IV DOMINGO DE PÁSCOA - A

Temas

de

fundo

1ª leitura (Act 2,14a.36-41):  De pé, acompanhado pelos onze, Pedro ergueu a voz e dirigiu estas palavras (à multidão): «Saiba toda a casa de Israel, com absoluta certeza, que Deus estabeleceu como Senhor e Messias esse Jesus que vós crucificastes». Ao ouvir isto, as pessoas ficaram muito emocionadas e perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos: «Que devemos fazer, irmãos?». Pedro respondeu-lhes: «Convertei-vos e cada um peça o batismo em nome de Jesus Cristo, para obter o perdão dos pecados. Recebereis, então, o Espírito Santo. É que a promessa de Deus é para vós, para os vossos filhos e para todos os que estão longe: todos os que o Senhor, nosso Deus, quiser chamar». Pedro exortava-os com estas e muitas outras palavras e dizia-lhes: «Salvai-vos desta geração perversa». Então, os que aceitaram a sua palavra receberam o baptismo e, naquele dia, juntaram-se a eles cerca de três mil pessoas.

 * A promessa de Deus é para vós.

    Esta leitura é a continuação do trecho do domingo passado e que se refere ao primeiro testemunho que os apóstolos - nomeadamente Simão Pedro - dão de Jesus depois de terem sido fortificados com o fogo do Espírito Santo. S. Pedro é apresentado a falar à multidão com a intenção de explicar o que, entretanto, se tinha passado com Jesus de Nazaré. Agora, o que mais interessa realçar, neste texto, é que não me parece tanto o saber se S. Lucas reproduz as exatas palavras que Pedro terá pronunciado nesse dia, quanto o conteúdo da mensagem, que, para ser efetiva, se deve traduzir em atitudes concretas, como, por exemplo, a conversão e o batismo em nome de Jesus. Que haja «acrescentos» do autor dos Atos não é nada de estranhar; e o sinal mais evidente disso é ele fazer com que Pedro refira explicitamente que a «promessa é para vós, para os vossos filhos e para todos os que estão longe (ou seja, os não judeus ou pagãos)», enfim, todos os que o Senhor quiser chamar. Ora, tendo em consideração que os Atos foram escritos por volta do ano 80, é compreensível que Lucas tenha tido oportunidade e coragem para fazer algumas «adaptações» e aplicações práticas de maneira a tornar a sua mensagem realmente universal e «católica».

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 

2ª leitura (1Pe 2,20b-25):  Se, por fazer o bem, suportardes com paciência o sofrimento, isso será agradável a Deus. Foi para isso que fostes chamados. Também Cristo padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos. Ele não cometeu nenhum pecado nem ninguém ouviu da sua boca nenhuma mentira. Quando era insultado, não respondia com insultos; quando era maltratado, não ameaçava vingança, mas punha a sua confiança naquele que julga com justiça. Ele carregou com os nossos pecados no seu corpo, pela cruz, para que nós morrêssemos para o pecado e vivêssemos para a justiça. Foi pelas suas chagas que fostes curados. Com efeito, vós éreis ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guardião das vossas almas.

* Voltastes ao pastor das vossas almas.

   Suponho que esta passagem da primeira Carta de S. Pedro terá sido escolhida para este domingo sobretudo por causa da referência que é feita ao «pastor e guardião das vossas almas». Se é essa a ideia, então fica assim relacionada com o texto evangélico (que no IV Domingo da Páscoa é sempre o do chamado «Bom Pastor»). No entanto, S. Pedro fala também doutras coisas. Com efeito, não me parece secundário o conselho que ele dá sobre fazer o bem; sobre a necessidade de suportar com paciência o sofrimento, no seguimento do próprio Jesus Cristo, que, pelas suas chagas, nos curou, sem se queixar nem ameaçar vinganças. Não sei até que ponto é legítima a «adaptação», mas eu permito-me sugerir que os que realmente queiram ser bons pastores para com as ovelhas desgarradas não deverão temer nem insultos, nem maus tratos, mas devem pôr a sua confiança apenas naquele que julga com justiça.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 

