SEMPRE CONVOSCO ATÉ AO FIM DOS TEMPOS. |
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A consumação do mistério
Em termos históricos, tudo indica que a Solenidade da Ascensão tenha começado por ser celebrada juntamente com a do Pentecostes. Mas bem depressa se tornou independente, se assim se pode dizer. Já S. João Crisóstomo (+405) e Sto. Agostinho (+430) falam duma sua celebração distinta, descrevendo-a como fazendo parte, já no seu tempo, da «tradição universal» da Igreja.
A Ascensão é o culminar do triunfo real de Cristo; o cumprimento da sua glorificação pessoal depois da humilhação do Calvário. É claro que, em termos de espaço e de tempo, rigorosamente falando, é muito difícil - senão impossível - dissociar quer a realidade da Ressurreição quer da Ascensão, quer esta última do envio do Espírito Santo no Pentecostes. E a razão é simples: Jesus, com a ressurreição, re-começa a viver numa dimensão em que não contam já nem o tempo nem o espaço. Todavia, por razões de apreensibilidade, digamos assim, a Ascensão é algo «diferente» do Pentecostes, precisamente na medida em que nós, pessoas limitadas, precisamos de referências como o tempo e o espaço para compreender a realidade em geral e, por conseguinte, também a realidade espiritual. Por outras palavras, como que «seccionamos» a realidade para melhor a podermos compreender.
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Um Homem à direita de Deus
A fórmula do Credo que diz «ressuscitou, subiu ao Céu e está sentado à direita do Pai» exprime a fé pascal da Igreja em relação ao «destino» de Jesus de Nazaré. Este homem, com o qual os apóstolos «comeram e beberam» durante a sua existência terrena, depois da morte, tornou-se «Senhor», porque o Pai o associou definitivamente à sua vida e ao seu poder sobre os homens e sobre todo o mundo: «Todo o poder me foi dado no Céu e na Terra».
Com o facto da sua ressurreição e da sua vitória sobre a morte, Ele está presente no meio dos seus, segundo uma nova dimensão, e caminha com eles pelas vias do mundo, para onde os manda como testemunhas da sua Ressurreição, como anunciadores do perdão e da vida de Deus. Eles são feitos como que veículos da força motriz do Espírito, que reúne os homens de todas as nações da terra numa única Igreja. É pela fé e pelo baptismo que o homem é introduzido na nova dimensão do Ressuscitado, começando a participar assim, desde já, na vida plena que Cristo tem junto do Pai e que Ele comunica pelo seu Espírito.
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O Céu não é um lugar, é Alguém
Sendo assim, afirmar que nós, pela pessoa de Jesus, podemos já viver a realidade do Céu, ou paraíso, é contestar a imagem de «céu espacial». Para Jesus, o Céu é a plena participação na vida do Pai. Ora, tendo assumido por completo, exceto no pecado, a natureza humana, Ele como que nos «empastou» também com a sua divindade, fazendo-nos, desde já, com os devidos limites, participantes da sua própria vida. Nós somos feitos participantes dessa vida a partir da nossa aceitação de Jesus Cristo como Senhor e Filho de Deus, embora ainda não estejamos em condições de o fazer plenamente.
Mas virá o dia, como diz S. Paulo, em que se manifestará abertamente tudo o que já somos. O Céu, assim, não é simplesmente a «recompensa» por uma vista justa e boa, até porque, por mais justa e boa que seja a nossa vida, nunca está em condições de merecer essa «recompensa» infinita. De resto, é também Paulo que o diz à sua maneira: «Os sofrimentos do momento presente não são nada comparados com a glória futura que deverá ser revelada em nós» (Rm 8,18). Mas é precisamente a própria vida de Jesus que devemos fazer «render» todos os dias, por forma a possuí-la um dia em plenitude numa outra dimensão, quando as últimas coisas terrenas tiverem passado para nós.
Por isso, interpretando teologicamente a Ascensão de Jesus (inclusivamente segundo a primeira leitura), os anjos recomendam aos apóstolos para não estarem a olhar para o Céu, mas para esperarem e prepararem o regresso glorioso do Senhor. E isso até ao fim dos tempos. O Céu não é, pois, um narcótico para gente passiva e resignada, uma desculpa para não trabalhar neste mundo pela realização, mesmo que imperfeita, dos valores de paz, liberdade, fraternidade, comunhão, vida, amor, alegria, que afinal são os anseios de todos os homens de todos os tempos.
