INTRODUÇÃO
- A comunicação humana em retrospectiva
- A linguagem sonora e visual
- O cinema como fenómeno social
I. AS FASES DA REALIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA
- O que é um filme/o cinema?
- Fase preparatória/literária
* Argumento ou história
* Tratamento artístico
* Cenografia (descrição das cenas)
- Fase produtiva (filmagem propriamente dita)
* Instrumentos materiais
* Os «feitores» e os actores
* Outros elementos do filme
- A gramática do filme/cinema
* O enquadramento
* A distância cinematográfica
* Posição e movimentos da máquina de filmar
* Os efeitos do cinema
II. A MONTAGEM/EDIÇÃO
- O significado das imagens
- A colocação das imagens
- A proporção das imagens
- Um instrumento essencial: a mesa de montagem
III. LEITURA E ANÁLISE DO FILME
- Circunstâncias históricas e sociais
- Lógica/ilógica da acção dramática
- Análise da actuação dos intervenientes
- Debates e técnicas de debate
- Um caso particular: Julieta e Romeu
- Filme: um produto com limites
INTRODUÇÃO
- Algumas ideias sobre comunicação
1.1. Em termos muito simples e segundo a etimologia da palavra, comunicar implica a ideia de «tornar comum» alguma coisa ou conteúdo significativo (ideias, intenções, informações, etc.) a alguém. Essa comunicação pode estabelecer-se de várias maneiras, conforme as circunstâncias e os meios utilizados.
- Essas circunstâncias têm a ver com:
- razões de afinidade entre pessoas;
- distância;
- carácter e feitio dos interlocutores;
- cultura e condições sociais e políticas, etc.
- Por seu lado, os meios – materiais e tecnológicos – dependem do tempo em que nos situamos e da tecnologia a que podemos ter acesso.
- Para que a veiculação da comunicação seja possível, as pessoas têm que se servir de alguma coisa; nem que seja de um olhar ou de uma simples careta.
A esse elemento sensível – ou seja, perceptível através dos sentidos – chama-se «sinal». Em palavras muito simples, «sinal» é algo que está em lugar de outra coisa qualquer. Assim, por exemplo, o fumo é «sinal» de que há fogo.
O sinal pode ser constituído por:
- um gesto;
- uma palavra;
- uma figura;
- uma imagem;
- um som
- (ou, mais provavelmente, um conjunto de gestos, palavras, figuras, imagens, sons).
- Ao significado/ideia transmitido por esse conjunto de elementos sensíveis ou «sinais» dá-se o nome de «mensagem». Assim, uma frase escrita com sentido completo é um exemplo de «mensagem verbal».
Mas, por vezes, também um único sinal pode ter um sentido completo. Por exemplo, na sinalética das estradas, todos entendem perfeitamente a mensagem dum círculo todo vermelho com uma barra horizontal branca ao meio: significa proibição de passagem.
1.4. Para haver mensagem, são necessários, pois, pelo menos três elementos: quem produz o sinal (emitente), o próprio sinal e quem lê/compreende ou «descodifica» esse mesmo sinal (ou destinatário). Assim, numa conversa ordinária entre duas pessoas, os sinais são as palavras e os gestos, e o emitente e o destinatário são, cada uma por sua vez, as pessoas que estão a conversar. Isso pode ser descrito assim:
EMITENTE ► SINAL ► DESTINATÁRIO
O diálogo entre duas pessoas é tecnicamente o processo mais simples de comunicação (comunicação interpessoal). Mas há muitos outros tipos de comunicação bastante mais elaborados e complexos.
Quanto mais complexos forem os meios utilizados, mais difícil se torna ao destinatário entender/descodificar o que o «emitente» quer dizer, porque o «destinatário» nem sempre está preparado para isso; nem sempre está na posse dos códigos de interpretação. É, tantas vezes, o caso, por exemplo, da televisão e do cinema, que os espectadores normais não estão preparados para entender plenamente.
De qualquer forma, mesmo a comunicação mais simples não é assim tão simples como pode parecer. Porquê? Porque é preciso estar atento a vários pormenores ao mesmo tempo; pelo menos ao seguinte: quem comunica (emitente) com que intenção comunica? Que meios utiliza? Quem recebe a comunicação (destinatário), em que condições está (está bem disposto? mal disposto? está a fazer qualquer outra coisa? está distraído ou atento?). De todas estas condições dependem os efeitos.
Por isso, a fórmula acima descrita poderia ser também assim completada:
EMITENTE ► SINAL ► MEIO UTILIZADO ► DESTINATÁRIO ►EM QUE CONDIÇÕES ► COM QUE EFEITOS
A comunicação mais perfeita é aquela em que o Emitente, num segundo tempo, se torna também Destinatário, porque este por sua vez responde (emite) ao primeiro. Então, nesse caso, o esquema seria o seguinte:
EMITENTE ► SINAL ► DESTINATÁRIO/EMITENTE ► SINAL ► EMITENTE...etc.
- A linguagem sonora e visual
Como ficou dito, comunica-se não só por palavras, mas também por meio de gestos, imagens, sinais, sons, efeitos, etc. Por vezes, como é óbvio, até a própria palavra pode ser visual quando é escrita.
Por outro lado, quem comunica tem a tendência natural para utilizar ao mesmo tempo todos os seus sentidos. Por isso, com frequência, quem fala, independentemente de quem está a ouvir, acompanha as palavras (sons) com outros sinais corporais (gestos).
O exemplo prático mais típico e habitual talvez seja o acto de telefonar. Quantas vezes, se vê alguém numa cabina telefónica - ou diante do telemóvel - a fazer gestos que o interlocutor obviamente não tem nenhuma possibilidade de ver! Mas, pelos vistos, até isso vai mudar! E já mudou, porque hoje em dia já é possível estar a telefonar vendo o outro no «écran»...
- Quando, porém, os sinais sonoros ou visuais passam através dum meio técnico, já podem ser «isolados». Assim, por exemplo, uma palavra escrita num papel é um sinal com um determinado sentido e mais nada (quer dizer, não contém mais nenhum elemento significante, como o gesto, por exemplo).
Do mesmo modo, uma voz ou uma canção gravada numa cassete ou num CD ou numa «pen» é só isso e mais nada. Esta é, todavia, apenas uma constatação teórica. Na prática, as coisas não são bem assim. É que, na verdade, não se pode impedir o destinatário (quem lê ou quem escuta) de imaginar outros elementos (como, por exemplo, os gestos de quem escreve ou fala; ou mesmo o «espectáculo» do cantor que interpreta a sua canção favorita).
- Se há tipos de comunicação a que podemos chamar mais visuais (por exemplo, a escrita, a pintura, a fotografia), e outros mais sonoros (a palavra, o discurso, a música, os rumores), há, no entanto, tipos de comunicação que têm os elementos sonoro e visual misturados. Com razão se chamam, por isso mesmo, audiovisuais. Os exemplos mais típicos de meios audiovisuais, e que já fazem parte dos nossos hábitos diários, são o cinema e a televisão. Estes utilizam simultaneamente imagens em movimento, imagens fixas, a palavra escrita e falada, os sons, os rumores... São, pois, linguagens compostas. O formato da Internet não é senão apenas mais um formato audiovisual.
3. O cinema como fenómeno social
Depois destes elementos introdutórios, vamos agora limitar a nossa reflexão e análise ao campo do cinema ou «produto fílmico».
3.1. A data de nascimento do cinema é geralmente colocada no dia 28 de Dezembro de 1895. Foi nessa noite que os irmãos Augusto e Luís Lumière apresentaram a 35 espectadores, no Boulevard des Capucines, em Paris, onze filmes de menos de 17 metros cada um (o que dava pouco mais de um minuto por filme). Já outros tinham experimentado antes deles, mas o êxito não tinha sido satisfatório.