Evangelho (Jo 10,1-10):  Digo-vos a verdade: quem não entra para o redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lado, é um ladrão e salteador. Mas quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o porteiro abre a porta; e as ovelhas escutam a sua voz, quando ele chama por elas uma a uma pelos seus nomes e as faz sair. Depois de tirar todas as que são suas, vai à frente delas. As ovelhas seguem-no, porque conhecem a sua voz. Mas, se é um estranho, nunca o seguem; antes pelo contrário, fogem dele, porque não reconhecem a voz de estranhos. Jesus contou esta parábola, mas não compreenderam o que dizia. Então Jesus retomou a palavra: «Em verdade, em verdade vos digo: Eu sou a porta das ovelhas. Os que vieram antes de mim são ladrões e salteadores, mas as ovelhas não lhes deram atenção. Eu sou a porta. Quem entrar por mim estará salvo: há-de entrar e sair e encontrará pastagem. O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância». 

 * Eu sou a porta das ovelhas.

    Proclamando-se a porta das ovelhas, em contraposição com aqueles que não entram pela porta e, que por isso mesmo, são ladrões, Jesus, com uma imagem (parábola) com sabor a alegoria, como que «obriga» os seus ouvintes a tirar a conclusão de que Ele se revela como ponto de referência: Ele é a porta da salvação e os outros não. Mas os ouvintes nem mesmo assim compreendem. Contra os falsos pastores (de que fala, por exemplo, Ez 34,1-10), Ele reivindica para si mesmo o título e a dignidade de único pastor, capaz de conduzir o rebanho para o autêntico redil. Aplicando esta visão aos «pastores do rebanho de Deus» instaurado por Cristo, a conclusão a tirar é que, sempre que é proposta uma porta diferente de Jesus, se está a ser como que traidor do rebanho. Por isso, o único ponto de referência que temos que propor é Jesus. 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *   Deus         constitui Senhor e Messias esse Jesus 

      que vós crucificastes.

 

 *   Andáveis errantes como ovelhas 

      sem pastor.

 

 *   Eu sou a porta 

      do rebanho.

EU VIM

PARA QUE TENHAM

A VIDA

E A TENHAM

EM

ABUNDÂNCIA.

 

  • A imagem do pastor e do rebanho

O IV domingo da Páscoa é também designado por «Domingo do Bom Pastor», porque, em cada um dos três ciclos do ano litúrgico, é retomado o capítulo 10º do Evangelho de S. João, que trata precisamente do assunto em questão. A esta circunstância não é igualmente alheia (antes pelo contrário) a iniciativa de associar a este domingo o Dia Mundial das Vocações, instituído por vontade do papa Paulo VI em 1963.

 

A imagem do pastor que guia as ovelhas era familiar em Israel e outros povos vizinhos. Essa imagem para exprimir o Deus bíblico é originária da civilização agrícola oriental, onde o pastor tinha naturalmente um papel importante. Não porque esse papel e essa «profissão» fosse em si muito respeitada, que o não era (antes pelo contrário), mas porque se tratava de uma imagem que era facilmente compreendida por toda a gente, e particularmente pelos chefes religiosos, que «ditavam lei» no tempo de Jesus. E acho importante este pormenor para compreender melhor todo o texto de João em referência.

 

A Bíblia respira, digamos assim, esse ambiente da pastorícia, sobretudo no chamado ciclo dos Patriarcas (cf. Gn cc. 12-50). Seja como for, a função de pastor, na Bíblia, não diz respeito apenas à «civilização» pastoril. Ela contém em si uma riqueza de imagens e de simbolismos que terão enorme repercussão em toda a histórica bíblica e evangélica. A essa imagem estão associadas outras de importância relevante: a procura da água; as noites passadas à luz do céu estrelado; caminhar/peregrinar dum lado para o outro a conduzir o rebanho; a vida comum entre pastor e rebanho; os pastos abundantes ou a falta deles...