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Ide e ensinai todas as gentes
A tarefa «temporal» da Igreja (composta por todos os que acreditam e aceitam a Jesus Cristo) em tensão entre o visível e o invisível, entre a realidade presente e a «cidade futura», é o serviço dos outros através dum amor concreto: «É por isso que os homens hão-de acreditar que somos discípulos de Cristo» (cf. Jo 13,35). Esse amor concreto sem qualquer contrapartida é o testemunho convicto e convincente de que a nossa vida não é um beco sem saída, mas sim apenas uma fase temporária da existência humana.
Falta, pois, acrescentar que a tarefa da evangelização não é confiada só a um grupo particular de fiéis, mas a todos os que receberam o dom da fé. É certo que há pessoas que respondem com a doação de toda a própria vida à missão evangelizadora, dizendo «sim» a uma vocação especial. Mas incumbe a todos os cristãos a obrigação de «ir por toda a parte e ensinar todas as gentes», com a palavra, mas sobretudo através do cumprimento escrupuloso e «dirigido segundo princípios cristãos» das próprias tarefas seculares.
Somos admoestados, com frequência, de que «nada vale ao homem ganhar o mundo inteiro se depois se perde a si mesmo» (cf. Lc 9,25). Todavia, a esperança duma «nova terra» não deve enfraquecer a solicitude pelo trabalho desta terra, onde já cresce aquele corpo da humanidade nova de que o cristão deve ser o sinal e o modelo. A este propósito, podem ler-se com muito proveito textos fundamentais do segundo Concílio do Vaticano como, por exemplo, Lumen Gentium, nn. 20, 39, 43 e 57. Para além destes textos, que não vou aqui reproduzir, seja-me permitido também sugerir a leitura de um outro documento conciliar fundamental, a Gaudium et Spes, que trata precisamente da missão e tarefa dos cristãos no que se refere aos assuntos terrenos.
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Anunciar a toda a gente «hoje»
Sendo a principal tarefa da Igreja levar a mensagem de Cristo a todo o mundo, é lógico que ela tem obrigação de se ir adaptando não só à mentalidade, cultura e usos e costumes dos diversos povos, mas também aos diversos tempos. É certo que a mensagem de Cristo é una e imutável na sua essência. Mas é precisamente para ser fiel ao seu conteúdo e ao mandato de o transmitir que tem de se mudar de linguagem e de categorias linguísticas.
E o motivo parece-me muito simples e óbvio: é que a linguagem e as categorias mudam constantemente com o tempo e com as inovações técnicas. Como consequência, o que um termo significou ontem pode não ter o mesmo significado hoje. Ora, se continuarmos a usar termos ou expressões que mudaram de sentido, corremos o risco de perder também a mensagem original que eles antes continham.
Celebrando-se neste dia também, por iniciativa do papa Paulo VI, desde 1966, o Dia Mundial das Comunicações Sociais, estas considerações parecem sobremaneira úteis e atuais. Em termos genéricos, a missão principal da Igreja tem por objetivo - e será sempre - a evangelização e a promoção humana. Mas hoje terá que o fazer utilizando também os chamados mass media, ou seja, os meios que o tempo e a técnica põem à sua disposição no mundo actual. Por isso, nada mais natural que a adoção desses meios - nomeadamente as plataformas digitais - para melhor desempenhar a sua tarefa.
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Princípios para utilizar os mass media
Seria caso para aqui fazer uma nota à parte sobre o tema, mas o espaço não no-lo consente; pelo que me limito a fazer uma citação do texto que o Papa enviou por altura do Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social de 1987, que acho elucidativo e plenamente atual: «A experiência da comunicação tem-se desenvolvido de modo extraordinário no nosso tempo e requer da Igreja e dos seus filhos um novo empenho de conhecimento e aprofundamento da sua linguagem».