- Mas os irmãos Lumière limitaram-se a fazer experiências científicas e nunca pensaram em desfrutar este meio de maneira comercial.
Quem, ao contrário, achou que podia tirar vantagens financeiras foi um outro francês, George Méliès, que trabalhava num circo e que, pouco a pouco, foi transformando o local do circo em local de cinema, onde projectava os filmes por si realizados.
- Não vamos fazer aqui a história do cinema (isso é uma outra disciplina diferente). Mas a verdade é que, depois dessas experiências, o cinema se difundiu rapidamente na Europa e na América. E hoje, depois de pouco mais de um século, é uma das indústrias mais florescentes que há no mundo. Praticamente não há recanto nenhum da terra em que as pessoas não saibam o que é o cinema.
* Uma coisa que os entendidos em cinema começaram logo a perguntar-se foi a seguinte: o cinema é ou não o espelho da vida? Quer dizer, o cinema é sempre a documentação daquilo que realmente acontece? Bom, até hoje, ainda não há uma resposta consensual e satisfatória, porque há também muitos autores que defendem que o cinema não só é o espelho da realidade, como é também um meio que transforma a realidade; como, de resto, sucede com qualquer actividade humana. É essa também a minha opinião. Se tudo o que o homem faz transforma a realidade, porque é que o cinema não havia de a transformar também?
- FASES DA REALIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA
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- O que é um filme/o cinema?
- O filme é um objecto simples e misterioso ao mesmo tempo. É simples porque está ali em forma de milhares e milhares de fotografias impressas quer numa película de várias centenas e centenas de metros quer em formato digital (como acontece agora, graças às novas tecnologias.
Essas fotografias, em cinema, chamam-se também tecnicamente «fotogramas». Portanto, a matéria-prima para a realização dum filme no passado era a película e hoje é o formato digital.
- Sabemos também que, para impressionar a película, era indispensável a luz. Hoje, o assunto põe-se de outra maneira. Mas o que ineterra, neste caso, é saber que as imagens assim consideradas ainda não são um filme. Para isso, é preciso serem projectadas com uma máquina própria chamada projector.
Sendo assim, a obra cinematográfica (filme) é:
«uma história contada com imagens em movimento».
* As imagens, hoje, são acompanhadas de sons
(vozes, músicas, rumores, efeitos...).
* Então, para que haja realmente filme, são precisos, pois, vários elementos. Mas o essencial é o movimento a um ritmo constante (como regra, 24 fotogramas por segundo). Essa é uma regra que, embora de maneira diferente, é também respeitada pela projecção digital.
Seja como for, não basta o movimento. É preciso que os fotogramas, quer em película quer em formato digital, sejam colocados ou filmados e montados segundo uma certa ordem; senão, embora haja movimento, não se entende nada, porque não há fio condutor. Ora bem, da qualidade das imagens e da forma como elas são colocadas umas atrás das outras depende se o filme tem mais ou menos valor.
É por isso que um objecto, que parece tão simples se virmos só a película em caixas, se torna tão complexo se examinarmos os seus resultados.
- A fase preparatória (literária)
Quando se quer fazer bem alguma coisa, é necessário prepará-la com cuidado, traçando um plano. Ora bem, acontece o mesmo quando se quer fazer um filme. A realização dum filme não começa, pois, no momento em que se começa a filmar («rodar»), mas muito antes.
Antes de começar propriamente a filmar, há outras fases. Para simplificar, eu diria que é preciso «escrevê-lo» (plano literário) e arranjar dinheiro para o produzir (plano financeiro). Por isso, é necessário o contributo de muita gente.
- A fase de preparação naturalmente será tanto mais complexa quanto mais complicado for o filme.
Assim, por exemplo, um filme como Terminator supostamente exige muito mais dinheiro que, por exemplo, The Mission. Mas, por sua vez, este último exige um texto muito mais rico e elaborado; por isso, nesse aspecto, é mais difícil que o primeiro. Mas só nesse aspecto, porque, Terminator é muito mais complicado, por exemplo, no que se refere aos efeitos. Porque é que este custou mais que The Mission? Porque os actores pediram, por exemplo, um «caché» maior e sobretudo porque todo ele é feito, do princípio ao fim, de efeitos especiais. Ora bem, estas coisas têm que ser todas bem pensadas, antes de começar as filmagens.
A fase preparatória/literária inclui várias etapas:___________
2.2.1. O argumento ou história
A primeira etapa do processo de fazer um filme é a «história». Quando se quer usar uma história ou um romance para fazer um filme, tem que se ver se realmente tem interesse para um grande número de pessoas e também se pode ou não ser contada por imagens em movimento.
Por exemplo, uma história em que se pronunciam continuamente palavras e palavras e mais palavras e onde há muito pouca ou nenhuma acção, dificilmente serve para fazer um filme, embora possa ser uma bela peça literária. Nesse caso, dará um óptimo texto para o teatro e poderá ser uma péssima base para um filme.
A história, como se disse, pode ser tirada dum romance (o que acontece com muita frequência) ou então ser escrita de propósito. Isso sucede quando o produtor ou o realizador do filme têm uma ideia e pedem a alguém para a escrever em forma de história ou romance. Mas, claro, é sempre indispensável ter uma história, seja qual for o género de filme (comédia, drama, ficção, desenhos animados, etc.).
2.2.2. Tratamento artístico e técnico
Mas não basta ter uma história para fazer um filme. É preciso também colocar as muitas cenas da história segundo uma certa ordem. A isso chama-se «tratamento».
Em que consiste o tratamento técnico, que é feito antes de iniciar as filmagens? Consiste em prever, em termos gerais, quantas cenas serão precisas e prever tudo o que acontece em cada uma das cenas que irão ser filmadas. Se quisermos, por exemplo, fazer um filme de duas horas (tempo), temos que prever com antecedência: como deve começar, quais os momentos mais altos (de maior tensão) e qual o final mais eficaz. Para isso, temos que identificar claramente o tema principal, de forma que os secundários estejam sujeitos ao principal.
Por outro lado, para fazer isso, é preciso também determinar o número de cenas com sentido («sequências») e também o material que será preciso para fazer as filmagens. Assim, um filme de 2 horas não pode ter 200 «sequências» de 5 minutos cada uma. Isso daria um filme de 1000 minutos e não de 120. Se, por exemplo, prevemos uma cena de perseguição filmada do alto, temos que poder dispor dum helicóptero (incluindo as despesas de aluguer e com o respectivo pessoal: tudo previsto). E, como estes exemplos, cada um pode imaginar os seus.
2.2.3. Descrição das cenas/sequências (cenografia/guião)
A parte final da parte literária é a «cenografia», que é a descrição pormenorizada, em que deve constar tudo o que se irá passar no filme: acção, emoções, diálogos, sons, efeitos, movimentos da máquina de filmar, ân-gulos de filmagem, trajes dos actores, posições, enfim, tudo.
Isso deve ser pensado de tal maneira que no produto final não haja incongruências evidentes. Para perceber melhor, dêmos um exemplo: vamos supor que se faz um filme passado no ano 1000 a.C.; por exemplo, sobre o rei David. Agora, suponhamos que quem faz o filme se esquece completamente de mandar tirar o relógio de pulso ao protagonista (por exemplo, Richard Gere)... É uma incongruência imperdoável, porque é um erro histórico, visto que não havia relógios de pulso nessa altura...
Claro que as indicações previstas na fase literária não são de ferro. São simples indicações e mais nada. Se fossem de ferro, o realizador (que é o autor principal do filme) não estava lá a fazer nada. Bastavam os técnicos. Por isso, o realizador tem a possibilidade de modificar as cenas consoante as necessidades e a maneira como ele próprio quer pôr em imagens uma determinada ideia.