 

Mais tarde, a imagem de rebanho aplicar-se-á, dum modo particular, ao Povo de Israel, que até tem como chefes pessoas que, «por acaso», foram pastores verdadeiros, como, por exemplo, Moisés e o Rei David. Que a imagem e o título de pastor sejam aplicados também ao Messias, descendente de David, não deve causar, portanto, admiração. Aliás - devo acrescentar - é uma representação que ainda nos dias de hoje é compreendida e aceite com facilidade, mesmo por aqueles (incluindo habitantes da cidade) que nunca tiveram essa experiência pessoal. O seu simbolismo e significado parecem evidentes.

 

  • O Bom Pastor e os «pastores»

É talvez por isso que o trecho de João sobre o Bom Pastor, apesar da multiplicidade de pormenores, não apresenta qualquer dificuldade de interpretação no seu sentido global; mesmo para os que não estejam muito familiarizados com a realidade da vida pastoril. Jesus é o pastor segundo o coração de Deus, é o pastor anunciado pelos profetas. Ele guia os seus «cordeiros» com a autoridade de quem ama e dá a vida por eles. É claro que a imagem se aplica também aos «pastores» atuais. Os pastores da Igreja são chamados a continuar esta missão de guias dos seus irmãos na fé, seguindo esse modelo e pondo em prática o estilo do Bom Pastor.

 

À semelhança de Cristo, que se substitui ao próprio rebanho no momento do sacrifício, aceitando o papel de cordeiro que morre pelos pecados do seu povo, assim o mistério dos «pastores» da Igreja tem que ser visto em chave evangélica de serviço e não de honra e privilégio: o papa como mestre e garante da fé e centro de unidade e coesão, e não como chefe político ou monarca absoluto; os bispos como mestres e guias da família diocesana e não como dignitários ou altos funcionários do espírito; e os sacerdotes como pastores que guiam e animam a comunidade cristã com dedicação, tacto e desvelo, e não como uma espécie de burocratas e funcionários dos sacramentos.

 

  • «Pastores» e «ovelhas» do Povo de Deus

É uma questão delicada e difícil a das relações entre os pastores e os fiéis do Povo de Deus. É esse o objetivo de todo um tratado teológico (Eclesiologia) dedicado à vida da Igreja. Mas esta não é a sede apropriada para dirimir o assunto. Seja como for, e em jeito de resumo, a Palavra de Deus dá-nos algumas indicações claras quanto à forma como esse relacionamento se deve processar:

 

* Acolhimento sem distinções. O «bom pastor» não acolhe apenas as ovelhas belas e bem nutridas, mas também as enfezadas, as coxas, as doentes. Isso significa acolher os outros com os seus gostos, as suas ideias, a sua ignorância religiosa, os seus limites, as suas provocações, os seus pecados, a sua diversidade. Utilizando a linguagem simbólica, isso significa também ir à procura da ovelha que se tresmalhou, embora tenham que se deixar as outras noventa e nove no redil (cf. Mt 18,12-13).

 

* Conhecimento mútuo. É o que se deduz das palavras evangélicas de hoje que dizem: «Chama pelo nome as suas ovelhas... e elas seguem-no, porque conhecem a sua voz. Mas não seguirão um estranho, porque não conhecem a voz de estranhos». Não pode haver, portanto, autêntico rebanho quando, para o pastor, as ovelhas são anónimas. Pior ainda quando se acha que algumas delas são «ranhosas». Só um conhecimento pessoal permite uma linguagem franca e um diálogo sincero, sem mal-entendidos.

 

* Estreita colaboração. Este aspeto da vida «intra-eclesial» é expresso com bastante precisão por um dos documentos fundamentais do Concílio: «Os pastores reconheçam e promovam a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja, sirvam-se positivamente dos seus prudentes conselhos, confiem-lhes encargos no serviço da Igreja e deixem-lhes liberdade e margem de ação; melhor, encorajem-nos no sentido de tomar iniciativas de tipo pessoal» (cf. LG = Lumen GentiumLuz das Nações, 37).