«Ocorre, portanto, aprofundar o que se vê, o que se ouve e o que se lê, discutindo os conteúdos com educadores e pessoas competentes. A Igreja nada tem a temer do desenvolvimento dos mass media. Antes pelo contrário, é sua intenção apelar aos seus filhos no sentido de se empenharem em primeira linha para que esta "obra" humana esteja verdadeiramente ao serviço do crescimento integral da pessoa».
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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O LVII DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS
(21 de maio de 2023)
«Falar com o coração. “Testemunhando a verdade no amor” (Ef 4, 15)»
Estimados irmãos e irmãs!
Depois de ter refletido, nos anos anteriores, sobre os verbos «ir e ver» e «escutar» como condição necessária para uma boa comunicação, com esta Mensagem para o LVII Dia Mundial das Comunicações Sociais gostaria de me deter sobre o «falar com o coração». Foi o coração que nos moveu para ir, ver e escutar, e é o coração que nos move para uma comunicação aberta e acolhedora. Após o nosso treino na escuta, que requer saber esperar e paciência, e o treino na renúncia a impor em detrimento dos outros o nosso ponto de vista, podemos entrar na dinâmica do diálogo e da partilha que é, em concreto, comunicar cordialmente. E, se escutarmos o outro com coração puro, conseguiremos também falar testemunhando a verdade no amor (cf. Ef 4, 15). Não devemos ter medo de proclamar a verdade, por vezes incómoda, mas de o fazer sem amor, sem coração. Com efeito «o programa do cristão – como escreveu Bento XVI – é “um coração que vê”» [1]. Trata-se de um coração que revela, com o seu palpitar, o nosso verdadeiro ser e, por essa razão, deve ser ouvido. Isto leva o ouvinte a sintonizar-se no mesmo comprimento de onda, chegando ao ponto de sentir no próprio coração também o pulsar do outro. Então pode ter lugar o milagre do encontro, que nos faz olhar uns para os outros com compaixão, acolhendo as fragilidades recíprocas com respeito, em vez de julgar a partir dos boatos semeando discórdia e divisões.
Jesus chama-nos a atenção de que cada árvore se conhece pelo seu fruto (cf. Lc 6, 44). De igual modo «o homem bom, do bom tesouro do seu coração, tira o que é bom; e o mau, do mau tesouro, tira o que é mau; pois a boca fala da abundância do coração» (6, 45). Por conseguinte, para se poder comunicar testemunhando a verdade no amor, é preciso purificar o próprio coração. Só ouvindo e falando com o coração puro é que podemos ver para além das aparências, superando o rumor confuso que, mesmo no campo da informação, não nos ajuda a fazer o discernimento na complexidade do mundo em que vivemos. O apelo para se falar com o coração interpela radicalmente este nosso tempo, tão propenso à indiferença e à indignação, baseada por vezes até na desinformação que falsifica e instrumentaliza a verdade.
Comunicar cordialmente
Comunicar cordialmente quer dizer que a pessoa que nos lê ou escuta é levada a deduzir a nossa participação nas alegrias e receios, nas esperanças e sofrimentos das mulheres e homens do nosso tempo. Quem assim fala, ama o outro, pois preocupa-se com ele e salvaguarda a sua liberdade, sem a violar. Podemos ver este estilo no misterioso Viandante que dialoga com os discípulos a caminho de Emaús depois da tragédia que se consumou no Gólgota. A eles, Jesus ressuscitado fala com o coração, acompanhando com respeito o caminho da sua amargura, propondo-Se e não Se impondo, abrindo-lhes amorosamente a mente à compreensão do sentido mais profundo do sucedido. De facto, eles podem exclamar com alegria que o coração lhes ardia no peito enquanto Ele conversava pelo caminho e lhes explicava as Escrituras (cf. Lc 24, 32).
Num período da história marcado por polarizações e oposições – de que, infelizmente, nem a comunidade eclesial está imune – o empenho em prol duma comunicação «de coração e braços abertos» não diz respeito exclusivamente aos agentes da informação, mas é responsabilidade de cada um. Todos somos chamados a procurar a verdade e a dizê-la, fazendo-o com amor. De modo particular nós, cristãos, somos exortados a guardar continuamente a língua do mal (cf. Sl 34, 14), pois com ela – como ensina a Escritura – podemos bendizer o Senhor e amaldiçoar os homens feitos à semelhança de Deus (cf. Tg 3, 9). Da nossa boca, não deveriam sair palavras más, «mas apenas a que for boa, que edifique, sempre que necessário, para que seja uma graça para aqueles que a escutam» (Ef 4, 29).