Seja como for, para ficarmos com uma ideia geral do que deve estar previamente escrito no «guião» (é assim que se chama o plano final de trabalho do filme) para cada uma das cenas, vejamos a seguinte:
ESCALA DUMA CENOGRAFIA PORMENORIZADA
Nº |
Local |
Parte visual |
Efeitos |
Diálogos |
A.1. |
Dentro de casa - de dia - sala |
O Carlos está sentado à mesa com o Miguel. Logo que ouve barulho vindo da porta, que se abre, olha para Maria (fora de campo). Depois olha para o relógio e levanta-se. A máquina de filmar faz uma panorâmica (PAN) da direita para a esquerda, seguindo Carlos que vai ao encontro de Maria. |
O rumor próprio da porta que se abre e barulho de passos no sobrado |
(Fora de campo): — Está na hora, Carlos! — É verdade: quase me esquecia! |
A.2. |
Mesmo lugar |
Plano americano (ou seja, meia figura) de Maria que faz um gesto com a mão para o Carlos. |
Barulho de pés a mover-se |
— Vamos! |
Estas são pura e simplesmente duas cenas (que poderão demorar, por exemplo, quinze segundos ou menos). Obviamente, para terem sentido, têm que se lhe seguir outras cenas. Pois bem, o conjunto de cenas com um sentido completo chama-se «sequência». A «sequência» é uma unidade narrativa (de tempo, de lugar, de acção). Utilizando a linguagem gramatical com alguma liberdade, podemos dizer que a cena é uma «frase» e a sequência é um «período».
Quando há mudanças ou «cortes» bem nítidos ou então operados através duma «dissolvência» (passagem suave duma acção para outra com a utilização de imagens em negro ou desfocadas ou então com a sobreposição de imagens sobre outras imagens)... quando isso acontece, dá-se, digamos assim, a passagem para um novo «capítulo».
As pessoas hoje já estão tão habituadas a isso que nem sequer são capazes de imaginar as voltas que os primeiros realizadores deram à cabeça para poderem mudar dum «capítulo» para o outro nos filmes.
Seja como for, ainda hoje, prever e escrever, em pormenor, todas estas coisas é muito importante, não só para evitar despesas inúteis, mas também para não filmar cenas que depois não se podem utilizar na fase de montagem (ver adiante).
Mas, na prática, há mais uma outra coisa a ter em atenção. Para evitar percalços na fase de montagem, o realizador, como regra, procura filmar a mesma cena ou a mesma sequência mais que uma vez. Porquê? Porque pode sempre haver algum erro na impressão da película ou porque acontece que os actores nem sempre desempenham bem o seu papel...
- Fase produtiva (filmagem propriamente dita)
3.1. Instrumentos materiais
Depois de ter feito o trabalho preparatório de redacção, há que proceder ao plano de actuação. Mas, mesmo antes de começar a filmar, é preciso anotar com cuidado várias coisas numa folha de trabalho que pode variar segundo as exigências dos produtores (quem paga o filme) e do realizador (quem dirige o filme). Entre outras coisas, essa folha de trabalho deve conter:
- o elenco dos personagens (actores): principais, secundários, pequenos papéis, multidões, duplos («stuntmen»); e também os dias e as horas em que devem comparecer...
- o elenco dos ambientes: internos, externos, aéreos, terrestres, marítimos...
- o elenco dos lugares concretos (por exemplo, não se vai filmar um jogo de futebol numa piscina)...
- a ordem de filmagem das cenas. Se, por exemplo, as cenas nn 1, 37, 49, 58, 69 e 73 se passam numa sala, convém filmá-las todas duma vez, para poupar tempo e energias e também para fazer menos despesas…
- o elenco de todo o material que é preciso para uma cena ou para uma sequência: por exemplo (e falando sempre da mesma sala): mesas, sofás, cadeiras, armários, telefone, livros, vasos de flores, enfim, tudo o que faz parte duma sala normal... Se se trata, por exemplo, duma corrida de cavalos, seria uma falha grave se estivesse tudo menos os cavalos...
- o elenco dos vestidos e dos respectivos acessórios: se se está a filmar uma cena, por exemplo, do filme King David, os actores, como é óbvio, não poderão usar «jeans»...
- e, finalmente, não esquecer o principal: como sejam, por exemplo, a máquina de filmar, a película ou o suporte digital, as luzes, as objectivas e os filtros, os «carris» para o deslize da máquina de filmar e outros instrumentos necessários. Se faltar nem que seja um só, em caso de filmagens no exterior, pode-se perder um dia inteiro de trabalho.
3.2. Os «feitores» e os actores
3.2.1. No topo de toda a obra cinematográfica, está o produtor, a quem cabe escolher todos os outros elementos humanos da obra e que trata de arranjar o dinheiro necessário para pagar o filme desde a sua fase literária até às cópias finais para distribuir pelas salas de cinema. Portanto, é o responsável pela escolha do assunto, do realizador e dos seus auxiliares e pela distribuição.
3.2.2. Mas o «autor» propriamente dito do filme é o realizador, coadjuvado pelo assistente de realização e pela secretária de edição. Ao realizador cabe a escolha: dos cenógrafos (os que préparam a fase literária); dos montadores de cenas (como carpinteiros, construtores e decoradores); do director de fotografia (e de todos os seus auxiliares); do autor das músicas e dos efeitos musicais; da secretária de edição (encarregada de anotar tudo o que se passa em cena e fora de cena); dos responsáveis pelo som; do responsável pela montagem ou edição final; numa palavra, é um pouco o responsável por tudo.
3.2.3. Em relação, por exemplo, à secretária de edição, vamos supor que hoje se filma uma cena em que a actriz principal veste um vestido azul claro, com uns sapatos brancos e uns braceletes dourados em forma de ser-pente. Pois bem, agora suponhamos que, trinta dias depois, o realizador acha que a essa cena ainda falta qualquer coisa. Só que a nova cena, como é evidente, não consta do plano de trabalho, porque o realizador se lembrou disso assim de repente. Então, para que não haja incoerências, é necessário que tudo o que se passou na primeira cena esteja anotado para que nesta nova cena, que não estava prevista, a actriz (e os outros) se apresentem exactamente como na primeira...
Vamos agora ficar com uma ideia de conjunto de todas estas funções através do esquema seguinte:
PARA REALIZAR UM FILME OCORRE:
GUIONISTA |
PRODUTOR |
CENÓGRAFO |
|||
|
|||||
ASSISTENTE REALIZADOR |
REALIZADOR que organiza |
SECRETÁRIA DE EDIÇÃO |
|||
DIRECTOR DE FOTOGRAFIA |
MONTADOR DE CENAS |
ROUPEIRO E ACESSÓRIOS |
RESPONSÁVEL PELO SOM |
MONTAGEM EDIÇÃO |
|
Construtores Carpinteiros Pintores Decoradores |
Trucadores Cabeleireiros Sapateiros Costureiras |
Microfones Gravadores Músicos Fontes sonoras |
CENOGRAFIA REALIZADOR SECRETÁRIA |
||
ELECTRICIS-TAS E ACESSÓRIOS |
ACTORES E PESSOAL |
Principais Secundários Duplos |
Comparsas |
N.B. Obviamente, os elementos acima são apenas indicativos de como é complexo o planeamento dum produto fílmico.
3.4. Outros elementos do filme
Nas filmagens, como regra, a máquina de filmar roda a um ritmo de 24 fotogramas por segundo. As máquinas de filmar já estão preparadas para «impressionar» 24 fotogramas por segundo. Porquê precisamente 24 fotogramas? A razão não é muito complicada. Os estudiosos de Física acham que é precisamente esse o movimento ou ritmo mais conforme e consentâneo com as características da vista humana.
Em todo o caso, rigorosamente falando, não são precisos tantos fotogramas por segundo para haver «ilusão de movimento»: bastam, por exemplo, 16 (ou mais ou também menos). Só que, nesse caso, sendo a velocidade ou ritmo de projecção sempre constante (ou seja 24 fotogramas por segundo), o efeito é diferente: ou seja, quanto mais devagar for a filmagem maior será a velocidade na fase de projecção; ao contrário, quanto maior for a velocidade da filmagem, mais lenta será a velocidade na fase de projecção.