 

Palavras sapientíssimas herdadas do II Concílio do Vaticano, que, todavia, tantas vezes, pouca repercussão têm na vida prática. Nesse aspeto, muitas «normas» do Concílio estão ainda por passar à prática do dia a dia. Infelizmente, ainda hoje, continua a haver imensas resistências no que se refere a renunciar a certas práticas que vêm de há anos.Enfim, viver o cristianismo da mesma forma que o viveram os primeiros cristãos ou os cristãos da Idade Média poder-se-á considerar fidelidade à Pessoas e à mensagem de Jesus Cristo?

 

  • Pastores e guias dos irmãos

Falar, nos dias de hoje, de «pastores» na Igreja não é fácil, por causa das incrustações históricas que deformaram e falsearam as mentalidades, mesmo entre os fiéis. Os pastores são vistos, infelizmente, ainda em várias partes (felizmente muito menos do que antes), como chefes políticos, como altos dignitários ou como funcionários e burocratas do espírito; quando não são até considerados como «intercessores» junto dos poderosos.

 

Todavia, a autoridade da Igreja (ou, melhor dizendo, dos principais responsáveis pela Igreja) é a que lhe deriva do facto de ser depositária das chaves dum Reino que não é deles nem é deste mundo. Assim sendo, pode-se afirmar que a Igreja não é um absoluto, mas o lugar privilegiado onde, no reino que é este mundo, se começa a construir esse outro Reino que tem o Senhor Ressuscitado como referência e como chefe único e supremo.

 

Nessa linha, mais do que chefes, os pastores devem ser guias na caminhada para o Pai, peregrinos que se juntam a outros peregrinos para fazer propostas que não são as propostas normais dos governantes desta terra e deste mundo, mas que sugerem outra realidade, para além desta realidade; profetas que interpretam os acontecimentos sob uma luz e uma ótica diferentes. A sua «política» de atuação tem que ser, portanto, diferente. Di-lo o próprio Jesus muito melhor do que eu: «Sabeis como os governantes das nações fazem sentir o seu domínio sobre elas e os magnates a sua autoridade. Pois bem, não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo; e quem quiser ser o primeiro, faça-se o escravo de todos. Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos» (Mc 10,42-45). Estes são princípios que dispensam explicações. Mas quão longe se está ainda destes princípios simples!

 

  • Aprender a dizer «sim»

O encontro com o Ressuscitado (ficou dito no comentário do domingo anterior) provoca sempre, implícita ou explicitamente, uma missão. E essa missão pode ser uma missão toda particular; semelhante à missão dos próprios Apóstolos. É verdade que a obrigação de testemunhar a experiência de Cristo Jesus deriva da própria condição de batizado e, por isso, mesmo todo o batizado tem a missão de ser também apóstolo. Mas, quando o Domingo do Bom Pastor foi escolhido para ser também o Dia das Vocações, houve a intenção de falar mais do que simplesmente da vocação fundamental de todo o cristão.

 

Nunca é fácil falar de vocação sacerdotal ou religiosa (vocação de consagração), mas é um tema que não pode ser ignorado quando se comenta o Domingo do Bom Pastor. Hoje em dia, a vocação especial não oferece atrativos de poder, de dinheiro e de «status» social, como eventualmente oferecia em tempos mais recuados. E ainda bem. Isso é sinal de que já foi feito um caminho de purificação importante, porque esses não são motivos válidos.

 

    Nesta reflexão, relativamente ao tema que também se celebra hoje, Dia Mundial das Vocações, para além da respetiva mensagem do Santo Padre que deve ser lida e meditada, limito-me a propor simplesmente o seguinte: «Senhor! Tu és o único que pode satisfazer as minhas aspirações mais profundas. Porque eu fui criado por Ti com aspirações de infinito, pois me fizeste à tua imagem e semelhança, estou pronto e disponível para ir contigo. Aqui estou. Manda-me. Afinal, eu sou teu. E, se sou teu, tens direito ao meu ser. Creio que só Tu me podes dar a felicidade. Confio plenamente no teu projecto a meu respeito. Eu sei que sou fraco, feito a partir do barro da terra. Mas conto com a tua força, que é omnipotente. É tudo. Ponho a minha vida nas tuas mãos para servir os outros...».