Por vezes, o falar amável abre uma brecha até nos corações mais endurecidos. Encontramos vestígios disto na própria literatura; penso naquela página memorável do cap. XXI do livro Promessi Sposi, onde Luzia fala com o coração ao Inominável até que este, desarmado e atormentado por uma benéfica crise interior, cede à força gentil do amor. Experimentamo-lo na convivência social, onde a gentileza não é questão apenas de «etiqueta», mas um verdadeiro antídoto contra a crueldade, que pode, infelizmente, envenenar os corações e intoxicar as relações. Precisamos daquele falar amável no âmbito dos mass media, para que a comunicação não fomente uma aversão que exaspere, gere ódio e conduza ao confronto, mas ajude as pessoas a refletir calmamente, a decifrar com espírito crítico e sempre respeitoso a realidade onde vivem.
A comunicação de coração a coração: «Basta amar bem para dizer bem»
Um dos exemplos mais luminosos e, ainda hoje, fascinantes deste «falar com o coração» temo-lo em São Francisco de Sales, Doutor da Igreja, a quem dediquei recentemente a Carta Apostólica Totum amoris est, nos 400 anos da sua morte. A par deste aniversário importante e relacionado com a mesma circunstância, apraz-me recordar outro que se celebra neste ano de 2023: o centenário da sua proclamação como padroeiro dos jornalistas católicos, feita por Pio XI com a Encíclica Rerum omnium perturbationem. Mente brilhante, escritor fecundo, teólogo de grande profundidade, Francisco de Sales foi bispo de Genebra no início do século XVII, em anos difíceis marcados por animadas disputas com os calvinistas. A sua mansidão, humanidade e predisposição a dialogar pacientemente com todos, e de modo especial com quem se lhe opunha, fizeram dele uma extraordinária testemunha do amor misericordioso de Deus. Dele se pode dizer que as suas «palavras amáveis multiplicam os amigos, a linguagem afável atrai muitas respostas agradáveis» ( Sir 6, 5). Aliás uma das suas afirmações mais célebres – «o coração fala ao coração» – inspirou gerações de fiéis, entre os quais se conta São John Henry Newman que a escolheu para seu lema: Cor ad cor loquitur. «Basta amar bem para dizer bem»: constituía uma das suas convicções. Isto prova como, para ele, a comunicação nunca deveria reduzir-se a um artifício, a uma estratégia de marketing – diríamos nós hoje –, mas era o reflexo do íntimo, a superfície visível dum núcleo de amor invisível aos olhos. Para São Francisco de Sales, precisamente «no coração e através do coração é que se realiza aquele subtil e intenso processo unitário em virtude do qual o homem reconhece a Deus» [2]. «Amando bem», São Francisco conseguiu comunicar com o surdo-mudo Martinho tornando-se seu amigo, e daí ser recordado também como protetor das pessoas com deficiências comunicativas.
É a partir deste «critério do amor» que o santo bispo de Genebra nos recorda, através dos seus escritos e do próprio testemunho de vida, que «somos aquilo que comunicamos»: uma lição contracorrente hoje, num tempo em que, como experimentamos particularmente nas redes sociais, a comunicação é muitas vezes instrumentalizada para que o mundo nos veja, não por aquilo que somos, mas como desejaríamos ser. São Francisco de Sales difundiu em grande número cópias dos seus escritos na comunidade de Genebra. Esta intuição «jornalística» valeu-lhe uma fama que superou rapidamente o perímetro da sua diocese e perdura ainda nos nossos dias. Como observou São Paulo VI, os seus escritos suscitam «uma leitura sumamente agradável, instrutiva e estimulante» [3]. Pensando no atual panorama da comunicação, não são estas precisamente as caraterísticas de que se deveriam revestir um artigo, uma reportagem, um serviço radiotelevisivo ou uma mensagem nas redes sociais? Possam os agentes da comunicação sentir-se inspirados por este Santo da ternura, procurando e narrando a verdade com coragem e liberdade, mas rejeitando a tentação de usar expressões sensacionalistas e agressivas.