E, de facto, nos filmes de há muitos anos (por exemplo, alguns filmes cómicos de Charlie Chaplin), a máquina de filmar só «impressionava» 16 fotogramas por segundo. Daí, a sensação que temos de que as pessoas e as coisas vão mais depressa.
Em algumas máquinas de filmar, também há mecanismos que permitem «impressionar», por exemplo, 48 fotogramas por segundo, em vez dos normais 24. E há até máquinas de filmar que «impressionam» um fotograma de cada vez. Tudo depende dos objectivos do realizador.
Então, quais são, em termos gerais, os efeitos resultantes da diferença entre velocidade da filmagem e projecção? Ei-los com uma tabela comparativa:
FASE DE FILMAGEM |
PROJECÇÃO (RESULTADO) |
|
24 Fotogramas por segundo |
Þ |
Movimento normal |
Mais de 24 fotogramas/segundo |
Þ |
Movimento lento (slow motion) |
Menos de 24 fotogramas/segundo |
Þ |
Movimento acelerado |
Fotograma a fotograma (É esta a técnica clássica dos desenhos animados) |
Þ |
Põe em evidência movimentos que a vista não pode alcançar: * flor que desabrocha rapidamente * sol que passa velozmente da aurora para o poente |
Nos filmes actuais também são usados vários ritmos de filmar? Certamente. Quando a necessidade assim o exige. O que é fácil de compreender com dois exemplos simples que verificamos constantemente.
- Quando precisamos dum efeito de slow motion? Pois bem, quando a acção é tão rápida que nem temos tempo de a ver. Como, por exemplo, uma explosão. No cinema, uma explosão demora mais do que o tempo real, porque só assim a podemos examinar. Que se faz então? Filma-se em ritmo mais rápido (por exemplo 48 fotogramas por segundo e, mesmo assim, de vários ângulos com várias máquinas de filmar) para depois a ver duas vezes mais devagar e por várias vezes.
- Mas podemos pretender também um efeito contrário, ou seja, acelerar uma acção. Como, por exemplo, uma perseguição de automóveis. É evidente que o realizador não pode pôr os actores a correr a 150 ou 200 quilómetros à hora, por ser muito perigoso. Então o que faz? Põe-nos a correr a 50 ou 60 quilómetros e manda filmar a um ritmo de 15 ou 16 fo-togramas ou ainda menos. Pois bem, quando essas filmagens são projectadas a 24 fotogramas por segundo, a velocidade com que vemos será en-tão de 120-150km à hora.
Bom, este é um tema muito interessante e, quanto a efeitos, muitas coisas se poderiam dizer, mas, como exemplos, já são suficientes. De resto, os efeitos hoje são tão perfeitos e complicados que há já até companhias que se dedicam só a isso e não estão dispostas a partilhar os seus segredos com mais ninguém. Tanto é assim que já se pode falar de «indústria dos efeitos especiais»; sobretudo associadas a autores como Steven Spielberg e George Lucas.
- A «gramática» do cinema/filme
Vimos anteriormente que, à semelhança do que acontece com a língua, também no cinema há uma «gramática». Simplificando, podemos dizer o seguinte: o «fotograma» corresponde à letra do alfabeto; a «cena» corresponde à frase; a «sequência» corresponde ao período ou períodos (com o desenvolvimento duma ideia completa); uma «série de sequências» corresponde ao capítulo; e o «filme» corresponde ao livro ou obra literária.
Vamos então ver em palavras simples os elementos mais importantes de todo e qualquer filme.
4.1. O enquadramento
Assim como há muitos tipos de letras (em tamanho e estilo), assim também é possível fazer diferentes fotogramas da mesma coisa (em tamanho e estilo). Por outro lado, podemos filmar a mesma coisa de diversos ângulos ou em diferentes ambientes de tempo e de espaço.
Também estes pormenores devem ser previstos
pelo plano de trabalho (guião).
Vamos dar um exemplo referido a uma pessoa: não é a mesma coisa uma pessoa fotografada de frente ou de lado ou de costas. São «enquadramentos» diferentes. Também não é a mesma coisa a mesma pessoa fotografada de corpo inteiro ou de meio corpo ou então só a cabeça. São «enquadramentos» diferentes. Uma pessoa a olhar directamente para a objectiva da câmara não fica igual a uma pessoa que é fotografada (de frente também) mas não a olhar para a câmara...
E estes pormenores têm assim tanta importância? Claro que têm, porque a diferença de enquadramento dá origem a diferentes significados. Os sentimentos que transmite uma cabeça inclinada para baixo e uma cabeça levantada e a olhar directamente para a câmara são diametralmente opostos.
Sei lá, uma imagem de Pinóquio filmada de lado enquanto lhe cresce o nariz é bastante mais eficaz do que uma imagem feita de frente.
4.2. A distância cinematográfica
A objectiva duma máquina de filmar (ou fotográfica) não «apanha» o mesmo que a vista humana. Enquanto o olho humano abraça, digamos assim, à sua volta (sentido circular), uma latitude de cerca de 180º, uma objectiva normal não alcança senão os 40º em sentido horizontal e os 30º em sentido vertical.
Por outras palavras, à máquina de filmar escapa muita coisa do que a vista humana (e animal, naturalmente) pode ver. É por isso que aquilo que vemos através duma objectiva tem forma rectangular (ao passo que a nossa vista não está limitada por nenhuma forma rectangular).
Como é evidente, há vários tipos de objectivas. Ou seja, os princípios que regulam a fotografia são exactamente os mesmos que regulam as filmagens. Para além dos movimentos próprios da máquina de filmar, os princípios são os mesmos. Nesta matéria, no entanto, os princípios teóricos de pouco valem se não forem acompanhados de prática. Por outro lado, também não basta saber as regras; é necessário igualmente ter sentido artístico... Mas isso já é outro aspecto que não tem directamente a ver com a técnica cinematográfica.
Passemos adiante. As distâncias que se vêem num filme podem ser de duas espécies, conforme se referem à paisagem (ou espaço) ou à figura humana. As referidas a paisagens ou coisas em geral (em que poderão estar incluídas também pessoas e animais), chamam-se «campos»; as referidas à figura humana chamam-se «planos».
Os «campos» dividem-se em:
- muito longos ou panorâmicas («very long shot») que correspondem ao maior espaço disponível abraçado pela máquina de filmar em situações externas. Não interessam directamente os pormenores nem se-quer interessa distinguir exactamente qualquer coisa ou pessoa em particular.
- longos («long shot») que correspondem a uma distância ainda bastante panorâmica em que, porém, se pretende já realçar alguma coisa ou acção que irá despertar a atenção do espectador. O público deve já poder ver o que é que se vai desenrolar mais perto, embora as figuras ainda não se possam distinguir claramente.
N.B. O campo muito longo e o campo longo são típicos, por exemplo dos filmes «western», em que se vê a pradaria e as montanhas lá ao longe e depois, já mais perto (mas ainda longe) o comboio ou a carroça puxada a cavalos com os índios em perseguição.
Campo médio («medium long shot») é uma distância ainda mais curta que a última, em que se põe já em evidência aquilo que realmente tem importância na acção. É uma distância que coloca, digamos as-sim, o público numa situação de poder distinguir as pessoas ou as coisas, bem como dar-se conta das reacções e sentimentos das mesmas.
- Por sua vez, os «planos» dividem-se em:
Figura (plano) inteira («full lenght shot»). Aproximamo-nos agora já das pessoas em cena. As figuras humanas ocupam o espaço completo do fotograma (ou do enquadramento), mesmo se para isso é preciso «cortar» as outras coisas.
- Plano americano («medium shot»): a figura humana é «cortada» por altura dos joelhos.