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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O 60º DIA MUNDIAL DE ORAÇÃO PELAS VOCAÇÕES

(30 de abril de 2023 - IV Domingo de Páscoa)

 

Vocação: graça e missão

Amados irmãos e irmãs, queridos jovens!

É a sexagésima vez que se celebra o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, instituído por São Paulo VI em 1964, durante o Concílio Ecuménico Vaticano II. Esta providencial iniciativa visa ajudar os membros do Povo de Deus a responder, pessoalmente e em comunidade, à chamada e à missão que o Senhor confia a cada um no mundo de hoje, com as suas feridas e as suas esperanças, os seus desafios e as suas conquistas.

Neste ano, proponho-vos refletir e rezar guiados pelo tema «Vocação: graça e missão». É uma preciosa ocasião para redescobrir, maravilhados, que a chamada do Senhor é graça, dom gratuito e, ao mesmo tempo, é empenho de partir, sair para levar o Evangelho. Somos chamados a uma fé testemunhada, que estreita fortemente o vínculo entre a vida da graça, através dos Sacramentos e da comunhão eclesial, e o apostolado no mundo. Animado pelo Espírito, o cristão deixa-se interpelar pelas periferias existenciais e é sensível aos dramas humanos, tendo sempre bem presente que a missão é obra de Deus e não a realizamos sozinhos, mas em comunhão eclesial, juntamente com os irmãos e irmãs, guiados pelos Pastores. Pois este sempre foi o sonho de Deus: vivermos com Ele em comunhão de amor.

Escolhidos antes da criação do mundo

O apóstolo Paulo abre-nos de par em par um horizonte maravilhoso: Deus Pai «escolheu-nos em Cristo antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença, no amor. Predestinou-nos para sermos adotados como seus filhos por meio de Jesus Cristo, de acordo com o beneplácito da sua vontade» (Ef 1, 4-5). São palavras que nos permitem ver a vida no seu sentido pleno: Deus «concebe-nos» à sua imagem e semelhança e quer-nos seus filhos: fomos criados pelo Amor, por amor e com amor, e somos feitos para amar.

No decurso da nossa vida, esta chamada, inscrita nas fibras do nosso ser e portadora do segredo da felicidade, alcança-nos, pela ação do Espírito Santo, de maneira sempre nova, ilumina a nossa inteligência, infunde vigor na vontade, enche-nos de admiração e faz arder o nosso coração. Às vezes irrompe até de forma inesperada. Assim aconteceu comigo em 21 de setembro de 1953, quando, a caminho da festa anual do estudante, senti o impulso de entrar na igreja e me confessar. Aquele dia mudou a minha vida, dando-lhe uma fisionomia que dura até hoje. Mas a chamada divina ao dom de nós mesmos abre estrada gradualmente, através dum caminho: em contacto com uma situação de pobreza, num momento de oração, graças a um claro testemunho do Evangelho, a uma leitura que nos abre a mente, quando ouvimos uma Palavra de Deus e a sentimos dirigida precisamente a nós, no conselho dum irmão ou uma irmã que nos acompanha, num período de doença ou de luto... A fantasia de Deus que nos chama é infinita.

E a sua iniciativa e dom gratuito esperam a nossa resposta. A vocação é uma «combinação entre a escolha divina e a liberdade humana», [1] uma relação dinâmica e estimulante que tem como interlocutores Deus e o coração humano. Assim, o dom da vocação é como uma semente divina que germina no terreno da nossa vida, abre-nos a Deus e abre-nos aos outros para partilhar com eles o tesouro encontrado. Esta é a estrutura fundamental daquilo que entendemos por vocação: Deus chama amando, e nós, agradecidos, respondemos amando. Descobrimo-nos como filhos e filhas amados pelo mesmo Pai, e reconhecemo-nos como irmãos e irmãs entre nós. Santa Teresa do Menino Jesus, quando «viu» com clareza esta realidade, exclamou: «Encontrei finalmente a minha vocação! A minha vocação é o amor! Sim, encontrei o meu lugar na Igreja (…): no coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o amor». [2]