Falar com o coração no processo sinodal
Como já tive oportunidade de salientar, «também na Igreja há grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. É o dom mais precioso e profícuo que podemos oferecer uns aos outros» [4]. Duma escuta sem preconceitos, atenta e disponível, nasce um falar segundo o estilo de Deus, que se sustenta de proximidade, compaixão e ternura. Na Igreja, temos urgente necessidade duma comunicação que inflame os corações, seja bálsamo nas feridas e ilumine o caminho dos irmãos e irmãs. Sonho uma comunicação eclesial que saiba deixar-se guiar pelo Espírito Santo, gentil e ao mesmo tempo profética, capaz de encontrar novas formas e modalidades para o anúncio maravilhoso que é chamada a proclamar no terceiro milénio. Uma comunicação que coloque no centro a relação com Deus e com o próximo, especialmente o mais necessitado, e esteja mais preocupada em acender o fogo da fé do que em preservar as cinzas duma identidade autorreferencial. Uma comunicação, cujas bases sejam a humildade no escutar e o desassombro no falar e que nunca separe a verdade do amor.
Desarmar os ânimos promovendo uma linguagem de paz
«A língua branda pode até quebrar ossos»: lê-se no livro dos Provérbios (25, 15). Hoje é tão necessário falar com o coração para promover uma cultura de paz, onde há guerra; para abrir sendas que permitam o diálogo e a reconciliação, onde campeiam o ódio e a inimizade. No dramático contexto de conflito global que estamos a viver, urge assegurar uma comunicação não hostil. É necessário vencer «o hábito de denegrir rapidamente o adversário, aplicando-lhe atributos humilhantes, em vez de se enfrentarem num diálogo aberto e respeitoso» [5]. Precisamos de comunicadores prontos a dialogar, ocupados na promoção dum desarmamento integral e empenhados em desmantelar a psicose bélica que se aninha nos nossos corações, como exortava profeticamente São João XXIII na Encíclica Pacem in terris: «a verdadeira paz entre os povos não se baseia em tal equilíbrio [de armamentos], mas sim e exclusivamente na confiança mútua» (n.º 113). Uma confiança que precisa de comunicadores não postos à defesa, mas ousados e criativos, prontos a arriscar na procura dum terreno comum onde encontrar-se. Também agora, como há 60 anos, a humanidade vive uma hora escura temendo uma escalada bélica, que deve ser travada o mais depressa possível, inclusivamente em termos de comunicação. Fica-se apavorado ao ouvir com quanta facilidade se pronunciam palavras que invocam a destruição de povos e territórios; palavras que, infelizmente, se convertem muitas vezes em ações bélicas de celerada violência. Por isso mesmo há que rejeitar toda a retórica belicista, assim como toda a forma de propaganda que manipula a verdade, deturpando-a com finalidades ideológicas. Em vez disso seja promovida, a todos os níveis, uma comunicação que ajude a criar as condições para se resolverem as controvérsias entre os povos.
Como cristãos, sabemos que é precisamente na conversão do coração que se decide o destino da paz, pois o vírus da guerra provém do íntimo do coração humano [6]. Do coração brotam as palavras certas para dissipar as sombras dum mundo fechado e dividido e construir uma civilização melhor do que aquela que recebemos. É um esforço que é exigido a todos e cada um de nós, mas faz apelo de modo particular ao sentido de responsabilidade dos agentes da comunicação a fim de realizarem a própria profissão como uma missão.
Que o Senhor Jesus, Palavra pura que brota do coração do Pai, nos ajude a tornar a nossa comunicação livre, limpa e cordial.
Que o Senhor Jesus, Palavra que Se fez carne, nos ajude a colocar-nos à escuta do palpitar dos corações, para nos reconhecermos como irmãos e irmãs e desativarmos a hostilidade que divide.
Que o Senhor Jesus, Palavra de verdade e caridade, nos ajude a dizer a verdade no amor, para nos sentirmos guardiões uns dos outros.
Roma – São João de Latrão, na Memória de São Francisco de Sales, 24 de janeiro de 2023.