- Meio primeiro plano («medium close up»): a figura humana é «cortada» a meio corpo.
- Primeiro plano («close up»): o enqua-dramento compreende a cabeça e a parte superior do corpo humano.
- Primeiríssimo plano («very close up»): é quando apenas a cabeça preenche todo o «ecrã».
- Detalhe/pormenor («extreme close up»): quando a máquina de filmar enquadra uma mínima parte do objecto que está a ser filmado (um olho, uma orelha, um dedo, um anel, um isqueiro, um lápis, etc.)...
Resta acrescentar que todas estas distâncias devem estar previstas no plano de trabalho, para evitar perdas de tempo e despesas inúteis. Seja como for, o realizador, como é evidente, pode modificar os enquadramentos conforme lhe parecer...
4.3. Posição e movimentos da máquina de filmar
Além das distâncias focais, a má-quina de filmar pode estar parada ou em movimento.
4.3.1. Quanto às posições, são essencialmente cinco:
— horizontal (que é a mais normal)
— vertical (de cima para baixo)
— supina (de baixo para cima)
— inclinada à direita
— inclinada à esquerda
- No enquadramento, os sujeitos das filmagens podem estar parados, mas, na maior parte dos casos, estão a mover-se ou pelo menos a mexer-se. Ora, para acompanhar os sujeitos (actores/actrizes), também a máquina, como regra, tem que se mover.
Entre os variados movimentos de máquina possíveis, podemos referir os três mais importantes:
- panorâmica («Pan»): quando a máquina de filmar gira sobre o seu próprio eixo: para cima; para baixo; à esquerda; ou à direita. Tudo deve ser feito com muito cuidado para que não haja desfocagens (a não ser que seja precisamente esse o efeito pretendido).
- movimento em linha (sobre carris): quando é preciso seguir os movimentos do sujeito sempre à mesma distância. Isso pode fazer-se de três maneiras:
* de frente; de costas; ou então de lado. Está incluído também neste conceito o chamado «camera car» (utilizado sobretudo para acções muito rápidas como uma perseguição).
- movimento de gru («dolly»): é o movimento executado com o auxílio duma máquina munida dum braço de metal (que pode chegar a atingir 15m) em que se coloca a máquina de filmar e onde podem estar sentados o realizador e o assistente de realizador. Dentro de algumas limitações, este «braço» permite os dois movimentos anteriores.
4.4. Os efeitos do cinema
- Já foi feita referência a alguns efeitos e à forma como as companhias sabem guardar os seus segredos nesta matéria. Como é que começaram a aparecer os primeiros efeitos no cinema? Começaram por acaso. O primeiro a usá-los (também se podem chamar «truques») foi George Méliès (já citado).
É ele que o conta: «Um dia, enquanto estava a filmar a Praça da Ópera de Paris, tive uma surpresa: a máquina de filmar encravou. Suspendemos o trabalho para a compor e logo depois recomeçámos a filmar no mesmo local. Mas o que é que aconteceu quando se procedeu à revelação da película? Pois bem, onde antes estava a passar um homem, de repente vê-se uma mulher; a um «tram» substitui-se um carro fúnebre. Tinha descoberto, por acaso, o truque da substituição».
Pois bem, a técnica aperfeiçoou-se tremendamente, mas, no fundo, é precisamente isso que se faz em tantos filmes de horror.
- Sempre que se queira, por exemplo, uma cena ou uma sequência em que chova, não se pode estar à espera que o céu se cubra de nuvens e que chova mesmo no «set» (local onde se está a filmar). É muito mais prático (até porque se molham só os actores e não as máquinas e as outras pessoas) recorrer a grandes jactos de água projectados por bombas apropriadas. Se a cena prevê uma forte ventania, não é preciso ficar à espera dum tufão: é muito mais prático recorrer a fortíssimos ventiladores. Também não é preciso esperar pela noite para filmar uma cena nocturna: de resto, como se sabe, não é possível filmar sem luz. Para obter esse efeito, basta então colocar um filtro escuro na objectiva da máquina de filmar (até porque a noite no cinema é muito especial: tem que ser uma noite em que os actores se distingam, não é verdade?).
4.4.3. Os «efeitos especiais», no fundo, são também «truques», mas apenas mais sofisticados e mais difíceis de fazer; e sobretudo mais demorados. Mas, no cinema actual, os efeitos especiais são tão importantes que hoje já há verdadeiras indústrias que fazem isso e apenas isso...
MONTAGEM/EDIÇÃO
- O significado das imagens
N.B. Este é um ponto importante para
uma correcta interpretação de qualquer filme.
1.1. À edição do filme chama-se também «montagem». Em termos muito simples, a montagem consiste em colocar os pedaços de filme (cenas e sequências) numa determinada ordem cronológica ou temática. O material já existe, mas é preciso pô-lo em ordem para ter um determinado sentido. É um pouco como acontece com um jornal, por exemplo: quando se faz a paginação, o material já existe todo (ou praticamente todo), mas não é ainda jornal enquanto as «peças» literárias não estiverem encaixadas segundo uma ordem determinada (pelo paginador e também pelo editor/director).
A «montagem» dum filme é um trabalho bastante complexo. Por isso, para além do contributo do «montador», requer-se permanentemente a presença e a direcção do realizador. Porquê? Porque, como já ficou explicado antes, o sentido das cenas e sequências pode ser modificado conforme a colocação que se lhes atribuir.
- A «imagem», no caso do cinema, é a reprodução, em suporte material chamado película, de parte da realidade. Nunca é toda a realidade. Por outro lado, a imagem é um pouco como as letras. Estas têm sempre o mesmo valor consideradas em si mesmas, mas variam de valor conforme a maneira como são juntas (relacionadas umas com as outras), e conforme o lugar que ocupam.
Assim, por exemplo, as palavras AMOR, ROMA, RAMO E MORA têm exactamente as mesmas quatro letras, mas têm sentido diferente porque a sua ordem de colocação é diferente.
O mesmo acontece com as imagens: podem ser iguais, mas ter valor ou significado diferente conforme a maneira como são colocadas ou montadas/ /editadas. Daí a importância da montagem.
Para entender melhor, vamos imaginar três fotografias: uma duma multidão numa praça; outra duma pessoa a falar ao microfone num estrado; e, finalmente, outra da mesma praça mas só com duas ou três pessoas...
Nesta ordem — multidão-orador-praça quase vazia — o significado é evidente: o orador foi tão mau que, daquela multidão apenas restaram duas ou três pessoas. Agora, vamos inverter a ordem: praça quase vazia-orador-praça cheia de gente. Obviamente, o sentido é precisamente o contrário: o orador falou tão bem que, às duas ou três pessoas que havia na praça, depressa acabou por se juntar uma autêntica multidão.
1.4. Destas poucas considerações, já podemos concluir uma coisa muito simples e importante ao mesmo tempo: com as mesmas imagens, por exemplo, na TV, podemos dizer e fazer dizer às pessoas coisas diversas. Por conseguinte, há que estar atento: o que diz a TV (ou o cinema ou o jornal ou a revista...) nem sempre é a verdade, nem muito menos toda a verdade, mas apenas uma parcela ou um aspecto particular da verdade (por vezes, pode chegar mesmo a ser tudo menos a verdade).
1.5. Um filme (como outra actividade qualquer) é sempre uma coisa limitada no tempo (duas horas, por exemplo) e no espaço (não se pode dar a imagem de tudo o que existe). Serve-se, portanto, de um certo número de imagens ou elementos para dar uma mensagem sempre limitada. Quanto mais o seu autor for capaz de dizer com imagens aquilo que pretende tanto mais perfeito é o filme. Mas, em todo o caso, mesmo quando o filme é uma obra de arte, a mensagem será sempre limitada e incompleta.