Eu sou uma missão nesta terra

Como dissemos, a chamada de Deus inclui o envio. Não há vocação sem missão. E não há felicidade e plena autorrealização sem oferecer aos outros a vida nova que encontramos. A chamada divina ao amor é uma experiência que não se pode calar. «Ai de mim, se eu não evangelizar!»: exclamava São Paulo (1 Cor 9, 16). E a I Carta de João começa assim: «O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida [feito carne] (…), isso vos anunciamos (…) para que a nossa alegria seja completa» (1, 1.3.4).

Há cinco anos, na exortação apostólica Gaudete et exsultate, dizia eu a cada batizado e batizada: «Também tu precisas de conceber a totalidade da tua vida como uma missão» (n. 23). Sim, porque cada um de nós, sem exceção, pode dizer: «Eu sou uma missão nesta terra e para isso estou neste mundo» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 273).

A missão comum a todos nós, cristãos, é testemunhar com alegria, em cada situação, por atitudes e palavras, aquilo que experimentamos estando com Jesus e na sua comunidade, que é a Igreja. E traduz-se em obras de misericórdia materiais e espirituais, num estilo de vida acolhedor e sereno, capaz de proximidade, compaixão e ternura, em contracorrente à cultura do descarte e da indiferença. Fazer-nos próximo como o bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37) permite-nos compreender o «núcleo» da vocação cristã: imitar Jesus Cristo que veio para servir e não para ser servido (cf. Mc 10, 45).

Esta ação missionária não nasce simplesmente das nossas capacidades, intenções ou projetos, nem da nossa vontade nem mesmo do nosso esforço de praticar as virtudes, mas duma profunda experiência com Jesus. Só assim podemos tornar-nos testemunhas de Alguém, duma Vida; e é isso que nos torna «apóstolos». Reconhecemo-nos então «como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 273).

Temos um ícone evangélico desta experiência nos dois discípulos de Emaús. Estes, depois do encontro com Jesus ressuscitado, confidenciavam um ao outro: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» ( Lc 24, 32). Podemos ver neles o que significa ter «corações ardentes e pés ao caminho». [3] É o que desejo também para a próxima Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, que aguardo com alegria e que tem como lema: «Maria levantou-se e partiu apressadamente» ( Lc 1, 39). Que cada um e cada uma se sinta chamado a levantar-se e partir apressadamente, com coração ardente!

Chamados juntos: convocados

O evangelista Marcos narra o momento em que Jesus chamou para junto d’Ele doze discípulos, cada um pelo próprio nome. Estabeleceu-os para estarem com Ele e os enviar a pregar, curar as doenças e expulsar os demónios (cf. Mc 3, 13-15). Assim o Senhor lança as bases da sua nova Comunidade. Os Doze eram pessoas de ambientes sociais e profissões diferentes, não pertencentes às categorias mais importantes. Os Evangelhos referem ainda outras chamadas, como a dos setenta e dois discípulos que Jesus envia dois a dois (cf. Lc 10, 1).

O termo Igreja deriva precisamente de Ekklesía, palavra grega que significa assembleia de pessoas chamadas, convocadas, para formar a comunidade dos discípulos e discípulas missionários de Jesus Cristo, comprometendo-se a viver entre si o seu amor (cf. Jo 13, 34; 15, 12) e a espalhá-lo no meio de todos, para que venha o Reino de Deus.

Na Igreja, somos todos servos e servas, segundo diversas vocações, carismas e ministérios. A vocação ao dom de si próprio no amor, comum a todos, desenvolve-se e concretiza-se na vida dos cristãos leigos e leigas, empenhados a construir a família como uma pequena igreja doméstica e a renovar os diversos ambientes da sociedade com o fermento do Evangelho; no testemunho das consagradas e consagrados, entregues totalmente a Deus pelos irmãos e irmãs como profecia do Reino de Deus; nos ministros ordenados (diáconos, presbíteros, bispos) colocados ao serviço da Palavra, da oração e da comunhão do Povo santo de Deus. Só na relação com todas as outras é que cada vocação específica na Igreja se revela plenamente com a sua própria verdade e riqueza. Neste sentido, a Igreja é uma sinfonia vocacional, com todas as vocações unidas e distintas em harmonia e juntas «em saída» para irradiar no mundo a vida nova do Reino de Deus.