- A colocação das imagens
- Para que, em cinema, um enquadramento (uma pose, digamos assim) seja minimamente perceptível, é necessário o mínimo de fotogramas. Quantos fotogramas? Depende! Se a pose é estática, bastarão quatro ou cinco. Se há movimentos da máquina de filmar, já são precisos mais.
Seja como for, e como regra, quanto mais numerosos são os «cortes» (mudanças de enquadramento) mais rápida se torna a acção (vejam-se alguns exemplos de publicidade) e, quanto mais demorados forem os enquadramentos, mais o ritmo será lento.
2.2. Agora, a passagem dum enquadramento (pose) a outro pode causar muitos problemas, porque os fotogramas podem ficar mal combinados. Vamos dar um exemplo. Suponhamos que a gente filma o Mário a caminhar da esquerda para a direita visto de lado. Agora suponhamos que logo a seguir juntamos mais alguns fotogramas do mesmo Mário, também visto de lado, mas agora a caminhar da direita para a esquerda. O que acontece? A ligação está mal feita: ao vermos a projecção, dará a impressão que são dois Mários iguais ao encontro um do outro.
Se quisermos ter a ideia dum só Mário, poderemos perceber a sua acção só se inserirmos entre esses dois enquadramentos um outro em que o Mário é filmado enquanto pára e dá uma volta sobre si mesmo. Nessa altura, sim, é claro que o Mário ia numa determinada direcção, mas depois, por qualquer motivo, se arrependeu e voltou em sentido contrário.
Demos um outro exemplo. Vamos supor que enquadramos a Maria a olhar para cima, da esquerda para a direita, e depois giramos imediatamente a máquina de filmar para a direita e enquadramos o Mário não em cima, mas num local mais baixo que aquele em que se encontra a Maria. É claro que estes dois enquadramentos não combinam e, por isso, não fazem sentido, porque Maria, em vez de estar a olhar para cima, devia estar a olhar para baixo.
Erro é também, por exemplo, filmar, na mesma direcção (por exemplo, da direita para a esquerda) duas pessoas que vão ao encontro uma da outra. Neste caso, a filmagem deve fazer-se precisamente de ângulos opostos, porque, senão, em vez de encontro, dá-se a ideia de perseguição.
- Bom, estes é apenas alguns exemplos simples dos muitíssimos que se poderiam citar. Limitamo-nos a estes até porque estas coisas se vão aprendendo necessariamente com a prática. Em todo o caso, mesmo quando há um erro de filmagem, pode-se sempre corrigir em fase de montagem através dum pequeno truque que consiste em inserir outros enquadramentos que vão dar outro significado a toda a cena.
No caso da Maria a olhar para cima, basta, por exemplo, inserir o enquadramento duma janela onde não há ninguém e logo a seguir um outro enquadramento com a Maria a olhar para baixo. E, no segundo caso (o das duas pessoas que caminham na mesma direcção, quando na verdade deveriam caminhar em direcção oposta para se encontrarem), basta inserir um outro enquadramento em que uma delas pára e se volta para trás.
- Daqui se conclui também como é importante escrever bem o guião na primeira fase de preparação, com todos os pormenores, para depois não haver problemas. Sobretudo quando se trata de filmes com responsabilidade. É que, na verdade, pode acontecer que os erros já não se possam corrigir.
Imaginemos, por exemplo, que havia alguns dos erros apontados atrás e só se descobriam na fase de montagem seis meses depois das filmagens. Seria possível corrigi-los? Seria se o actor ou actriz ainda estivessem disponíveis! E... se, infelizmente, algum deles, por exemplo, entretanto, já tivesse falecido?...
- A proporção das imagens
- Há que ter também em atenção os «campos» (distâncias) de filmagem para podermos efectuar bem a montagem.
Suponhamos, por exemplo, que temos juntos os seguintes enquadramentos: a vista geral aérea de Hong Kong e um relógio de pulso. Que sentido têm estes dois enquadramentos sozinhos um ao lado do outro? Muito provavelmente nenhum. Ora bem, para que esse «campo longuíssimo» (vista aérea de Hong Kong) e esse «pormenor» (o relógio de pulso) digam alguma coisa, é necessário inserir outros enquadramentos, como por exemplo: um turista que chega de avião; uma parte ou zona de Hong Kong (uma rua, por exemplo); o turista em visita a algum centro comercial; gente a entrar e a sair; «stands» onde se vendem várias coisas e uma banca onde se vendem relógios; e finalmente o relógio... Assim já é uma sequência com algum sentido.
- É como quando a gente escreve. Por exemplo as duas palavras «António... livro», sem mais nada, não têm sentido. Mas se dissermos: «O António foi à biblioteca buscar um livro», já tem sentido.
Portanto, aquilo que fazemos com as palavras quando escrevemos, é o que temos que fazer com as imagens quando filmamos e editamos um filme. Se as «frases fílmicas» não estiverem bem-feitas ou forem incompletas, as pessoas não percebem.
- Seja como for, não é necessário que num filme se mostre absolutamente tudo. Por outras palavras, para descrever uma determinada acção (suponhamos um combate) que demore, por exemplo, quatro horas, não é preciso filmar quatro horas de combate. Bastam alguns minutos.
Chama-se a isso «condensação do tempo real» ou, mais tecnicamente, «tempo cinematográfico». Os espectadores estão em condições de suprir facilmente essas «falhas» aparentes (até porque estou convencido de que um espectador normal imagina, durante a projecção, muito mais do que realmente os seus olhos vêem objectivamente).
Há, todavia, casos em que, no filme, se dá precisamente o contrário, ou seja, a «dilatação do tempo real». O exemplo, já anteriormente citado, é o duma explosão. Em tempo real, uma explosão pode durar... 5-6 segundos? Pois bem, em tempo cinematográfico, essa explosão pode durar até 2 ou 3 minutos, para dar ao espectador a possibilidade de ver bem o que se passa (o que não é possível em três segundos).
Basta para isso filmar a explosão real de vários ângulos com a utilização simultânea de várias câmaras, não excluindo naturalmente imagens em «slow motion»...
- Na fase de montagem, ligam-se todas essas peças obtidas e então o espectador terá a possibilidade de rever a explosão até ao pormenor.
Não é preciso citar nenhum filme em particular, porque se trata de uma cena que se vê com frequência nas salas cinematográficas. O mesmo efeito se tem visto na TV quando se pretende que os telespectadores vejam em pormenor, não já uma explosão, mas sim uma implosão (que se verifica, por exemplo, quando se destrói um determinado edifício, entre outros edifícios, através de várias cargas de dinamite estrategicamente colocadas nas bases do mesmo).
- Um instrumento essencial: a mesa de montagem
4.1. Para proceder à edição/montagem dum filme, para além do material filmado, é necessária uma máquina especial que permite a projecção da película impressa num pequeno monitor (écran) e contemporaneamente a audição da parte sonora através dum altifalante. A esta máquina chama-se «mesa de montagem» («editing table»).
4.2. Uma característica importante da «mesa de montagem» é permitir fazer o que é possível fazer, por exemplo, com um gravador; ou seja: parar, movimentar as imagens rapidamente para a frente e para trás e também movimentar mais rápido ou mais devagar (fotograma a fotograma). Além disso, possui vários pratos, nos quais se colocam os vários rolos de películas já prontas para inserir nos locais onde se pretende. Obviamente, para isso, a «mesa de montagem» tem também um dispositivo para cortar e colar os pedaços de filme uns aos outros. Operar esta máquina é relativamente simples, bastando para isso um pouco de prática (como, de resto, em todas as coisas). Hoje em dia, porém, já todas estas operações se processam de forma digital.
4.3. Acrescente-se, porém, que, mais importante que a máquina propriamente dita, é a presença do editor e do realizador, que se servem de todas as indicações do guião para proceder aos cortes e às colagens necessárias para a feitura do filme. É por isso que é tão importante, durante as filmagens, filmar também, antes de cada cena, uma espécie de lousa onde está escrito precisamente o número da cena e quantas vezes a mesma cena é filmada. Com essas indicações, não é preciso depois perder tanto tempo.
N.B. Não se deve esquecer um princípio que eu enunciei antes; ou seja, cada um dos enquadramentos duma cena tem um valor relativo conforme o contexto das cenas que os antecedem ou das que se lhes seguem. Sei lá, as mesmas imagens duma pessoa inseridas num funeral, por exemplo, terão uma expressão diferente do que terão se forem inseridas, por exemplo, num ambiente de campo de jogos de crianças. Para o provar, não há como experimentar!
4.4. Há ainda a mencionar a mistura de diálogos, sons e efeitos sonoros. Tudo tem que estar em sincronização com as imagens que se vão ver. Por exemplo, o barulho de ondas do mar, por exemplo, não estaria sincronizado com imagens em que se vê um «cowboy» a disparar contra o inimigo num deserto do «far west».
Obviamente os efeitos sonoros e os diálogos poderão ser captados directamente no acto de filmar (o que já não se poderá dizer tão apropriadamente da música), mas isso é uma excepção. Como regra, a coluna sonora é uma operação posterior. Ora, isso exige estruturas especiais, como estúdios próprios para o efeito, dotados de projector e pantalha. Neste caso, limito-me a fazer apenas referência ao problema para, mais uma vez, afirmar que a actividade cinematográfica é bastante complicada e dispendiosa e, por isso, exige uma equipa de produção muito bem coordenada para que o trabalho possa sair bem.
III. LEITURA E ANÁLISE DO FILME
Circunstâncias históricas e sociais
- Quando se vê um determinado filme, para poder tirar proveito, é necessário ter alguns conhecimentos prévios. Conhecimentos que podem ser de ordem geral ou específicos.
A uma criança de três meses, por exemplo (pelo menos é essa a nossa experiência ordinária), não interessa absolutamente nada do que se passa no televisor lá em casa.
Assim também quem, por exemplo, não saiba o mínimo de regras do ténis, pouco ou nenhum interesse terá em ver o torneio de Wimbledon ou outro qualquer pela televisão. Ver, por exemplo, um filme histórico não é a mesma coisa que ver um filme de pura evasão ou divertimento, como uma comédia. Mas, mesmo no caso da comédia, é indispensável o mínimo de conhecimentos (que praticamente todos, diga-se de passagem, possuem).
Mesmo assim, e como é natural, um miúdo de 5-6 anos prefere um filme de desenhos animados a um outro qualquer, mesmo que se trate de filmes simples como, por exemplo, Home Alone. Porquê? Porque se adapta melhor ao grau de conhecimentos que possui.
E isto é verdade em relação a todos os filmes. Pensemos, por exemplo, no filme Ghost. Para o entender, é preciso partir dum princípio ou pressuposto muito simples, que é a possibilidade de vida para além da morte. Sem esse elemento, a que podemos chamar sobrenatural ou pelo menos preternatural, será difícil entender o enredo; como será também difícil compreender o enredo dum outro filme do género, como por exemplo, Somewhere in Time...
1. Mas há outros filmes cujo tema é bastante mais complicado, porque pressupõem outro tipo de conhecimentos de carácter histórico e social. Assim, quem não tenha a mínima ideia sobre a «máfia», nunca poderá apreciar devidamente um filme como Godfather. E quem não tenha algumas ideias sobre a tragédia que o nazismo constituiu para os Judeus, dificilmente apreciará um filme como Schindler’s List ou inclusivamente The Great Dictator.
- Por outro lado, quem não tenha os conhecimentos mínimos em relação ao tema central dum determinado filme, não está em condições de fazer uma análise sobre o seu conteúdo e sobre a forma como esse conteúdo é expresso.
Como se vê, portanto, não basta ter conhecimentos técnicos;
é preciso ter também conhecimentos teóricos.
- Lógica/ilógica da acção dramática
- Só depois de entender qual é o tema ou os temas recorrentes num determinado filme é que se pode ver se a história está bem contada ou não. Por outras palavras, para perceber se o realizador expõe bem ou mal, por imagens, a sua ideia (tese), temos que estar com alguma atenção para ver se o autor é capaz ou não de fazer o seu trabalho como deve ser.
O filme ou obra cinematográfica apresenta uma história (real, imaginária, parabólica). Sendo assim, então tem que se ver se:
- o enredo tem ou não tem lógica (corre ou não corre bem);
- as imagens estão bem escolhidas para ilustrar a ideia central (há, em muitos casos, imagens que estão a mais ou porque não acrescentam nada ao que já foi visto ou então porque distraem da acção principal);
- ocorre também saber descobrir:
- quais são os diálogos mais significativos;
- as cenas-chave de toda a história;
- o modo como é delineado o carácter do protagonista ou protagonistas;
- a maneira como termina o filme.
- Análise da actuação dos intervenientes
Como regra, um dos sinais mais evidentes de que um filme não está bem feito é quando se chega ao fim e não se sabe exactamente que é ou quem são os protagonistas. As várias acções do filme devem girar à volta dum centro (mais que três centros de interesse já correspondem mas é a confusão). Neste sentido, o(a) protagonista ou protagonistas são as únicas figuras insubstituíveis (razão porque o herói nunca pode morrer ou então só no fim do filme).
Isso, na prática, significa que o(a) protagonista deve aparecer no maior número de cenas e certamente nas mais «espectaculares». Não é possível, por exemplo, imaginar o filme The Temple of Doom sem a presença quase constante do «herói», que no caso é Harrison Ford, ou então imaginar um dos Superman sem a presença quase constante de Christopher Reeve.
- Debates e técnicas de debate
- Um filme, como se disse, pode ser comparado a um trecho literário, ou melhor, a um livro. E o que é preciso para que um livro esteja bem feito? Serão necessárias frases bonitas e bem-feitas? Certamente! Mas isso não basta. Também é preciso que as frases estejam bem ligadas entre si por uma estrutura narrativa simples e cheia de criatividade.
Um «romance» lê-se bem quando todos os períodos são compreensíveis e quando todos os capítulos têm relação uns com os outros. Não se pode perder o ritmo e, por conseguinte, o interesse.
- Pois bem, com os filmes dá-se exactamente a mesma coisa. Sem esquecer, porém, que um filme não é um livro; porque o livro é escrito com palavras e o filme é com imagens em movimento. Seja como for, também no filme o ritmo é essencial. As cenas incompreensíveis, inúteis ou dispersivas (por mais bonitas que sejam) tornam o filme pesado e, por isso, devem ser eliminadas.
A análise da estrutura narrativa dum filme é, pois, a análise e descoberta de como o realizador apresenta a sua história, de como faz a ligação entre os vários factos (ou sequências), de como usa os meios técnicos para despertar a atenção do espectador em relação aos protagonistas e ao tema ou argumento da história.
4.3. O que é o debate?
4.3.1. O debate é essencialmente uma reflexão crítica em comum; uma reflexão que ajuda a ir para além da emoção espontânea. Isto dá a possibilidade de criticamente chegar a várias conclusões, a que já fiz referência anteriormente:
- o espectáculo (no caso, o filme) é uma obra inventada e não a descrição pura e simples da vida real; mesmo quando se trata duma obra histórica, a perspectiva ou escolha dos aspectos por parte do autor é sempre «reconstruída»;
- o conteúdo da obra é só o que nela é contado. Isso quer dizer que está circunscrita apenas a parte da realidade. Portanto, quando a gente vê um filme ou um programa de televisão (ou mesmo lê um livro um artigo de jornal ou revista) é errado proferir frases como esta: «Veio na televisão, portanto... é verdade!». Não é necessariamente a verdade...
- reflectir sobre um determinado filme ajuda a compreender melhor os seus valores (ou desvalores) objectivos e a «purificar» as opiniões sugeridas pelo seu autor.