Graça e missão: dom e tarefa

Amados irmãos e irmãs, a vocação é dom e tarefa, fonte de vida nova e de verdadeira alegria. Que as iniciativas de oração e animação pastoral ligadas a este Dia reforcem a sensibilidade vocacional nas nossas famílias, nas paróquias, nas comunidades de vida consagrada, nas associações e nos movimentos eclesiais. Que o Espírito do Ressuscitado nos faça sair da apatia e nos dê simpatia e empatia, para vivermos cada dia regenerados como filhos de Deus-Amor (cf. 1 Jo 4, 16) e sermos, por nossa vez, geradores no amor: capazes de levar a vida a todos os lugares, especialmente onde há exclusão e exploração, indigência e morte. Que deste modo se alarguem os espaços de amor [4] e Deus reine cada vez mais neste mundo.

Acompanhe-nos neste caminho a oração composta por São Paulo VI para o 1º Dia Mundial das Vocações (11 de abril de 1964):

«Ó Jesus, divino Pastor das almas, que chamastes os Apóstolos para fazer deles pescadores de homens, continuai a atrair para Vós almas ardentes e generosas de jovens, a fim de fazer deles vossos seguidores e vossos ministros; tornai-os participantes da vossa sede de redenção universal, (…) abri-lhes os horizontes do mundo inteiro, (…) para que, respondendo à vossa chamada, prolonguem aqui na terra a vossa missão, edifiquem o vosso Corpo místico, que é a Igreja, e sejam “sal da terra”, “luz do mundo” (Mt 5, 13)».

Que a Virgem Maria vos acompanhe e proteja. Com a minha bênção.

Roma, São João de Latrão, no IV Domingo de Páscoa, 30 de abril de 2023.

Francisco

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Oração da Semana das Vocações 2023


 

Oração da Semana das Vocações 2023

Senhor Jesus, filho de David,
Tu que derramas a Tua luz sobre nós,
continua a inspirar-nos com a Tua bondade e misericórdia,
para que possamos discernir a Tua vontade nas nossas vidas.
Que possamos ouvir o Teu chamamento,
seja para o sacerdócio, para a vida consagrada,
o matrimónio, o serviço aos necessitados ou em qualquer outra vocação, seguindo sempre o caminho que leva a Ti.

Senhor Jesus,
nós Te pedimos a coragem e a graça
de não nos deixarmos tentar pelo supérfluo.
Ajuda-nos a escutar a Tua voz,
a partir apressadamente como Maria,
e a ouvir-te serenamente como Marta.
Que o nosso “Sim” seja sempre um ato de amor e de entrega total a Ti.

Senhor Jesus,
nós Te rogamos por todos os jovens.
Abençoa-os no discernimento da sua vocação,
para que possam crescer em sabedoria, santidade e alegria.
Guia-os nos momentos de provação,
para que a sua vida seja sempre um reflexo da Tua luz.
Maria, Senhora nossa, nossa Mãe,
ilumina-nos com a Tua prontidão,
acompanha-nos nas escolhas e decisões do dia-a-dia,
para que todos os nossos passos, sejam para maior glória do Teu filho.
Que, como Tu, saibamos guardar tudo nos nossos corações,
alcançando uma vida plena.

Senhor Jesus, filho de Maria,
concede-nos a alegria de saborear a Tua presença constante,
de valorizar cada momento que nos dás,
e de aceitar o que esperas de cada um.
Ajuda-nos a trazer-Te dentro,
a sentir o Teu amor na nossa vocação,
e assim vivermos a entrega completa aos Teus propósitos.

Ámen