- Os momentos principais do debate cinematográfico são três:
- a apresentação do filme,
- a visão do filme
- e a discussão depois da projecção.
Depois da projecção, um bom «animador», entre outras coisas, procurará:
- na medida do possível, fazer com que todos falem. Costuma-se dizer que da discussão nasce a luz. Pois bem, esta é uma oportunidade em que todas as opiniões têm valor para tirar no fim uma conclusão comum.
- escutar, mais que falar. Se o animador é quem fala mais é sinal de que o filme ou não interessou ao grupo ou então acha que ele próprio já nada precisa de aprender sobre o filme visto.
- fazer com que a discussão não se desvie para assuntos que nada têm a ver com o assunto do filme.
- resumir, no fim, as conclusões a que se chegou durante a discussão ou debate.
- Como guia prático, poder-se-á resumir tudo o que o espectador atento deve fazer para apreciar um determinado filme com uma série de perguntas que se podem formular assim:
— Ideia inicial - história
- O filme conta uma história. Sobre quem?
- Quais são as personagens principais?
- Qual delas mereceu a tua simpatia?
- Como acaba o filme? Gostaste ou não? Porquê?
- Terias concluído o filme doutra maneira? Qual?
— Tema de fundo - tese
- Quais são os temas tratados no filme?
- Em que cena compreendeste o tema de fundo do filme?
- Qual o problema ou questão que te pareceu que o realizador tratou mais demoradamente?
- O realizador descreveu bem os protagonistas?
— Ritmo - montagem/edição
- Qual a cena ou sequência que mais te agradou? Porquê?
- Aborreceste-te? Em que parte do filme? Eram cenas de diálogo ou de acção?
- Qual a cena/sequência que não compreendeste? Porquê?
- Terias tirado alguma cena? Qual? Terias inserido alguma? Onde e porquê?
— Mensagem - tese
- O que é proposto pelo filme é aceitável ou não? Porquê? Ensina-nos alguma coisa?
- A quem se dirige, em tua opinião, o filme? Para quem será mais útil? Para adultos? para crianças? para jovens? para quem?
- Concordas com as ideias do realizador? Tu como terias realizado esta história?
- O realizador faz pensar os espectadores? Distorceu a realidade ou os factos históricos?
5. Um caso particular: Julieta e Romeu
5.1. Um dos problemas mais importantes a resolver quando se quer «estudar» uma obra cinematográfica (ou literária) é ter, como se disse atrás, os conhecimentos indispensáveis para evitar que certas barreiras culturais deformem a eficácia da mensagem. Para mostrar o que isto quer dizer, vamos examinar, se bem que brevemente, um filme conhecido (e também obra literária) como é, por exemplo, Julieta e Romeu.
Por exemplo, o filme poderia tornar-se incompreensível se não se tivesse em consideração a idade dos dois jovens que se amam: ela treze anos e ele quinze anos. Se soubermos isso, então não nos admiramos das suas posições radicais e da coragem com que, no caso, ambos são capazes de aceitar a morte sem problemas por amor um do outro (costuma-se dizer que as pessoas são capazes de dar a vida pelos outros sobretudo quando são jovens e... é verdade!).
- Mas, como é óbvio, conhecer a idade dos dois jovens é uma condição necessária mas não suficiente para compreender esta obra. Há outras condições. Ocorre também conhecer por exemplo: um pouco do ambiente social e político da Itália daquele tempo; o costume, na altura bastante frequente, de utilizar o matrimónio para estabelecer alianças entre as famílias nobres. E outras condições.
No fundo, trata-se de saber responder a várias perguntas. Por outras palavras, e segundo as ideias dum realizador russo, Konstantin Stanislawskij (1863--1938), há que ter em conta os seguintes elementos:
— Circunstâncias, ou seja, elementos que servem de fundo a toda a acção, como, por exemplo: colocação geográfica; colocação temporal (época, estação do ano, hora do dia); «background» social, económico, político e religioso...
— Diálogos: escolha das palavras, das frases; características particulares dos actores (por exemplo, se um actor faz o papel duma pessoa gaga, tem que o fazer muito bem, senão perde efeito); dialectos...
— Justeza dramática. É aqui que tem que se ter em consideração o ritmo. Um filme de «acção», por exemplo, não pode ter um ritmo lento, a não ser em pequenos intervalos (os chamados momentos românticos), sob pena de deixar de ser filme de acção...
— Análise das figuras: intensidade dos sentimentos; força de vontade; carácter; perseverança; princípios e aspirações morais (por exemplo, o «mau da fita», para ser eficaz, tem que parecer mesmo mau, senão não está a actuar bem)...
— E eu acrescento, para terminar, que, a par destes elementos (e outros que, porventura, se possam considerar), não se pode nunca esquecer a análise dos elementos técnicos a que fiz referência. Suponhamos que as circunstâncias, os diálogos, o ritmo e a actuação dos intervenientes está tudo correcto, mas que as imagens (fotogramas) são de fraca qualidade: pode-se dizer que o filme é bom? Certamente que não! Portanto, o produto cinematográfico tem que ser analisado sob vários aspectos e é por isso que o seu estudo se torna interessante.
- Filme: um produto com limites
Como conclusão, insisto sobre o ponto em epígrafe (neste subtítulo) porque o acho extremamente importante. Um filme não é senão uma obra limitada como outra qualquer. Todos nós sabemos que não sabemos tudo sobre todas as coisas. Ora bem, também o autor dum filme não sabe tudo sobre o tema do filme que realiza.
A conclusão a tirar é, portanto, simples: a mensagem que ele transmite através do filme é uma mensagem relativa; por outras palavras, pelo facto de dizer uma coisa qualquer, não quer dizer necessariamente que tem razão e que está a ver as coisas correctamente.
Aliás, o realizador, se calhar, até nem teve a intenção de dizer toda a verdade sobre um determinado assunto. Com frequência, ele quis apenas apresentar o seu ponto de vista, ou seja, uma parte apenas da verdade. Neste caso, seria então errado da parte do espectador esperar que ela diga a verdade toda, porque não foi essa a intenção dele.
A intenção do realizador do filme Star Wars, por exemplo, será descrever coisas realmente acontecidas ou que irão acontecer? É evidente que não, embora quisesse alertar para o perigo das chamadas «guerras das estrelas».
Daí se segue que interpretar o seu filme como um filme histórico, quando na verdade se trata dum filme de «ficção» seria um grave erro de interpretação.
É como se interpretássemos «Os Lusíadas» como um livro rigorosamente histórico (que não é!).
- Ao analisar um filme para ver se ele tem qualidade ou não, também não podemos esquecer a época em que foi realizado. Hoje, em termos técnicos, é muito mais fácil realizar um filme do que há 50 anos, precisamente porque as «ferramentas» técnicas são muito mais sofisticadas e perfeitas.
Agora, quando vemos inovações técnicas extraordinárias relativamente a épocas passadas, então podemos, sem dúvida, chegar à conclusão que os seus autores fizeram um trabalho muito acima da média, de tal forma que as suas obras são justamente chamadas «obras de arte».
A título elucidativo, basta pensar, por exemplo, em Intolerance (1916) de David Wark Griffith e Citizen Kane 1941) de Orson Welles, que são dois dos melhores filmes de sempre.
Finalmente, uma sugestão! Ver e compreender um filme é uma actividade como outra qualquer: aprende-se. Assim como se aprende a ler ou a cantar ou a fazer outra coisa qualquer começando pelas coisas básicas e fazendo exercícios contínuos, assim também em relação aos filmes o processo é exactamente igual. Estas páginas que precederam têm precisamente e apenas a intenção de «iniciar», digamos assim, à leitura das imagens fílmicas. Mas este é um trabalho que tem que ter um seguimento. E é isso que auguramos a todos os que têm entre mãos estes apontamentos.